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São Paulo, sábado, 11 de outubro de 2003

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Som nacional forasteiro

A trajetória de Heitor Villa-Lobos

SERGIO MICELI

A "vida" e a "obra" de Heitor Villa-Lobos (1887-1959) continuam imersas num anedotário para cuja pujança contribuíram as mais de quatro dezenas de biografias aqui e no exterior. É sob a chancela do modelo analítico de Norbert Elias, a respeito de Mozart, que o autor do livro acima procura dar conta da trajetória do compositor brasileiro, buscando deslindar as feições de suas obras a partir do ambiente social e musical em que se constituiu tal projeto de criação artística.
O bem talhado capítulo de abertura desbasta o emaranhado das principais fontes disponíveis, a começar pela biografia oficial escrita pelo então jovem diplomata Vasco Mariz, publicada pela Divisão Cultural do Ministério das Relações Exteriores, em 1949, como parte do projeto de enaltecimento do maior astro vivo da música nacional, no ápice da fama, e principal informante do autor.

Formação nebulosa
Villa-Lobos era filho de um funcionário mediano da Biblioteca Nacional, posto a que chegara por concurso, cujos variados interesses culturais levaram à feitura de livros didáticos, ao trabalho de tradutor e aos hábitos de um melômano sabido. Era sócio do Clube Sinfônico, aficionado por óperas e instrumentista consumado de violoncelo e clarinete em sessões domésticas de música de câmara.
Villa-Lobos teria acompanhado o pai em performances musicais, o qual teria espicaçado o engenho do "filho predileto" ao adaptar um apoio numa viola de modo a transformá-la num pequeno violoncelo. Tamanho investimento foi bruscamente sustado pela morte do pai, quando Villa-Lobos tinha apenas 12 anos. A família passou a depender do trabalho da mãe como passadeira na confeitaria Colombo.
Permanecem em penumbra a procedência dos recursos que viabilizaram a continuidade de sua educação musical e a eventual ajuda dos imigrantes espanhóis do lado paterno.
De outra parte, como existem indicações seguras de que a maioria dos músicos boêmios cariocas, conhecidos como "chorões", era de funcionários públicos, entre os quais poderiam se encontrar amigos e conhecidos do pai, talvez o jovem tivesse apurado seus pendores na intimidade de tais grupos.
O fato insólito de não haver concluído os estudos secundários leva a crer que teve que se virar como autodidata e, nesse aperto, buscar, desde mocinho, sobreviver no ambiente musical por meio de bicos. Parece-me plausível a hipótese aventada de que Villa-Lobos tivesse convivido com os chorões, praticantes semiprofissionais de música popular e, ao mesmo tempo, com os núcleos esparsos de instrumentistas eruditos, havendo, por certo, num campo acanhado de atividade, marcado por precária especialização, inúmeros músicos que transitavam em ambos os círculos.
O eventual acerto dessa junção não remedia lacunas quanto aos tempos de aprendizagem do futuro compositor, em especial no tocante ao período entre a morte do pai e a mudança repentina para Paranaguá, em 1908. Sem dispor de formação musical rigorosa, tampouco de amparo capaz de lhe garantir uma posição estável no mercado musical carioca, não é de estranhar que o autodidatismo tenha suscitado prós e contras em suas práticas.
Assim como são frequentes os reparos feitos ao desempenho pouco habilidoso de Villa-Lobos como instrumentista, o domínio insuficiente das técnicas de manejo em instrumentos com os quais não tinha familiaridade -como, por exemplo, o piano- lhe facultou contornar exigências postas pelo estudo de escalas em relação às passagens dos dedos e arriscar manejos surpreendentes do teclado, com resultados artísticos formidáveis.
Nos primeiros tempos após seu casamento (1913) com a professora de piano Lucília Guimarães, o casal viveu do dinheiro das aulas de piano e dos biscates dele como músico na confeitaria Colombo, no restaurante Assírio e numa pequena orquestra de cinema.
O lance sensível do livro consiste no rastreamento das fontes musicais européias, que moldaram a repentina reconversão de Villa-Lobos em compositor erudito assumidamente brasileiro, da gema, empenhado em responder e se ajustar aos modelos de composição em voga. As peças anteriores à primeira viagem à Europa oscilam entre o lirismo do bel canto italiano (a ópera "Izaht"), a melodia infinita dos "leitmotiv" de Wagner e o lirismo descritivo de Saint-Saëns (o poema sinfônico "Naufrágio de Kleonicos"), um espectro de correntes disciplinadas pelo manual de composição do wagneriano Vincent d'Indy.
O entusiasmo por tais programas culminou na adoção das propostas inovadoras de Claude Debussy, cujos aportes marcantes, como a escala de tons inteiros e os acordes dissonantes, são reconhecíveis tanto nas "Danças Características Africanas" como nas cantigas infantis da série "A Prole do Bebê", estas últimas inspiradas no "Children's Corner", do mestre francês.
Nesse período de "internacionalismo afrancesado", no dizer de Mário de Andrade, Villa-Lobos quis se afirmar na cena carioca como vanguardista, sob a égide do compositor europeu mais "avançado" daquele momento, relegando por ora os recursos estéticos dos músicos populares seus conhecidos, distanciado dos filões do que seria adiante o protótipo da música nativa.

"Très stravinskien"
O prolongado estágio parisiense de Villa-Lobos (1923-24 e 1926-1930) transformou pela raiz os alicerces de sua estética musical e, na prática, as técnicas de composição orquestral. A música desnorteante de Stravinsky, exemplo de êxito retumbante de arte "nacional forasteira" no mercado francês, resumia o receituário do dia entre os compositores de vanguarda: a música de feição "moderna" deveria se nutrir, no essencial, de ingredientes nacionais e populares. "A Sagração da Primavera" (1913) -que o próprio Villa-Lobos admitiu como "a maior emoção musical de sua vida"- havia reformado a música sinfônica, ao questionar as noções vigentes de tonalidade, harmonia, ritmo e expressão. Esse novo som, de dissonâncias e compassos desencontrados, dependia agora da reciclagem dos ritmos e toadas do repertório baixo, bem como de barulhos miméticos dos novos equipamentos e tecnologias.
O "Nonetto - Impressão Rápida de Todo o Brasil", uma das peças compostas sob impacto de Stravinsky e Satie, constituía "uma antologia dos ritmos utilizados na música popular urbana", com emprego conspícuo da percussão, dos "ostinatos", do jogo de timbres na massa orquestral. Villa-Lobos batizou a "nova forma musical" dos fascinantes "Choros" com a palavra-senha da serenata carioca, que ouvira desde a juventude, reconhecendo nessas improvisações de músicos citadinos a força de uma melodia sentimental.
Os "Choros" nš 3 e nš 10 se valeram de danças e cantos indígenas, recolhidos por Roquette Pinto junto dos parecis, aos quais o compositor teve acesso pela audição dos fonogramas gravados durante a expedição Rondon. O "Choro" nš 8, por sua vez, se inicia com o misterioso solo de "caracaxá", chocalho indígena, mimetizando as vozes de bichos na floresta, a que se seguem um choro, "molengo, manhoso", melodias folclóricas, temas sertanejos, relevando trechos em piano de Ernesto Nazareth, a quem fora dedicado o "Choro" nš 1 para violão, o único composto antes da ida à Europa.
O "Choro" nš 10 ("Rasga Coração") mescla motivos indígenas a um chorinho de Anacleto de Medeiros, a ritmos do carnaval carioca e a melodias do cancioneiro popular (sambas e pontos de macumba, de Sinhô, Donga etc.). Ainda que se possa admitir a confluência entre feições da vanguarda musical européia e elementos estruturais na música indígena -o realce conferido à percussão e a extremada variedade rítmica em detrimento de expansões melódicas-, a presença de Stravinsky se faz notar no apelo a procedimentos inconfundíveis de transposição orquestral.
Nos anos 30, Villa-Lobos empreendeu outra guinada estética, no intento de se ajustar às pautas do neoclassicismo, tão bem expresso pela música de Stravinsky para o balé "Pulcinella" (1920), baseada no rearranjo de peças criadas por Domenico Gallo (na época, atribuídas a Pergolesi) no século 17. Sendo o equivalente do "retorno à ordem" nas artes plásticas, o projeto neoclássico pretendia retomar as balizas de composição (o contraponto) dessa vertente clássica em sintonia com a prática rítmica e harmônica contemporânea. O concerto para piano e instrumentos de sopro de Stravinsky fora palavra de ordem de um retorno a Bach; as nove suítes das belíssimas "Bachianas Brasileiras" traduzem o empenho de Villa-Lobos de se manter aprumado às tendências emergentes na cena musical européia, sem abrir mão da rítmica e dos temas folclóricos brasileiros.

Mecenato carioca
Assim como a poesia de Drummond é indissociável de suas experiências como chefe-de-gabinete de Capanema, os "Choros" não teriam existido sem a generosa filantropia, a fundo perdido, exercida pela família Guinle nem as "Bachianas" teriam sido compostas, entre 1930 e 1945, sem o lastro material e institucional concedido pelo regime Vargas.
Um momento forte do livro é a demonstração de como sucedeu a viabilização da trajetória de Villa-Lobos como compositor profissional. Antes de Paris, dois importantes concertos de suas obras, em 1921, haviam sido promovidos por Laurinda Santos Lobo, herdeira das empresas deixadas pelo tio, o senador Joaquim Murtinho, e animadora de um salão artístico em seu palacete em Santa Teresa.
Embora tenha se beneficiado de módica subvenção da Câmara a fim de realizar a primeira viagem à Europa, foi preciso arrecadar mais recursos por meio de concertos. O milionário Arnaldo Guinle fez parte da comissão responsável por essa iniciativa e concedeu uma soma apreciável de fundos. Em 1926, instados pelo pianista Arthur Rubinstein a subsidiar a viagem e a estadia de Villa-Lobos, os irmãos Guinle acedem e bancam uma virada na carreira do compositor. Carlos e Arnaldo Guinle eram importadores de equipamentos e concessionários da empresa que operava o porto de Santos, no auge da exportação de café.
Além do auxílio vultoso de 60 mil francos à editora Max Eschig para custear a edição de obras orquestrais, do reforço de caixa em prol do concerto de lançamento das obras publicadas, do sustento garantido por uma mesada de 3.000 francos (1 conto de réis), e de recursos adicionais para cópias de partituras, passagens e despesas de representação, o casal Villa-Lobos se hospedou no apartamento parisiense da família Guinle, na Place Saint-Michel. Em 1927, o total dos gastos cobertos pelos Guinle alcançou a cifra de 137 mil francos (45 contos de réis).

Música de estádio
Por fim, o lado menos vistoso de suas atividades musicais: sua contribuição ao trabalho de proselitismo e propaganda a serviço do regime Vargas. Por mais de uma década, Villa-Lobos esteve à frente dos serviços governamentais de educação musical, culminando com a criação, em 1942, do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico. No empenho de racionalizar essa missão pelo alcance dos objetivos superiores do canto orfeônico -"disciplina, civismo e arte"-, ele foi se acomodando aos ditames doutrinários do Estado Novo, do qual se enxergava como "agente civilizador", de um povo que considerava artisticamente atrasado.
Nessa condição de músico oficial do regime, o estardalhaço de sua movimentação política se deveu à montagem de grandes espetáculos de massa. Tendo sido cooptado para integrar o panteão da "cultura brasileira" entronizado pela gestão Capanema, gozava de todas as regalias que lhe garantiam até o acesso às reuniões fechadas das terças-feiras no gabinete e das quais participavam apenas auxiliares de confiança.
Ao longo do Estado Novo, as "concentrações orfeônicas" se realizavam uma vez por ano e logo assumiram a feição de um culto a Vargas. Crianças, estudantes, escoteiros, soldados, funcionários, professores, todos agitando bandeiras, entoando hinos patrióticos entremeados por "efeitos orfeônicos" (o barulho do vento no coqueiral), gritando em uníssono, em sílabas escandidas, numa explosão de arrebatamento: "Viva nosso presidente, viva Getúlio Vargas".
Villa-Lobos era a âncora do espetáculo, regente grandalhão, de camisa azul brilhante, com domínio de palco e inventividade coreográfica, comandando a "saudação" pela qual todos os orfeonistas exibiam as duas palmas da mão com os braços estendidos à frente. Existe o filme mudo de um desses eventos, feito por um amador, alheio às convenções dos cinejornais do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), no qual se podem observar os momentos eletrizantes em câmara lenta: a bandeira tremulando, o estádio repleto; a chegada de Vargas, de terno escuro, de pé em carro aberto; autoridades no palanque; o discurso do ditador; os acenos para a multidão nas arquibancadas; Villa-Lobos regendo no pódio elevado; um bailado com música do maestro no gramado; clima de endosso e efusão.
A tese de mestrado de Paulo Renato Guérios, ora convertida em livro, é um trabalho de crítica cultural, desempenado, abrangente, curioso, cuja inteligência sociológica enfrenta a questão crucial das matrizes musicais das composições de Villa-Lobos, das etapas de seu projeto de criação artística, sem descurar da teia de relações e interações em meio às quais o personagem foi adquirindo rosto, personalidade e projeção. É de lamentar a ausência de uma cronologia de vida e obras, de um índice onomástico, de uma discografia crítica e de um CD com trechos de Villa-Lobos e dos compositores com os quais dialogou em chave criativa.
O leitor poderia fruir o confronto entre o "Canto do Cisne Negro", de Villa-Lobos, e "O Cisne", de Saint-Saëns, nos quais o cisne-violoncelo vai contra a corrente das cordas e da harpa; entre o "tango brasileiro" "Odeon", de Ernesto Nazareth, e sua metamorfose no violão solo do "Choro" nš 10; entre as aberturas do "Nonetto" e da "Sagração da Primavera"; entre as suítes para cello de Bach e o contraponto na fuga da "Bachiana" nš 9, rumo a uma dicção autoral personalíssima e impregnada pelos materiais do acervo musical autóctone.


Sergio Miceli é professor titular de sociologia na USP e autor de, entre outros, de "Nacional Estrangeiro - História Social e Cultural do Modernismo Artístico em São Paulo" (Cia. das Letras).

Heitor Villa-Lobos O Caminho Sinuoso da Predestinação
Paulo Renato Guérios
Editora FGV (Tel. 0800/21-7777)
268 págs., R$ 38,00


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