São Paulo, Sábado, 12 de Junho de 1999
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As profundezas do umbigo vitoriano



Peter Gay examina a história da sensibilidade no século 19
NICOLAU SEVCENKO


"Nunca viajo sem o meu diário. É preciso ter sempre alguma coisa sensacional para se ler no trem." Essa tirada sardônica de Oscar Wilde, como de hábito, comportava uma observação profunda. Era a sua alfinetada tão temida, espetando a obsessão introspectiva que tomara de assalto a boa burguesia vitoriana. Não era ele o narcisista, apenas o sátiro exacerbando em proporções caricaturais a epidemia de introversão que assolava seus contemporâneos. A ponto de os médicos, quando seus pacientes entravam em crise depressiva, lhes recomendarem que começassem a escrever um diário íntimo, como fórmula para a cura. Ou ao ponto de o mais notável historiador inglês do período, Sir Thomas Macaulay, confessar, quando lhe perguntaram sobre seu texto favorito: "Nenhuma leitura é tão deliciosa, tão fascinante, quanto a história minuciosa do "eu" de uma pessoa". Nem é preciso acrescentar que ele se referia a si mesmo e ao seu hábito compulsivo de ler e reler continuamente o próprio diário.
Soa a perversão? Mas não é. Trata-se da história da rápida mudança dos padrões de sensibilidade, ocorrida dentre as camadas sociais que assumiram o primeiro plano da cena histórica no século 19, projetadas pelas transformações que a industrialização, as revoluções liberais e a difusão da cultura romântica desencadearam. Uma história densa, complexa, cheia de sutilezas e rica das maiores consequências para o nosso século, e que só um historiador com a erudição e a fineza de Peter Gay poderia elaborar com tanta elegância.
Ela faz parte de um projeto mais amplo, denominado "A Experiência Burguesa - Da Rainha Vitória a Freud",, do qual a Companhia das Letras já publicou os três primeiros volumes: "A Educação dos Sentidos" (1988), "A Paixão Terna" (1990) e "O Cultivo do Ódio" (1995). Desde já, o mais abrangente e intrincado panorama histórico da burguesia do período vitoriano, ou seja, não apenas considerando a Grã-Bretanha, mas envolvendo igualmente todos os países articulados no núcleo dinâmico do capitalismo industrial ao norte da Europa, da França aos Impérios Centrais e à Rússia tzarista e, para além do Atlântico, os EUA. Uma proeza.

Mergulho no ego
A inspiração original do livro parte de uma observação atilada de Edgar Allan Poe, nascida de sua intuição de que o mergulho introspectivo para a exploração das profundezas mais recônditas da personalidade era o traço mais marcante da cultura de seu tempo. Foi assim que prometeu "a glória instantânea a quem escrevesse um livro bem pequeno, "Meu Coração Posto a Nu'". Obra que ele mesmo nunca conseguiu escrever e que, tentada pelo seu tradutor e grande admirador, o poeta Charles Baudelaire, se resumiu a um esboço e a uma brilhante, mas breve, coleção de aforismos.
Seduzido pela proposta, Peter Gay mergulhou não no próprio ego, mas numa miríade de documentos mediante os quais os mais variados personagens desnudavam suas almas, em público ou na privacidade: cartas, autobiografias, poesias, romances, narrativas históricas, auto-retratos, músicas, óperas, dramas diários, confissões, perfis de heróis, celebridades e vilões exemplares, êxtases místicos, depoimentos delirantes de loucos, criminosos e amantes apaixonados. Nunca o coração humano esteve mais exposto ou foi mais completamente devassado.
A música, naturalmente, é um caso especial. Na condição de arte que prescinde de referências exteriores, ela se presta excepcionalmente para proporcionar uma imersão nos domínios mais fundos da memória, do subconsciente e das emoções em estado puro. Ela seria por isso elevada à condição de forma quintessencial de manifestação da sensibilidade romântica. Transformada numa forma de religião profana, todas as alusões a ela se fariam em vocabulário litúrgico: os compositores são profetas, os teatros são templos, as sinfonias são epifanias, a platéia são os devotos, as performances são miraculosas, Bach e Mozart são os arcanjos, Beethoven é o redentor e com Wagner se configura a parusia na Nova Jerusalém de Bayreuth.
A emoção é tanta, que o grande problema é conseguir educar o público para que se mantenha paralisado e calado, em estado de adoração, em vez de ceder à excitação festiva e ao exibicionismo dos concertos. Desse esforço resultaria uma arte derivada, a audição ardente, especialidade feminina, vincada de expressões dramáticas de concentração, comoção e langor, avançando para o entusiasmo hipnótico e culminando no êxtase final, arrematado pelo indefectível desfalecimento da dama exangue nos braços de um circunstante casual.

Biografias instrutivas
As confissões, livros em que celebridades expõem os mundos e fundos de sua vida privada, em paralelo às conquistas da glória mundana, se multiplicam e são disputados pelas editoras, já então afinadas com o conceito de best seller. A grande questão era o que dizer e o que calar, em nome da decência e do bom tom. Afinal, como ressaltara a poetisa Elizabeth Barrett, "Adão tornou as folhas de figo necessárias para a mente, assim como para o corpo".
Mas é claro que o grande público, feito o jogo das conveniências, estava de fato muito mais interessado no fruto que na ramagem, quando, por exemplo, a famosa cortesã inglesa Hariette Wilson, após iniciar seus quatro volumes de memórias com a espetacular frase "Não contarei como e por que me tornei, aos 15 anos, a amante do conde de Craven", segue em frente com uma narrativa longa, palavrosa e.... discreta. Mesmo do grande Goethe, mais do que de suas obras, de seu sucesso na corte e de seus muitos amores, o que o público queria mesmo saber, e ele o sonegou em sua célebre autobiografia, era o estranho mistério das relações íntimas que o prendiam à volta de sua irmã Cornélia.
Os estudos históricos têm um enorme incremento na época, particularmente na versão das biografias das grandes personalidades, dos heróis nacionais, dos artistas que marcaram todo um período, dos inventores e dos homens de visão empresarial, na senda da constituição de um panteão de celebridades mundanas. O intuito dessas publicações era duplo. Por um lado manifestavam uma preocupação normativa, ao apresentar a trajetória de uma carreira edificante, acentuando as virtudes de disciplina, empenho e determinação férrea dos biografados, como a fórmula infalível para o sucesso numa sociedade que se propunha aberta ao reconhecimento do talento, à gratificação dos méritos, à glorificação das excelências. Os melhores casos, nesse sentido, sendo o das criaturas que, provindas de origens obscuras, foram alçadas pelo rigor de sua autodisciplina e tirocínio para interpretar as forças das transformações históricas em curso, o que lhes permitiu ler e interpretar o coração dos seus contemporâneos, oferecendo-lhes exatamente aquilo por que tanto ansiavam. Claro, portanto, que o campeão imbatível como personagem de obras biográficas foi Napoleão, cuja mística arrivista tornara, ironicamente, o maior mito político da era vitoriana.

O Coração Desvelado
Peter Gay Tradução: Sérgio Bath Companhia das Letras (Tel. 011/866-0801) 484 págs., R$ 35,00



Mas o apetite de ídolos, nessas sociedades moralmente intransigentes, em que a mediocridade era sem dúvida a melhor garantia para uma carreira respeitada e sólida, impunha sérias restrições para as sondagens dos biógrafos aos meandros mais reservados dos atos e fantasias de seus personagens. No confronto entre a avidez de detalhes do público e os rígidos códigos oficiais de decoro, prevalecia a proverbial austeridade puritana. Fato que arrancaria de Carlyle o elogio mordaz: "Como a biografia inglesa é delicada e decente! Que Deus a proteja!". Ou levaria Gladstone a comentar, sobre a biografia de George Sand escrita por seu marido: "Não é em absoluto uma biografia, mas uma reticência em três volumes".
Essa imensa popularidade das biografias instrutivas, se criou um canal excepcional para a popularização dos estudos históricos, por outro lado distorceu completamente sua natureza, na medida em que seu critério fundamental era sempre, tanto no caso da carreira do biografado, quanto no do livro do biógrafo, o desenfreado anseio pelo sucesso. Com os autores mantendo um olho nos arquivos e o outro nas estatísticas de vendas, a historiografia se tornava um ofício que induzia seus praticantes a um estrabismo bizarro. Os esforços de Leopold von Ranke para repor os estudos históricos a serviço do Estado e das instituições acadêmicas só contribuíram para mudar o foco da distorção. A profissionalização da história, com a consequente adoção de jargões técnicos emprestados às ciências sociais, pode ter dado uma vestimenta mais austera às obras, mas suprimiu o elã inspirado da sua dimensão literária.

O folhetim
Caso singular e revelador é o do historiador suíço Jacob Burckhardt, um dos maiores mestres da profissão em todos os tempos. Sem fazer concessões às simplificações em moda, ele porém fazia questão de "em toda minha vida sempre escrever em estilo legível". Seu apego à tessitura complexa, sutil e erudita da narrativa, acabou entretanto afastando seus trabalhos primorosos do gosto público. Sua monumental "Cultura da Renascença" teve uma edição de apenas 750 exemplares e levou quase dez anos para se esgotar. Enquanto isso, as histórias populares, povoadas de heróis nacionais, de Macaulay, Motley ou Green, vendiam às centenas de milhares por ano, em ambas as margens do Atlântico. Era provavelmente a maneira de os vitorianos se vingarem, por antecipação, dos historiadores com intenções críticas, que haveriam de incomodar-lhes o suave repouso com intromissões incômodas e comentários insolentes no futuro.
Outra aparição retumbante nesse período é o romance-folhetim, uma fórmula de literatura popular publicada em capítulos pelos jornais diários. O modelo original foi o inigualável "Os Mistérios de Paris", de Eugène Sue, publicado a partir de 1842. A fórmula resultava da concorrência acirrada entre os jornais para conquistar o público e acabou produzindo a fusão de ingredientes que se provaram altamente explosivos: cenas de corte, incursões no baixo mundo do crime, vício e prostituição parisienses, a exposição das injustiças sofridas pelos pobres, humilhados e ofendidos, as peripécias do vingador, o romance escandaloso, a punição exemplar dos pérfidos e a redenção sublime da virtude.
O sucesso foi tanto que os capítulos passaram a ser traduzidos e publicados simultaneamente para vários países da Europa, saindo depois em livro com edições recordistas, sendo ainda convertido em peça de teatro e em cenas de pinturas e esculturas espalhadas por todo o mundo. Era fato corrente que as sessões legislativas só começavam após os parlamentares terem lido e discutido o último capítulo. Mas o mais importante era a avalanche de cartas que afogava a redação, fazendo com que Sue reelaborasse o roteiro de forma a corresponder o mais precisamente aos anseios emocionais do seu grande público. Nesse sentido, o folhetim era uma autêntica obra coletiva. Um termômetro da época, acusando febre alta.
Mesmo os grande escritores, como Balzac ou Dickens, se adaptaram à fórmula do folhetim e às demandas de seus leitores. Fosse na chave popular ou na erudita, porém, o foco da literatura ia no sentido da sondagem dos desvãos mais íntimos da alma humana, das fontes perturbadoras do desejo e dos labirintos insondáveis da imaginação. E é claro que em matéria de introspecção, angústias e tormentos secretos, nada superava os russos. Dostoiévski em primeiro lugar. Dele diria ninguém menos que o filósofo Friedrich Nietzsche: "Dostoiévski escrevia com uma marreta. Sua ficção é um longo confronto, com a sociedade, com amantes, com inimigos políticos, com Deus, acima de tudo consigo mesmo. Há sempre catástrofes em preparação, suas personagens são dadas a sessões de autolaceração punitiva, a declamações maníacas, a ataques de delírio e, nos momentos de decisão, a atos de violência". Por isso mesmo o filósofo alemão concluiria ter sido aquele escritor o único psicólogo que lhe permitiu aprender algo sobre a mente humana.
Por trás dessa proliferação intensa de livros, cartas, diários, confissões, peças, concertos, óperas, exposições e fofocagem, o que se vislumbra é todo o processo de consolidação dessa classe ociosa, sua prosperidade crescente, paralela aos desdobramentos da industrialização e da expansão imperial européia, a ampliação de seu tempo livre e de suas conquistas, tanto no espaço doméstico quanto no público. Sobram rendas para o lazer, a "flânerie", os salões, os saraus, as recepções e as viagens. As novas técnicas gráficas permitem baratear e multiplicar as publicações, a inovação nos meios de transporte permite a distribuição ampla, com soluções criativas como os quiosques nos parques, as barraquinhas nas estações de trem e metrô, além de invenções como o folhetim, o cartão postal, a fotografia e os cartões autografados.
Proporcional a essa expansão das dimensões interiores se dá a dilatação dos espaços privados, com os aposentos individuais, as saletas e estúdios, os móveis pessoais, os cofres, os diários chaveados e os epistolários lacrados. Crescem o caramujo e o casulo, às expensas da solidariedade, na grande horta em que vegeta a família humana.


Nicolau Sevcenko é historiador e autor de "Orfeu Extático na Metrópole" (Companhia das Letras).


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