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São Paulo, sábado, 12 de abril de 2003

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Estudioso das religiões examina o mito grego

O eterno Dioniso



Dioniso: Imagem Arquetípica da Vida Indestrutível
Carl Kerényi
Tradução: Ordep Trindade Serra
Odysseus (Tel.0/xx/11/3816-0835)
389 págs., R$ 45,00

JACYNTHO LINS BRANDÃO

Às vezes, visando a provocar um rebuliço na mesmice de minhas aulas de grego, faço os alunos dividirem-se em grupos, para disputar entre si. Cada "hetairia" deve escolher um patrono grego, quando indefectivelmente já se arma o embate: entre tantas figuras de deuses, heróis ou personagens históricas, a maioria quer pôr-se sob a égide de Dioniso. Nada de incomum. Como lembra François Hartog, o antigo deus é, até hoje, das figuras gregas que mais "viajaram" no tempo e no espaço, desde quando irrompeu "ruidosamente na "pólis" para aí instalar a alteridade" (nos termos de Jean-Pierre Vernant, para instalá-la "bem no centro do dispositivo social").
Se a importância de Dioniso pode ser aferida do simples fato de que ele atravessa a história grega antiga de cabo a rabo, não menos crucial é atentar para o papel que desempenhou na erudição dos séculos 19 e 20, tanto na chamada "ciência dos mitos" quanto em outras áreas. José Antonio Trabulsi dedicou um instigante estudo a esse tema, mostrando que a eleição do grego e de Dioniso, contra o latim e outras divindades menos incômodas, vai de par, pelo menos na França, com o projeto de laicização do ensino e dos estudos clássicos, tradicional reduto eclesiástico. Um exemplo marcante: no "Dicionário das Antiguidades Gregas e Romanas", de Daremberg e Saglio, aparecido entre 1877 e 1919 (data expressiva, já que a cavaleiro dos dois séculos), enquanto o verbete sobre Apolo ocupa 12 páginas, o de Dioniso estende-se por nada menos que 50!
O presente livro é o último de uma extensa cadeia de estudos contemporâneos sobre Dioniso, iniciada com Erwin Rohde e desdobrada por Martin Nilsson, Walter Otto e H. Jeanmaire. Kerényi é mais conhecido como colaborador de Jung, com quem publicou, em 1941, os "Prolegômenos para o Estudo Científico da Mitologia". Húngaro, ensinou filologia clássica em Budapeste, dedicando-se em seguida à ciência da religião. Desde 1943 passou a viver na Suíça, lecionando no Instituto Jung de Zurique. "Dioniso", publicado em 1976 (três anos após sua morte), representa o coroamento de seus trabalhos sobre as religiões gregas, pelos quais desfilam, entre outros, Apolo, Prometeu, Perséfone e Deméter, Hera e Zeus.
Valorizam esta primeira edição de Kerényi no Brasil a competente tradução de Ordep Trindade Serra, o cuidado editorial para com o volume, que inclui valiosa documentação iconográfica, e o prefácio preciso de Ulpiano Bezerra de Menezes. Os raros deslizes ficam por conta do "demônio da tipografia", podendo ser facilmente supridos pelo leitor atento.

Origens minóicas
A linha de argumentação é a idéia de que Dioniso tem origens minóicas. Assim, toda a primeira parte, intitulada "O Prelúdio Cretense", dedica-se a rastrear elementos dionisíacos na arte, nos rituais e nos mitos de Creta, pelo uso de uma metodologia assim explicitada: "Não há uma linha divisória precisa entre a expressão minóica (...) e o que sabemos do culto dionisíaco a partir de testemunhos gregos: em Creta, um outro deus foi adorado num complexo ritual, caracterizado pelo papel eminente do touro; na Grécia, o deus era Dioniso! Os documentos minóicos e os textos gregos são complementares. (...) Quando os combinamos, eles formam um conjunto significativo".
Para provar essa tese, Kerényi arrola dados sobre o calendário cretense, os mitos de Oríon, as figuras do touro, da serpente, da hera e da vinha, para terminar explorando os nomes do deus e as funções de Ariadne.
A segunda parte, "Mito e Culto no Mundo Grego", tira as consequências do pressuposto das origens cretenses, examinando os "mitos de ingresso" (em grego, a "epidemia" do deus), suas implicações para o ritual (de início bienal), os mistérios e as manifestações exotéricas, especialmente as da tragédia e da comédia ática. Num breve capítulo final, passa-se em revista o dionisismo na época romana, para acrescentar provas à tese que articula o todo, mas também para observar-se que se passou então da esfera da "zoé" para a do "bíos" ("zoé", a vida em geral; e "bíos", o período do nascimento à morte).
Esclarecida no início da obra, a idéia de que Dioniso constitui a "imagem arquetípica da vida indestrutível" é que orienta, na vastidão das fontes, o que se toma e o que se abandona. Tem menos importância, portanto, a noção de "arquétipo" que a de "vida indestrutível". Como o grego conta com duas palavras para "vida", é a primeira que se toma como aquilo de que Dioniso seria a imagem. Assim, "o núcleo do culto dionisíaco, o essencial que perdurou por milênios" é que, "na forma de um animal, o deus sofria a extrema profligação, uma morte cruel, mas ao cabo, irredutível "zoé", ele escapava". Em torno desse "núcleo" organizam-se os variados elementos presentes no culto: a videira, o vinho, o falo, o sexo, o asno, o bode, a participação de mulheres e homens no ritual, a tragédia e a comédia áticas.
Ora, apesar da vasta documentação textual e material, o calcanhar de Aquiles da tese de Kerényi está justamente na suposição de que haja um núcleo atemporal, porque essencial, do culto de Dioniso. Com exceção da pincelada final (a passagem de "zoé" para "bíos" no dionisismo tardo-romano), é como se mito e rito se preservassem como entidades localizadas fora da história -quando é de cerca de 2 mil anos que se trata! Trata-se de um viés que acaba por opor, de um modo geral, a "ciência da religião" à "história da religião", envolvendo-as em debates muitas vezes acalorados. É que questões metodológicas ganham o primeiro posto sobretudo num campo como o das religiões gregas, sem textos sagrados, em que a transmissão oral, cuidadosamente reservada a iniciados, tem um papel absolutamente central.
A isso se soma o envolvimento do estudioso com seu objeto. Menezes chama a atenção para o fato de que Kerényi, na linha de Otto, aborda o dionisismo da perspectiva de "experiências numinosas" capazes de serem potencializadas "aqui e agora". Aliás, Trabulsi não tem dúvidas em classificar Nietzsche, Otto e Kerényi como "apóstolos" modernos do dionisismo, dedicados a buscar, "na Antiguidade, modelos para a nossa vida que, afinal, enquanto vida humana, seria sempre a mesma".
Impõe-se assim a questão: a história destruiria a ciência da religião? Uma resposta em termos de 8 ou 80 não parece a mais adequada, embora não haja dúvida de que a história da religião precisa ser tomada como provocação para a ciência da religião, em que o perigo de sucumbir à tentação do essencial parece maior que em outras áreas das ciências humanas (e não divinas!).
Ora, esse debate só faz aumentar o interesse do Dioniso de Kerényi, que não tem nada de aplicação canhestra de modelos estereotipados (nem mesmo junguianos, na linha do que fez, entre nós, Junito Brandão). Afinal, dos deuses antigos nenhum teve tantos "fiéis" nos últimos tempos, do que é prova eloquente o sepulcro de Freud, esse ícone do século 20, no Golder's Green, em Londres, onde o Dioniso, assentado ao lado da urna, segura o tirso e o cântaro.
Talvez, portanto, o mais importante fosse perguntar não o que a ciência e a história da religião acrescentaram a nosso conhecimento do Dioniso antigo, mas o que o antigo Dioniso acrescenta a nossa compreensão do contemporâneo, a partir dos usos (quiçá abusos) de seu nome. Se, do ponto de vista da erudição clássica, a obra de Kerényi é referencial (continuando a fundamentar trabalhos como os de Walter Burkert), mais importante se torna como um esforço bem-sucedido em provocar, para um século que conheceu todos os tipos de matança, numa escala nunca vista, a epifania de um deus que nos conforta, em suma, com a indestrutibilidade da vida.

Jacyntho Lins Brandão é professor da UFMG e autor de "A Poética do Hipocentauro" (UFMG).


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