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Mostra do Redescobrimento é discutida por três especialistas
Invenções do Brasil
LAURA DE MELLO E SOUZA
"Quem foi que inventou o Brasil?
Foi seu Cabral...
Foi seu Cabral...
No dia 21 de abril
Dois meses depois do Carnaval..."
E a marchinha de carnaval, tão velhinha, resolvera de forma bem satisfatória a
questão que atormentou historiadores,
antropólogos, arqueólogos e até presidentes da República, deste e do outro lado do Atlântico, nos últimos anos. Brasil
não havia mesmo e, por amor da exatidão, não se pode falar dele antes do meado do século 18. Houve invenções portuguesas referidas a uma vasta terra velhíssima, que vários grupos indígenas habitavam desde havia muito e que, antes deles, fôra, ao que indicam as novas teses,
habitada pelos parentes de Luzia -criatura mais próxima dos moradores da
África e da Austrália que das populações
mongóis propriamente ditas.
De Descobrimento, então, nem se fala:
além de inexato, o termo se tornou politicamente incorreto para todo o sempre,
ferindo, e com razão, o brio e a identidade
dos povos que, há pelo menos 12 mil
anos, vivem nesse solo que hoje chamamos brasileiro.
Povos que deixaram testemunhos: pinturas rupestres de diferente matiz, umas
mais estáticas, outras cheias de movimento; cerâmicas de tirar o fôlego, como
as da ilha de Marajó e as de Santarém, cada vez mais estudadas por especialistas
que sugerem sua anterioridade com relação às produzidas no Altiplano Andino;
uma arte plumária de arrepiar, em que o
senso estético atinge rara perfeição e
obriga a rever o lugar-comum sempre repetido sobre os antigos habitantes dessa
terra: seres que, sem escrita e sem cidades
(e havia cidades!!!), pertenciam a culturas
mais "primitivas" do que as dos povos da
banda oeste do continente, dos quais os
mais celebrados são aqueles a que se costuma chamar de Incas.
O que inventaram os portugueses, a
partir da quaresma de 1500?
Inventaram bastante coisa, mas já deixavam, então, de ser só portugueses. No
século 16, puseram um ou outro índio,
cocar na cabeça, a enfeitar os quadros
que se pintavam no reino. Cinzelaram
navetas em profusão: embarcaçõezinhas
de prata análogas às verdadeiras, as que
singravam os oceanos trazendo colonos e
animais, levando pau-brasil e ouro, açúcar e tabaco. Ainda no século 16, inventaram de trazer missionários: primeiro, os
jesuítas; depois, franciscanos, carmelitas,
mercedários...
Marcas do Novo Mundo
Para catequizar, muitos desses religiosos fizeram imagens santas, inspiradas
no ideário do Concílio de Trento e na estética do barroco. O resultado, já no século 17, mostrou as marcas do Novo Mundo: imagens mamelucas -ou, como diríamos hoje, acabocladas, sobretudo nas
regiões onde chegavam menos portugueses e sobrava (ainda) índio. Imagens capazes de sintetizar tradições díspares, incorporando até as gravuras e a estatuária
germânica, como aconteceu com Aleijadinho já no final do século 18.
Imagens, por fim, que, nas suas chinesices -cabelos bem puxados para trás,
olhos amendoados, policromias de motivos nitidamente orientais-, testemunham que o império português era "um
mundo em movimento" (como observou o historiador britânico John Russell-Wood), no qual as partes se interpenetravam e se influenciavam mutuamente.
Muita coisa, contudo, os portugueses
não inventaram -e tentaram até fazer
com que desaparecessem. Não pintaram
as terras que iam desmatando e cultivando com ferocidade, à moda, aliás, de todos os povos colonizadores.
Foi preciso que viessem holandeses invasores para que o Nordeste entrasse na história da arte
européia -ou melhor, para que
Nordeste e arte européia entrassem um no outro. Eckhout e
Franz Post, os pintores trazidos
por Maurício de Nassau, deixaram registros lindos da natureza
americana, inaugurando os
"olhares distantes" sobre ela
-olhares que, interrompidos no
século 18 devido às proibições impostas por Portugal no tocante à
circulação de estrangeiros em
suas colônias, foram revivificados, no início do século 19, pelas
novas levas de europeus que então chegavam ao reino do Brasil.
A corte, desde 1808, havia se mudado para o Rio de Janeiro, fugindo da invasão napoleônica e trazendo novos hábitos, inclusive estéticos.
Os portugueses também nunca
viram com bons olhos as manifestações culturais dos negros africanos (a escravidão, é bom lembrar,
foi reinventada, nos tempos modernos, pelos portugueses, que,
de forma pioneira, fizeram do tráfico uma atividade altamente lucrativa). Mas elas persistiram e
hoje constituem uma parte importantíssima da cultura do Brasil, mantendo suas características
próprias, milenares e, ao mesmo
tempo, fecundando a cultura do
país como um todo.
A Mostra do Redescobrimento
é um painel notável dessas reinvenções. Comemorar efemérides
pode ser discutível, caro demais e
até beirar o grotesco, como foi o
caso do naufrágio da nau brasileira. Pode ser terrível e traumático,
mostrando as piores entranhas do
país, como foi o caso dos episódios de Porto Seguro, onde se evitou a festa popular -o Carnaval...- e se tentou, sem povo,
uma absurda celebração oficial. A
Mostra dá conta do recado e talvez seja a única comemoração
digna do nome. Baseada nos pressupostos teóricos de Mário Pedrosa -de que a arte brasileira só
pode ter esse nome se der conta
de traduzir todas as suas manifestações, inclusive aquelas tradicionalmente tidas por marginais-,
fornece um belo retrato da cultura
do país.
Pluralidades
Parte do mérito está na ênfase
sobre o aspecto cultural: privilegia
culturas e, mesmo quando opta
por um eixo mais explicitamente
histórico -como é o caso da parte arqueológica, do "olhar distante" dos viajantes ou ainda do módulo sobre o barroco-, o fio condutor é essa pluralidade das manifestações, e não tanto a sua cronologia. O indivíduo também
conta menos que o grupo: não há
profusão de retratos, exaltação de
feitos militares, quase não ocorrem exageros em torno de um autor. Para as imagens barrocas, lá
estão as "oficinas" jesuíticas e beneditinas, a "escola" da Bahia, de
Minas e de Goiás -esta, é verdade, carregada quase que só pelo
escultor José Joaquim da Veiga
Vale-, o "grupo" de imagens de
procissão. No tocante aos pintores estrangeiros, em que pesem
personalidades excepcionais como a de Franz Post -está na
mostra uma das maiores exposições já feitas sobre ele-, o olhar
de uma época conta mais do que a
produção de um seu expoente.
Por outro lado, é digno de nota
que sujeitos históricos, aos quais
com frequência se furtam as mínimas condições de dignidade
humana, tenham lá destacada a
sua individualidade: extraordinários artistas alienados, lobotomizados, miseráveis, que sobrepõem seu impulso estético e criador às duras restrições do meio,
do cotidiano ou da circunstância
pessoal.
O que ressalta da Mostra pode
até ser óbvio para os espectadores
menos próximos -como sugere
Jean Galard num texto absolutamente excepcional, no catálogo
de "O Olhar Distante"-, mas
nem sempre se apresenta para
nós, brasileiros, com clareza suficiente: uma riqueza cultural rara,
uma capacidade considerável de
lidar com contrários, produzir
amálgamas originais, criar em
condições e situações muitas vezes impossíveis. De percorrer tendências, estilos, escolas, sempre
deixando as impressões digitais.
Como lembra Paulo Pereira no
seu comentário à "Carta de Caminha", nenhum país tem, como o
nosso, "certidão de descobrimento" com lugar, data, hora (e até
mapa astral: a carta de Mestre
João Faras, "o primeiro testemunho a descrever e estudar o céu
brasileiro"). Sem ufanismos, não
devem ser muitos os países capazes de exibir tantas tradições culturais distintas, e isso pode ser positivo e revigorante.
Há senões na Mostra, como os
há em tudo. Não na oca, impressionante de alto a baixo, e muito
feliz na cenografia, que serve à
Mostra e ressalta as peças. As árvores e o escurinho não chegam a
ser um senão no "Olhar Distante", que vale, acima de tudo, pela
beleza das peças expostas e inteligência do fio condutor. É um
achado chegar até a fotografia de
Victor Frond, Max Ferrez e Lévi-Strauss; entrar pelos "olhares" de
artistas do século 20 que aqui viveram, como Maria Helena Vieira
da Silva -com destaque para a
sua "Bahia Imaginada"- ou estiveram, como Anselm Kiefer.
Verdadeiros senões
O entorno da exposição da
"Carta de Caminha" é meio decepcionante, mesmo porque talvez fosse viável, neste momento
especial, trazer outras obras representativas do clima mental
português na época da expansão
marítima, como os painéis de Nuno Gonçalves, tão mal reproduzidos nas fotos que lá estão. Para
compensar, tem-se, pela primeira
vez, a "Carta" em carne e osso e,
no catálogo, além do texto já referido, uma transcrição do documento que se poderá tomar por
definitiva durante muito tempo
-ambos de autoria de Paulo Pereira.
Uma das grandes ressalvas -os
verdadeiros senões- consiste
nos excessos cenográficos. Detenho-me nos da mostra sobre o
barroco, pois trata de período que
conheço melhor. A seleção das
peças é excelente, a organização
dos núcleos temáticos é irretocável, o destaque dado à variedade
estilística e regional ajuda muito a
entender melhor o objeto. Que
beleza as imagens caipiras de São
Paulo, seja as do Museu de Arte
Sacra, seja as da notável coleção
de João Marino! Extraordinários
também os oratoriozinhos mineiros, ilustrativos da devoção doméstica; as imagens provenientes
das Missões, de traços nitidamente mestiços; as Santanas Mestras,
que traziam para a religiosidade
popular os temas da infância; os
Cristos tão sofridos -da pedra
fria, na coluna, crucificados; os
inúmeros São Miguel Arcanjo-
há um completo, com a balança e
as alminhas nos pratos dela, caso
bem raro, porque os elementos
variados que compõem a iconografia do Arcanjo se perdem através dos tempos e dificilmente são
encontrados juntos. Algumas peças mostram bem que, no barroco, popular e erudito se entretecem -como num presepiozinho
de Alagoas, com pastores e um
colorido que lembra manifestações populares nordestinas vivas
ainda hoje. O tom geral da exposição sugere que, mais do que um
estilo, o barroco constitui uma
quase "essência" da alma brasileira, aplicando-se, para o nosso caso, a idéia de uma "cultura barroca", cara a Maravall e, entre nós,
fadada à "longa duração".
Mas a cenografia... as florestas;
as flores coloridas, altas e baixas;
os labirintos e becos sem saída
confundem o espectador-visitante e encobrem as imagens extraordinárias, como um arranjo
orquestral barulhento que insiste
em deixar para segundo plano a
voz do cantor. É preciso ler, no catálogo, o texto claro e erudito de
Míriam Ribeiro de Oliveira para
entender a originalidade de sua
proposta. Quem conseguir chegar
no final da exposição -fui quatro
vezes, e só cheguei na última, pois
nas demais me perdi-, desembocará num módulo belíssimo,
onde a cenografia, bem resolvida,
ilustra a metamorfose da procissão em desfile de escola de samba,
e do barroco em carnaval. Terminando, assim, na marchinha com
que começamos esse passeio.
Mostra do Redescobrimento:
Arqueologia, Artes Indígenas,
Carta de Pero Vaz de Caminha,
Arte Barroca, O Olhar Distante
De 23/04 a 07/09/2000
Nelson Aguilar (curador geral)
Fundação Bienal de São Paulo:
Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais
(0/xx/11/5539-1930, ramal 372)
5 vols., 200, 216, 208, 264 e 304 págs.,
R$ 80,00 cada volume
Laura de Mello e Souza é professora de
história na USP e autora, entre outros, de
"Norma e Conflito - Aspectos da História
de Minas no Séc. 18" (Ed. UFMG).
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