São Paulo, sábado, 12 de agosto de 2000


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Mostra do Redescobrimento é discutida por três especialistas
Invenções do Brasil

LAURA DE MELLO E SOUZA

"Quem foi que inventou o Brasil?
Foi seu Cabral...
Foi seu Cabral...
No dia 21 de abril
Dois meses depois do Carnaval..."

E a marchinha de carnaval, tão velhinha, resolvera de forma bem satisfatória a questão que atormentou historiadores, antropólogos, arqueólogos e até presidentes da República, deste e do outro lado do Atlântico, nos últimos anos. Brasil não havia mesmo e, por amor da exatidão, não se pode falar dele antes do meado do século 18. Houve invenções portuguesas referidas a uma vasta terra velhíssima, que vários grupos indígenas habitavam desde havia muito e que, antes deles, fôra, ao que indicam as novas teses, habitada pelos parentes de Luzia -criatura mais próxima dos moradores da África e da Austrália que das populações mongóis propriamente ditas.
De Descobrimento, então, nem se fala: além de inexato, o termo se tornou politicamente incorreto para todo o sempre, ferindo, e com razão, o brio e a identidade dos povos que, há pelo menos 12 mil anos, vivem nesse solo que hoje chamamos brasileiro.
Povos que deixaram testemunhos: pinturas rupestres de diferente matiz, umas mais estáticas, outras cheias de movimento; cerâmicas de tirar o fôlego, como as da ilha de Marajó e as de Santarém, cada vez mais estudadas por especialistas que sugerem sua anterioridade com relação às produzidas no Altiplano Andino; uma arte plumária de arrepiar, em que o senso estético atinge rara perfeição e obriga a rever o lugar-comum sempre repetido sobre os antigos habitantes dessa terra: seres que, sem escrita e sem cidades (e havia cidades!!!), pertenciam a culturas mais "primitivas" do que as dos povos da banda oeste do continente, dos quais os mais celebrados são aqueles a que se costuma chamar de Incas.
O que inventaram os portugueses, a partir da quaresma de 1500?
Inventaram bastante coisa, mas já deixavam, então, de ser só portugueses. No século 16, puseram um ou outro índio, cocar na cabeça, a enfeitar os quadros que se pintavam no reino. Cinzelaram navetas em profusão: embarcaçõezinhas de prata análogas às verdadeiras, as que singravam os oceanos trazendo colonos e animais, levando pau-brasil e ouro, açúcar e tabaco. Ainda no século 16, inventaram de trazer missionários: primeiro, os jesuítas; depois, franciscanos, carmelitas, mercedários...

Marcas do Novo Mundo
Para catequizar, muitos desses religiosos fizeram imagens santas, inspiradas no ideário do Concílio de Trento e na estética do barroco. O resultado, já no século 17, mostrou as marcas do Novo Mundo: imagens mamelucas -ou, como diríamos hoje, acabocladas, sobretudo nas regiões onde chegavam menos portugueses e sobrava (ainda) índio. Imagens capazes de sintetizar tradições díspares, incorporando até as gravuras e a estatuária germânica, como aconteceu com Aleijadinho já no final do século 18.
Imagens, por fim, que, nas suas chinesices -cabelos bem puxados para trás, olhos amendoados, policromias de motivos nitidamente orientais-, testemunham que o império português era "um mundo em movimento" (como observou o historiador britânico John Russell-Wood), no qual as partes se interpenetravam e se influenciavam mutuamente.
Muita coisa, contudo, os portugueses não inventaram -e tentaram até fazer com que desaparecessem. Não pintaram as terras que iam desmatando e cultivando com ferocidade, à moda, aliás, de todos os povos colonizadores.
Foi preciso que viessem holandeses invasores para que o Nordeste entrasse na história da arte européia -ou melhor, para que Nordeste e arte européia entrassem um no outro. Eckhout e Franz Post, os pintores trazidos por Maurício de Nassau, deixaram registros lindos da natureza americana, inaugurando os "olhares distantes" sobre ela -olhares que, interrompidos no século 18 devido às proibições impostas por Portugal no tocante à circulação de estrangeiros em suas colônias, foram revivificados, no início do século 19, pelas novas levas de europeus que então chegavam ao reino do Brasil. A corte, desde 1808, havia se mudado para o Rio de Janeiro, fugindo da invasão napoleônica e trazendo novos hábitos, inclusive estéticos.
Os portugueses também nunca viram com bons olhos as manifestações culturais dos negros africanos (a escravidão, é bom lembrar, foi reinventada, nos tempos modernos, pelos portugueses, que, de forma pioneira, fizeram do tráfico uma atividade altamente lucrativa). Mas elas persistiram e hoje constituem uma parte importantíssima da cultura do Brasil, mantendo suas características próprias, milenares e, ao mesmo tempo, fecundando a cultura do país como um todo.
A Mostra do Redescobrimento é um painel notável dessas reinvenções. Comemorar efemérides pode ser discutível, caro demais e até beirar o grotesco, como foi o caso do naufrágio da nau brasileira. Pode ser terrível e traumático, mostrando as piores entranhas do país, como foi o caso dos episódios de Porto Seguro, onde se evitou a festa popular -o Carnaval...- e se tentou, sem povo, uma absurda celebração oficial. A Mostra dá conta do recado e talvez seja a única comemoração digna do nome. Baseada nos pressupostos teóricos de Mário Pedrosa -de que a arte brasileira só pode ter esse nome se der conta de traduzir todas as suas manifestações, inclusive aquelas tradicionalmente tidas por marginais-, fornece um belo retrato da cultura do país.

Pluralidades
Parte do mérito está na ênfase sobre o aspecto cultural: privilegia culturas e, mesmo quando opta por um eixo mais explicitamente histórico -como é o caso da parte arqueológica, do "olhar distante" dos viajantes ou ainda do módulo sobre o barroco-, o fio condutor é essa pluralidade das manifestações, e não tanto a sua cronologia. O indivíduo também conta menos que o grupo: não há profusão de retratos, exaltação de feitos militares, quase não ocorrem exageros em torno de um autor. Para as imagens barrocas, lá estão as "oficinas" jesuíticas e beneditinas, a "escola" da Bahia, de Minas e de Goiás -esta, é verdade, carregada quase que só pelo escultor José Joaquim da Veiga Vale-, o "grupo" de imagens de procissão. No tocante aos pintores estrangeiros, em que pesem personalidades excepcionais como a de Franz Post -está na mostra uma das maiores exposições já feitas sobre ele-, o olhar de uma época conta mais do que a produção de um seu expoente. Por outro lado, é digno de nota que sujeitos históricos, aos quais com frequência se furtam as mínimas condições de dignidade humana, tenham lá destacada a sua individualidade: extraordinários artistas alienados, lobotomizados, miseráveis, que sobrepõem seu impulso estético e criador às duras restrições do meio, do cotidiano ou da circunstância pessoal.
O que ressalta da Mostra pode até ser óbvio para os espectadores menos próximos -como sugere Jean Galard num texto absolutamente excepcional, no catálogo de "O Olhar Distante"-, mas nem sempre se apresenta para nós, brasileiros, com clareza suficiente: uma riqueza cultural rara, uma capacidade considerável de lidar com contrários, produzir amálgamas originais, criar em condições e situações muitas vezes impossíveis. De percorrer tendências, estilos, escolas, sempre deixando as impressões digitais. Como lembra Paulo Pereira no seu comentário à "Carta de Caminha", nenhum país tem, como o nosso, "certidão de descobrimento" com lugar, data, hora (e até mapa astral: a carta de Mestre João Faras, "o primeiro testemunho a descrever e estudar o céu brasileiro"). Sem ufanismos, não devem ser muitos os países capazes de exibir tantas tradições culturais distintas, e isso pode ser positivo e revigorante.
Há senões na Mostra, como os há em tudo. Não na oca, impressionante de alto a baixo, e muito feliz na cenografia, que serve à Mostra e ressalta as peças. As árvores e o escurinho não chegam a ser um senão no "Olhar Distante", que vale, acima de tudo, pela beleza das peças expostas e inteligência do fio condutor. É um achado chegar até a fotografia de Victor Frond, Max Ferrez e Lévi-Strauss; entrar pelos "olhares" de artistas do século 20 que aqui viveram, como Maria Helena Vieira da Silva -com destaque para a sua "Bahia Imaginada"- ou estiveram, como Anselm Kiefer.

Verdadeiros senões
O entorno da exposição da "Carta de Caminha" é meio decepcionante, mesmo porque talvez fosse viável, neste momento especial, trazer outras obras representativas do clima mental português na época da expansão marítima, como os painéis de Nuno Gonçalves, tão mal reproduzidos nas fotos que lá estão. Para compensar, tem-se, pela primeira vez, a "Carta" em carne e osso e, no catálogo, além do texto já referido, uma transcrição do documento que se poderá tomar por definitiva durante muito tempo -ambos de autoria de Paulo Pereira.
Uma das grandes ressalvas -os verdadeiros senões- consiste nos excessos cenográficos. Detenho-me nos da mostra sobre o barroco, pois trata de período que conheço melhor. A seleção das peças é excelente, a organização dos núcleos temáticos é irretocável, o destaque dado à variedade estilística e regional ajuda muito a entender melhor o objeto. Que beleza as imagens caipiras de São Paulo, seja as do Museu de Arte Sacra, seja as da notável coleção de João Marino! Extraordinários também os oratoriozinhos mineiros, ilustrativos da devoção doméstica; as imagens provenientes das Missões, de traços nitidamente mestiços; as Santanas Mestras, que traziam para a religiosidade popular os temas da infância; os Cristos tão sofridos -da pedra fria, na coluna, crucificados; os inúmeros São Miguel Arcanjo- há um completo, com a balança e as alminhas nos pratos dela, caso bem raro, porque os elementos variados que compõem a iconografia do Arcanjo se perdem através dos tempos e dificilmente são encontrados juntos. Algumas peças mostram bem que, no barroco, popular e erudito se entretecem -como num presepiozinho de Alagoas, com pastores e um colorido que lembra manifestações populares nordestinas vivas ainda hoje. O tom geral da exposição sugere que, mais do que um estilo, o barroco constitui uma quase "essência" da alma brasileira, aplicando-se, para o nosso caso, a idéia de uma "cultura barroca", cara a Maravall e, entre nós, fadada à "longa duração".
Mas a cenografia... as florestas; as flores coloridas, altas e baixas; os labirintos e becos sem saída confundem o espectador-visitante e encobrem as imagens extraordinárias, como um arranjo orquestral barulhento que insiste em deixar para segundo plano a voz do cantor. É preciso ler, no catálogo, o texto claro e erudito de Míriam Ribeiro de Oliveira para entender a originalidade de sua proposta. Quem conseguir chegar no final da exposição -fui quatro vezes, e só cheguei na última, pois nas demais me perdi-, desembocará num módulo belíssimo, onde a cenografia, bem resolvida, ilustra a metamorfose da procissão em desfile de escola de samba, e do barroco em carnaval. Terminando, assim, na marchinha com que começamos esse passeio.



Mostra do Redescobrimento: Arqueologia, Artes Indígenas, Carta de Pero Vaz de Caminha, Arte Barroca, O Olhar Distante De 23/04 a 07/09/2000
Nelson Aguilar (curador geral) Fundação Bienal de São Paulo: Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais (0/xx/11/5539-1930, ramal 372) 5 vols., 200, 216, 208, 264 e 304 págs., R$ 80,00 cada volume



Laura de Mello e Souza é professora de história na USP e autora, entre outros, de "Norma e Conflito - Aspectos da História de Minas no Séc. 18" (Ed. UFMG).

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