|
Texto Anterior | Índice
Som nacional forasteiro
A trajetória de Heitor Villa-Lobos
SERGIO MICELI
A "vida" e a "obra" de Heitor Villa-Lobos (1887-1959) continuam imersas num
anedotário para cuja pujança contribuíram as mais de quatro dezenas de biografias aqui e no exterior. É sob a chancela do
modelo analítico de Norbert Elias, a respeito de Mozart, que o autor do livro acima procura dar conta da trajetória do
compositor brasileiro, buscando deslindar as feições de suas obras a partir do
ambiente social e musical em que se
constituiu tal projeto de criação artística.
O bem talhado capítulo de abertura
desbasta o emaranhado das principais
fontes disponíveis, a começar pela biografia oficial escrita pelo então jovem diplomata Vasco Mariz, publicada pela Divisão Cultural do Ministério das Relações
Exteriores, em 1949, como parte do projeto de enaltecimento do maior astro vivo
da música nacional, no ápice da fama, e
principal informante do autor.
Formação nebulosa
Villa-Lobos era filho de um funcionário
mediano da Biblioteca Nacional, posto a
que chegara por concurso, cujos variados
interesses culturais levaram à feitura de
livros didáticos, ao trabalho de tradutor e
aos hábitos de um melômano sabido. Era
sócio do Clube Sinfônico, aficionado por
óperas e instrumentista consumado de
violoncelo e clarinete em sessões domésticas de música de câmara.
Villa-Lobos teria acompanhado o pai
em performances musicais, o qual teria
espicaçado o engenho do "filho predileto" ao adaptar um apoio numa viola de
modo a transformá-la num pequeno violoncelo. Tamanho investimento foi bruscamente sustado pela morte do pai,
quando Villa-Lobos tinha apenas 12
anos. A família passou a depender do trabalho da mãe como passadeira na confeitaria Colombo.
Permanecem em penumbra a procedência dos recursos que viabilizaram a
continuidade de sua educação musical e a
eventual ajuda dos imigrantes espanhóis
do lado paterno.
De outra parte, como existem indicações seguras de que a maioria dos músicos boêmios cariocas, conhecidos como
"chorões", era de funcionários públicos,
entre os quais poderiam se encontrar
amigos e conhecidos do pai, talvez o jovem tivesse apurado seus pendores na intimidade de tais grupos.
O fato insólito de não haver concluído
os estudos secundários leva a crer que teve que se virar como autodidata e, nesse
aperto, buscar, desde mocinho, sobreviver no ambiente musical por meio de bicos. Parece-me plausível a hipótese aventada de que Villa-Lobos tivesse convivido
com os chorões, praticantes semiprofissionais de música popular e, ao mesmo
tempo, com os núcleos esparsos de instrumentistas eruditos, havendo, por certo, num campo acanhado de atividade,
marcado por precária especialização,
inúmeros músicos que transitavam em
ambos os círculos.
O eventual acerto dessa junção não remedia lacunas quanto aos tempos de
aprendizagem do futuro compositor, em
especial no tocante ao período entre a
morte do pai e a mudança repentina para
Paranaguá, em 1908. Sem dispor de formação musical rigorosa, tampouco de
amparo capaz de lhe garantir uma posição estável no mercado musical carioca,
não é de estranhar que o autodidatismo
tenha suscitado prós e contras em suas
práticas.
Assim como são frequentes os reparos
feitos ao desempenho pouco habilidoso
de Villa-Lobos como instrumentista, o
domínio insuficiente das técnicas de manejo em instrumentos com os quais não
tinha familiaridade -como, por exemplo, o piano- lhe facultou contornar exigências postas pelo estudo de escalas em
relação às passagens dos dedos e arriscar
manejos surpreendentes do teclado, com
resultados artísticos formidáveis.
Nos primeiros tempos após seu casamento (1913) com a professora de piano
Lucília Guimarães, o casal viveu do dinheiro das aulas de piano e dos biscates
dele como músico na confeitaria Colombo, no restaurante Assírio e numa pequena orquestra de cinema.
O lance sensível do livro consiste no
rastreamento das fontes musicais européias, que moldaram a repentina reconversão de Villa-Lobos em compositor
erudito assumidamente brasileiro, da gema, empenhado em responder e se ajustar aos modelos de composição em voga.
As peças anteriores à primeira viagem à
Europa oscilam entre o lirismo do bel
canto italiano (a ópera "Izaht"), a melodia infinita dos "leitmotiv" de Wagner e o
lirismo descritivo de Saint-Saëns (o poema sinfônico "Naufrágio de Kleonicos"),
um espectro de correntes disciplinadas
pelo manual de composição do wagneriano Vincent d'Indy.
O entusiasmo por tais programas culminou na adoção das propostas inovadoras de Claude Debussy, cujos aportes
marcantes, como a escala de tons inteiros
e os acordes dissonantes, são reconhecíveis tanto nas "Danças Características
Africanas" como nas cantigas infantis da
série "A Prole do Bebê", estas últimas inspiradas no "Children's Corner", do mestre francês.
Nesse período de "internacionalismo
afrancesado", no dizer de Mário de Andrade, Villa-Lobos quis se afirmar na cena carioca como vanguardista, sob a égide do compositor europeu mais "avançado" daquele momento, relegando por ora
os recursos estéticos dos músicos populares seus conhecidos, distanciado dos filões do que seria adiante o protótipo da
música nativa.
"Très stravinskien"
O prolongado estágio parisiense de Villa-Lobos (1923-24 e 1926-1930) transformou pela raiz os alicerces de sua estética
musical e, na prática, as técnicas de composição orquestral. A música desnorteante de Stravinsky, exemplo de êxito retumbante de arte "nacional forasteira" no
mercado francês, resumia o receituário
do dia entre os compositores de vanguarda: a música de feição "moderna" deveria
se nutrir, no essencial, de ingredientes
nacionais e populares. "A Sagração da
Primavera" (1913) -que o próprio Villa-Lobos admitiu como "a maior emoção
musical de sua vida"- havia reformado
a música sinfônica, ao questionar as noções vigentes de tonalidade, harmonia,
ritmo e expressão. Esse novo som, de dissonâncias e compassos desencontrados,
dependia agora da reciclagem dos ritmos
e toadas do repertório baixo, bem como
de barulhos miméticos dos novos equipamentos e tecnologias.
O "Nonetto - Impressão Rápida de Todo o Brasil", uma das peças compostas
sob impacto de Stravinsky e Satie, constituía "uma antologia dos ritmos utilizados
na música popular urbana", com emprego conspícuo da percussão, dos "ostinatos", do jogo de timbres na massa orquestral. Villa-Lobos batizou a "nova forma
musical" dos fascinantes "Choros" com a
palavra-senha da serenata carioca, que
ouvira desde a juventude, reconhecendo
nessas improvisações de músicos citadinos a força de uma melodia sentimental.
Os "Choros" nš 3 e nš 10 se valeram de
danças e cantos indígenas, recolhidos por
Roquette Pinto junto dos parecis, aos
quais o compositor teve acesso pela audição dos fonogramas gravados durante a
expedição Rondon. O "Choro" nš 8, por
sua vez, se inicia com o misterioso solo de
"caracaxá", chocalho indígena, mimetizando as vozes de bichos na floresta, a
que se seguem um choro, "molengo, manhoso", melodias folclóricas, temas sertanejos, relevando trechos em piano de Ernesto Nazareth, a quem fora dedicado o
"Choro" nš 1 para violão, o único composto antes da ida à Europa.
O "Choro" nš 10 ("Rasga Coração")
mescla motivos indígenas a um chorinho
de Anacleto de Medeiros, a ritmos do carnaval carioca e a melodias do cancioneiro
popular (sambas e pontos de macumba,
de Sinhô, Donga etc.). Ainda que se possa
admitir a confluência entre feições da
vanguarda musical européia e elementos
estruturais na música indígena -o realce
conferido à percussão e a extremada variedade rítmica em detrimento de expansões melódicas-, a presença de Stravinsky se faz notar no apelo a procedimentos inconfundíveis de transposição
orquestral.
Nos anos 30, Villa-Lobos empreendeu
outra guinada estética, no intento de se
ajustar às pautas do neoclassicismo, tão
bem expresso pela música de Stravinsky
para o balé "Pulcinella" (1920), baseada
no rearranjo de peças criadas por Domenico Gallo (na época, atribuídas a Pergolesi) no século 17. Sendo o equivalente do
"retorno à ordem" nas artes plásticas, o
projeto neoclássico pretendia retomar as
balizas de composição (o contraponto)
dessa vertente clássica em sintonia com a
prática rítmica e harmônica contemporânea. O concerto para piano e instrumentos de sopro de Stravinsky fora palavra de
ordem de um retorno a Bach; as nove suítes das belíssimas "Bachianas Brasileiras"
traduzem o empenho de Villa-Lobos de
se manter aprumado às tendências emergentes na cena musical européia, sem
abrir mão da rítmica e dos temas folclóricos brasileiros.
Mecenato carioca
Assim como a poesia de Drummond é
indissociável de suas experiências como
chefe-de-gabinete de Capanema, os
"Choros" não teriam existido sem a generosa filantropia, a fundo perdido, exercida pela família Guinle nem as "Bachianas" teriam sido compostas, entre 1930 e
1945, sem o lastro material e institucional
concedido pelo regime Vargas.
Um momento forte do livro é a demonstração de como sucedeu a viabilização da trajetória de Villa-Lobos como
compositor profissional. Antes de Paris,
dois importantes concertos de suas
obras, em 1921, haviam sido promovidos
por Laurinda Santos Lobo, herdeira das
empresas deixadas pelo tio, o senador
Joaquim Murtinho, e animadora de um
salão artístico em seu palacete em Santa
Teresa.
Embora tenha se beneficiado de módica subvenção da Câmara a fim de realizar
a primeira viagem à Europa, foi preciso
arrecadar mais recursos por meio de concertos. O milionário Arnaldo Guinle fez
parte da comissão responsável por essa
iniciativa e concedeu uma soma apreciável de fundos. Em 1926, instados pelo pianista Arthur Rubinstein a subsidiar a viagem e a estadia de Villa-Lobos, os irmãos
Guinle acedem e bancam uma virada na
carreira do compositor. Carlos e Arnaldo
Guinle eram importadores de equipamentos e concessionários da empresa
que operava o porto de Santos, no auge
da exportação de café.
Além do auxílio vultoso de 60 mil francos à editora Max Eschig para custear a
edição de obras orquestrais, do reforço de
caixa em prol do concerto de lançamento
das obras publicadas, do sustento garantido por uma mesada de 3.000 francos (1
conto de réis), e de recursos adicionais
para cópias de partituras, passagens e
despesas de representação, o casal Villa-Lobos se hospedou no apartamento parisiense da família Guinle, na Place Saint-Michel. Em 1927, o total dos gastos cobertos pelos Guinle alcançou a cifra de 137
mil francos (45 contos de réis).
Música de estádio
Por fim, o lado menos vistoso de suas
atividades musicais: sua contribuição ao
trabalho de proselitismo e propaganda a
serviço do regime Vargas. Por mais de
uma década, Villa-Lobos esteve à frente
dos serviços governamentais de educação musical, culminando com a criação,
em 1942, do Conservatório Nacional de
Canto Orfeônico. No empenho de racionalizar essa missão pelo alcance dos objetivos superiores do canto orfeônico
-"disciplina, civismo e arte"-, ele foi se
acomodando aos ditames doutrinários
do Estado Novo, do qual se enxergava como "agente civilizador", de um povo que
considerava artisticamente atrasado.
Nessa condição de músico oficial do regime, o estardalhaço de sua movimentação política se deveu à montagem de
grandes espetáculos de massa. Tendo sido cooptado para integrar o panteão da
"cultura brasileira" entronizado pela gestão Capanema, gozava de todas as regalias que lhe garantiam até o acesso às reuniões fechadas das terças-feiras no gabinete e das quais participavam apenas auxiliares de confiança.
Ao longo do Estado Novo, as "concentrações orfeônicas" se realizavam uma
vez por ano e logo assumiram a feição de
um culto a Vargas. Crianças, estudantes,
escoteiros, soldados, funcionários, professores, todos agitando bandeiras, entoando hinos patrióticos entremeados
por "efeitos orfeônicos" (o barulho do
vento no coqueiral), gritando em uníssono, em sílabas escandidas, numa explosão de arrebatamento: "Viva nosso presidente, viva Getúlio Vargas".
Villa-Lobos era a âncora do espetáculo,
regente grandalhão, de camisa azul brilhante, com domínio de palco e inventividade coreográfica, comandando a "saudação" pela qual todos os orfeonistas exibiam as duas palmas da mão com os braços estendidos à frente. Existe o filme
mudo de um desses eventos, feito por um
amador, alheio às convenções dos cinejornais do Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP), no qual se podem observar os momentos eletrizantes em câmara lenta: a bandeira tremulando, o estádio repleto; a chegada de Vargas, de terno escuro, de pé em carro aberto; autoridades no palanque; o discurso do ditador; os acenos para a multidão nas arquibancadas; Villa-Lobos regendo no pódio
elevado; um bailado com música do
maestro no gramado; clima de endosso e
efusão.
A tese de mestrado de Paulo Renato
Guérios, ora convertida em livro, é um
trabalho de crítica cultural, desempenado, abrangente, curioso, cuja inteligência
sociológica enfrenta a questão crucial das
matrizes musicais das composições de
Villa-Lobos, das etapas de seu projeto de
criação artística, sem descurar da teia de
relações e interações em meio às quais o
personagem foi adquirindo rosto, personalidade e projeção. É de lamentar a ausência de uma cronologia de vida e obras,
de um índice onomástico, de uma discografia crítica e de um CD com trechos de
Villa-Lobos e dos compositores com os
quais dialogou em chave criativa.
O leitor poderia fruir o confronto entre
o "Canto do Cisne Negro", de Villa-Lobos, e "O Cisne", de Saint-Saëns, nos
quais o cisne-violoncelo vai contra a corrente das cordas e da harpa; entre o "tango brasileiro" "Odeon", de Ernesto Nazareth, e sua metamorfose no violão solo do
"Choro" nš 10; entre as aberturas do "Nonetto" e da "Sagração da Primavera"; entre as suítes para cello de Bach e o contraponto na fuga da "Bachiana" nš 9, rumo a
uma dicção autoral personalíssima e impregnada pelos materiais do acervo musical autóctone.
Sergio Miceli é professor titular de sociologia na
USP e autor de, entre outros, de "Nacional Estrangeiro - História Social e Cultural do Modernismo
Artístico em São Paulo" (Cia. das Letras).
Heitor Villa-Lobos
O Caminho Sinuoso
da Predestinação
Paulo Renato Guérios
Editora FGV (Tel. 0800/21-7777)
268 págs., R$ 38,00
Texto Anterior: Três batutas Índice
|