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Ética para todos
Dicionário explica a moral em mais de 300 verbetes
MILTON MEIRA DO NASCIMENTO
A preocupação com a ética tornou-se,
nos últimos tempos, uma febre mundial.
Não há quem, nos dias de hoje, ao escrever ou pronunciar um discurso, não fique
inquieto com o que vai colocar no papel
ou dizer, com receio de ser acusado de
falta de ética. Todos correm atrás da ética
no trabalho, na política, nas relações familiares, nas demais relações interpessoais, nas práticas religiosas. Há também
os "éticos obstinados", sempre à espreita
para flagrar uma "falta de ética", mesmo
sem saber exatamente em que consiste
essa "falta". Eles procuram sempre os
cursos e os congressos de ética para terem
o seu arsenal bem municiado e atacarem
de maneira mais contundente os "sem-ética".
O que querem, afinal, é uma fórmula
pronta a ser oferecida pelo professor, que,
pobre coitado, logo no primeiro dia de
aula, terá que se desdobrar para acalmar
os mais exaltados, que esperam, logo de
saída, que ele os ensine a amolar a lâmina
da guilhotina para que dela não escape
nenhum "sem-ética". Esse professor que
se cuide, porque pode ser o primeiro da
lista, exatamente por não estar correspondendo à expectativa daquele grupo
que quer ver cabeças rolando. Trata-se do
sintoma de um grande mal-estar, que só
teria cura com o tratamento recomendado do "comportamento eticamente correto".
Fenômeno semelhante tem ocorrido
com o apelo aos direitos humanos, cuja
bandeira é levantada com frequência, nas
mais diversas circunstâncias, por figuras
como George W. Bush e Saddam Hussein, a ponto de ver-se completamente
desgastada. Em nome dos direitos humanos, cometem-se barbaridades, tal como
acontece nas guerras de religião, nas
quais também se praticam as maiores
atrocidades em nome de Deus.
Tribunais inquisitoriais
Michel Villey tem uma frase lapidar,
que soou como uma provocação na década de 1980: "O triunfo dos direitos humanos é a marca da atrofia em nós do senso
de justiça". Na contracorrente da maior
parte dos pensadores daquela década,
lançara um certo ar de desconfiança
àquele apelo incessante aos direitos humanos e que havia propiciado o surgimento de uma vontade de erigir tribunais
inquisitoriais por toda parte.
Segundo ele, bastava ter um mínimo de
bom senso na aplicação dos princípios da
justiça, que, no Ocidente, já possuíam
uma história, desde as compilações do direito romano. Essa ousadia não vinha de
uma voz contrária aos princípios dos direitos humanos, mas de um grande pensador e especialista do direito, preocupadíssimo com a realização da justiça. Invocam-se os direitos humanos como verdades absolutas, e seus defensores, por vezes, se percebem em situações extremamente desconfortáveis, pois, em posições
opostas, como poderiam defender os
mesmos direitos?
Aliás, a crítica aos direitos humanos,
iniciada ainda no século 18 por Edmund
Burke, tinha como mote principal o fato
de que eram princípios abstratos e que
ninguém sabia exatamente quem era "o
homem", mas sim, o camponês, o empresário, este ou aquele indivíduo de carne e osso. E Marx iria completar essa
mesma vertente da crítica, ao enfatizar
que o rol dos direitos humanos, que se
pretendiam universais, era, na verdade, o
conjunto dos direitos de uma classe
emergente, a burguesa. Uma análise acurada desses direitos, como a que ele faz na
"Questão Judaica", iria mostrar que a liberdade, a igualdade, a propriedade e a
resistência à opressão constituem direitos de um indivíduo muito particular.
Eles circunscrevem um campo de isolamento desse indivíduo que vê nos outros
inimigos potenciais, donde a necessidade
de uma proteção e de uma defesa com
unhas e dentes de um possível agressor.
Assim, a defesa da propriedade impede
que outros invadam a minha, a defesa da
minha liberdade implica não invadir a do
outro e a igualdade está exatamente no
reconhecimento de que todos possuem
as mesmas condições de proteção e defesa, o que, evidentemente, não se concretiza em parte nenhuma. Tem mais liberdade quem tem mais posses e dispõe de
mais recursos para protegê-la.
Desse modo, os direitos iguais para todos acabam por se transformar numa
verdadeira quimera. A cidadania se faz
ilusão. Aparentemente, todos somos
iguais, livres, proprietários, com todos os
direitos garantidos. Como são direitos de
um homem abstrato, de fato, nem todos
são livres, não possuem os mesmos direitos e menos ainda a propriedade. Só a alguns privilegiados é facultada a possibilidade de gozar plenamente desses direitos. Quando estes se transformam em
privilégios, rompe-se a igualdade e retornamos ao patamar de uma condição na
qual vale muito bem a expressão "salve-se quem puder".
Tais reflexões também fazem parte do
quadro geral da ética e essa problemática
nos mostra o quadro das dificuldades
com as quais nos defrontamos quando
pensamos ter adquirido certas verdades
absolutas sobre esse assunto. Em linhas
gerais, vozes que clamam por mais direitos, muitos caçadores das violações dos
direitos humanos, mal sabem do que estão falando. Assim como muitos dos decepcionados com a "falta de ética" não teriam escrúpulos em condenar os opositores em tribunais sumários. A questão, no
mundo contemporâneo, talvez não seja
tanto a da falta de ética, mas a da perda do
senso mínimo de justiça.
Ferramenta indispensável
Diante disso, o que podemos esperar de
um "Dicionário de Ética e Filosofia Moral"? Antes de mais nada, depende do que
entendemos por "nós". Aqueles obstinados de que falávamos há pouco, sedentos
de sangue, com certeza esperam conseguir mais lenha para a sua fogueira, mas é
provável que fiquem decepcionados. Os
que pretendem refletir com cuidado,
ponderando todas as possibilidades
abertas pelo debate sobre a ética, a moral
e o direito, sem nenhuma pretensão à
verdade absoluta, certamente irão encontrar o que há de melhor nesse domínio.
Com 112 artigos sobre temas, noções,
conceitos, 85 sobre filósofos, 53 sobre história da filosofia moral e 73 sobre questões da ética, num total de 323 verbetes,
este dicionário conseguiu reunir mais de
250 especialistas, dentre os quais Paul Ricoeur, Rémi Brague, Pierre Hadot e tantos outros, não só franceses, mas também
alemães, italianos, ingleses e americanos.
Com várias formas de abordagem dos
verbetes, com índices de termos gregos,
índice das doutrinas, índice dos autores e
índice remissivo detalhado, além de bibliografia selecionada sobre cada um dos
temas abordados, é uma ferramenta indispensável para professores, estudantes
e interessados em quaisquer assuntos
que dizem respeito à ética e à filosofia
moral. Temas como aborto, bioética, eutanásia, clonagem, drogas, discriminação
sexual, qualidade de vida, racismo, niilismo, ética penal, terrorismo aqui são tratados de maneira a conduzir o leitor a
uma imersão na história e também ao desenvolvimento da investigação temática
de uma perspectiva analítica.
Cada artigo é, na verdade, um ensaio
sobre a matéria, em que se tenta equacionar o estado da questão, inseri-la numa
perspectiva histórica, estabelecendo uma
relação entre o passado e o presente do
tema em discussão. Além disso, e talvez
esse seja o maior desafio e a grande contribuição, o "Dicionário" procura "mostrar que uma mesma ambição de inteligibilidade e de justificação é comum à filosofia e a outras disciplinas.
Podemos nos interrogar sobre a saúde
pública (o que os médicos e os economistas fazem) ou sobre a vida e a morte (o
que os médicos e os filósofos fazem) a
partir de perspectivas diferentes, mas
manifestando uma exigência semelhante
de reflexão e de crítica. Certamente a filosofia moral comporta um núcleo de
questões que só pertencem aos filósofos.
Entretanto, para muitos dos problemas
que caem igualmente na competência de
outras disciplinas, ela pode fazer valer
uma exigência de inteligibilidade e de raciocínio que torna a sua contribuição
particularmente preciosa".
O aspecto interdisciplinar da abordagem das questões da ética e da filosofia
moral torna ainda mais fascinante a leitura do "Dicionário", que sinaliza para o fato de que, nesse campo, é indispensável o
recurso a várias disciplinas, sem que com
isso se perca o rigor da análise. Essa nova
forma de convivência entre as disciplinas
não significa perda das especificidades e
do trabalho do especialista em cada assunto, mas o desenvolvimento de análises intercambiáveis e o convívio frequente e desejável entre disciplinas diferentes,
sem prejuízo de suas identidades.
Tradição francesa
Este "Dicionário", organizado por Monique Canto-Sperber, e que agora temos
a satisfação de ver em língua portuguesa,
numa edição muito bem cuidada, recupera uma tradição francesa, que remonta
à "Enciclopédia", de Diderot e d'Alembert. Não iremos encontrar aí nenhuma
fórmula pronta, a solução para todos os
nossos dilemas em relação à ética e à moral, mas uma pluralidade de abordagens,
em verbetes escritos pelos mais renomados especialistas em cada setor.
No prefácio à terceira edição, de 2001,
Canto-Sperber indica com muita clareza
os propósitos que nortearam sua empresa: "O primeiro dever ético do homem é
pensar tão justo quanto possível e se dar
os meios intelectuais de apreender a realidade, por mais ambivalente e ambígua
que ela seja. Limitar-se a declarar que a
realidade do mundo em que vivemos e
agimos é esta ou aquela -por exemplo,
que ela é racional, moderna, absurda,
produto das relações de dominação ou
saída do inconsciente- não dará nada
além de uma interpretação unilateral, na
melhor das hipóteses parcialmente verdadeira. O melhor uso que posso esperar
para este dicionário é contribuir para pôr
em questão esses preconceitos".
Da mesma forma, no "Prospecto" da
"Enciclopédia", lemos a advertência de
Diderot, ao explicitar suas preocupações:
"Evitamos os inconvenientes de citar as
fontes de maneira vaga, inserindo, no
próprio corpo dos artigos, os autores nos
quais se apoiaram, citando seus próprios
textos, quando necessário, comparando
opiniões, fazendo um balanço das razões;
propondo meios para duvidar ou sair da
dúvida; algumas vezes até decidindo; destruindo tanto quanto possível os erros e
preconceitos e cuidando para não multiplicá-los e não perpetuá-los em hipótese
alguma".
O "Dicionário de Ética", portanto, faz
jus à tradição da filosofia das luzes e do
seu maior empreendimento editorial, ao
recuperar o pluralismo das abordagens, a
luta contra os preconceitos, no intuito de
abrir os espíritos a múltiplas possibilidades de análise, sobretudo as que propiciam novas descobertas, e sempre com
muito rigor.
Bem no espírito dessa tradição, a editora Unisinos dá um passo adiante, com
uma edição impecável e na contramão de
muitos moralistas preconceituosos, que,
tão afoitos em exigir mais ética em tudo,
mostram que não possuem nenhuma. O
que é, aliás, mais um motivo para lerem
este maravilhoso trabalho de equipe.
Milton Meira do Nascimento é professor de ética
e filosofia política do departamento de filosofia da
USP.
Dicionário de Ética
e Filosofia Moral
Monique Canto-Sperber (org.)
Tradução: Ana Maria Ribeiro-Althoff,
Magda França Lopes, Maria Vitória
Kessler de Sá Brito e Paulo Neves
Editora Unisinos
(Tel. 0/xx/51/590-8239)
891 págs. (vol. 1 ); 888 págs. (vol. 2),
R$ 360,00 (os dois)
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