São Paulo, Sábado, 12 de Junho de 1999
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O Malta viu tudo

YANET AGUILERA


O título acima, de um artigo de Carlos Drummond de Andrade sobre o fotógrafo alagoano Augusto Malta, bem poderia resumir emblematicamente a questão discutida nesta coletânea. De fato, um de seus temas fundamentais é a fotografia como registro e memória, quer dizer, a complexa relação entre fotografia e realidade.
No prólogo de "Tristes Trópicos", Lévi-Strauss faz ressalvas ao uso da fotografia como dado documental para os estudos etnológicos e antropológicos. Esse ponto de vista veio a prevalecer quando a tese de Roland Barthes (em "O Óbvio e o Obtuso") de que a imagem seria uma mensagem sem código foi interpretada no sentido de se negar à fotografia qualquer "estrutura" que permitisse um conhecimento "científico" do objeto nela representado. Por essa razão, ela estaria absolutamente subordinada ao texto.
A maioria dos ensaios de "O Fotográfico" se pretende contra essa tradição e afirma enfaticamente a possibilidade de uma antropologia visual. Sylvia Caiubi, por exemplo, denuncia o racionalismo positivista que fundamenta essa versão das ciências sociais, enquanto Etienne Samain tenta resgatar um outro Roland Barthes, para o qual a ausência de um código na imagem não leva necessariamente à desqualificação desta como documento. O livro "A Câmera Clara" representaria assim o esforço de ler a imagem para além do código ou para pensá-la, como diz Samain, a partir do seu "grau zero". Aqui Barthes analisaria os traços que se vêem e se sentem numa foto, mas que não se podem verbalizar, concluindo que um dos elementos essenciais de toda fotografia é a marca existencial que ela carrega de seu referente.
O artigo de Sylvain Maresca pode ser tomado como um passo adiante com relação aos anteriores. Segundo ele, a antropologia visual produziu não só análises significativas, mas até mesmo algumas que contribuíram para repensar os elementos da própria etnologia. Um exemplo seria o trabalho do fotógrafo Jorma Puranen sobre os lapões: a reconstituição da identidade deste grupo é um jogo em que o entrecruzamento de imagens do presente e do passado inclui a própria figura do fotógrafo e permite uma reflexão sobre a dimensão ética que se deveria estabelecer entre o pesquisador e seu objeto.

O Fotográfico
Etienne Samain (org.) Hucitec (Tel. 011/543-0653) 360 págs., R$ 35,00



As análises da produção de dois fotógrafos brasileiros retomam à sua maneira a questão da imagem como documento. Antonio Ribeiro de Oliveira Jr. apresenta os belos clichês de Augusto Malta, testemunhos das transformações do Rio no começo do século, enquanto Amarildo Carnicel refaz, depois de 60 anos, o itinerário e as fotos do turista aprendiz Mário de Andrade, com a finalidade de mostrar as semelhanças, alterações e desaparecimento das paisagens brasileiras visitadas pelo crítico.
Embora uma grande parte dos artigos da coletânea -dos quais o espaço exíguo de que disponho não permite tratar como desejaria- seja favorável à utilização da imagem como documento, ela dá espaço para os que se posicionam contra essa tese. Ao criticar o teor essencialista das teorias de Roland Barthes, André Bazin ou Philippe Dubois, Antonio Fatorelli desqualifica o problema da ligação entre fotografia e realidade, enfatizando uma outra questão: a reflexão sobre o fato de ela ter ajudado a "criar novas formas de percepção e uma nova subjetividade".
Arlindo Machado e Lucia Santaella tematizam a relação entre fotografia e imagens eletrônicas, postulam o esfacelamento da idéia de referente e refletem sobre as consequências desse desaparecimento. Os ataques visam os resíduos da idéia de referente fotográfico, defendida por Philippe Dubois e Rosalind Kraus, e mantida apesar das denúncias que o desconstrutivismo dos anos 70 (os "Cahiers du Cinèma" e Susan Sontag) fizera sobre o aspecto absolutamente convencional da fotografia.
Como já não parece ser possível diferenciar uma fotografia de uma imagem digital e como esta última pode ter um referente virtual, a relação entre fotografia e realidade perderia não apenas credibilidade, mas o seu próprio sentido de ser. O que a fotografia representou para a pintura, a imagem eletrônica representaria para a fotografia -a libertação do casulo mimético. Estaríamos na época da imagem pós-fotográfica, em que a previsibilidade, virtualidade, simulação, funcionalidade e eficácia substituiriam os conceitos de memória e documento envolvidos na imagem fotográfica.
Para aqueles que acreditam, apesar de tudo, na possibilidade de uma antropologia visual ou num vínculo da fotografia com a realidade, o leitor ainda poderá encontrar, como contraponto à radicalidade dessa visão desconstrutivista, o ensaio de Boris Kossoy. Essa análise, que também pensa a tecnologia digital dentro do universo das imagens, sustenta que todas essas novidades tecnológicas apenas deixam mais evidente o jogo entre ficção e realidade, com "suas múltiplas facetas e infinitas imagens", que toda e qualquer reconstituição sempre pressupõe.
De fato, sabe-se que é inútil negar as consequências que a tecnologia digital trouxe para o mundo atual, mas talvez seja preciso um pouco de lucidez para não se perder na louvação ingênua das vantagens que ela parece representar. Já é velha e questionável a valorização da técnica como progresso esclarecedor, assim como já é suficientemente conhecida a contundente crítica frankfurtiana aos conceitos de eficácia e funcionalidade.
Uma última palavrinha: é no mínimo curioso que um livro sobre fotografia, que faz mesmo uma defesa apaixonada da imagem, nem sempre dê a esta o relevo que mereceria e às vezes a deixe em segundo plano por excesso de texto.


Yanet Aguilera é doutoranda em filosofia na USP.


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