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A cultura brasileira por meio do humor
Estratagemas do riso
Raízes do Riso
Elias Thomé Saliba
Companhia das Letras
(Tel. 0/xx/11/3167-0801)
366 págs., R$ 39,50
ANGELA DE CASTRO GOMES
Quem sou eu? De onde venho e onde
o acaso me leva/ O destino fatal que
os meus passos conduz?/ Ora sigo, a
tatear, mergulhado na treva,/ Ora
tateio, indeciso e ofuscado pela luz. //
Quem és tu? Operário honesto da nação./ De onde vens? De casa./ Onde é
que estás? No bonde./ Para onde vás?
Não vês? Para a repartição.
Essa paródia de Bastos Tigre aos
versos penumbristas de Eduardo
Guimarães é um exemplo emblemático do humor dos anos da
"Belle Époque", evidenciando como o riso é coisa séria... Aliás, sabem disso todos os profissionais
do riso. Porque ele é tão sério, que
o ter como profissão é coisa para
poucos e competentes intelectuais. E nessa categoria estão muitos e variados intelectuais, desde
aqueles que filosofam sobre o ato
de rir até os que nos fazem rir por
meio de livros, revistas, rádio, cinema, televisão etc.
Temos assim filósofos que nos
ensinam que o homem é o único
animal que ri, o que transforma o
riso em atributo de humanidade,
tornando-o um precioso instrumento de reflexão, expressão e
crítica sociais. Fazer rir é difícil e
pode ser perigoso, quer para
aquele que provoca o riso, quer
para quem simplesmente ri. Por
isso, a figura do bobo da corte é
tão paradigmática da ambiguidade que constituiu a atividade do
cômico: ela é ao mesmo tempo
"poderosa", porque pode dizer/
criticar o que outros não podem, e
"menor" pela própria natureza de
sua forma de expressão. A grandeza e força do humor está assim,
paradoxalmente, no fato de ser
uma manifestação cultural considerada em "negativo" pelo pequeno mundo dos intelectuais:
não é séria, não é erudita.
É difícil ser um intelectual do riso, mas pode ser extremamente
gratificante, inclusive para um
historiador. Esse é o sentimento
que o leitor terá ao se debruçar sobre o livro de Elias Thomé Saliba
que agora participa desse diversificado conjunto, conseguindo nos
fazer pensar sobre as relações entre o riso e o Brasil e também nos
fazer rir com inúmeros e deliciosos exemplos de piadas, charadas,
caricaturas, charges, histórias e
poemas cômicos.
O título evoca o clássico do pensamento social brasileiro "Raízes
do Brasil", de Sérgio Buarque de
Holanda (1936). Entendo que
Elias quis tratar o riso como uma
das chaves possíveis para a compreensão da cultura do país, pois,
como qualquer pessoa sabe, piada
é algo muito "nacional", tanto que
piada "de gringo" às vezes não
tem graça nenhuma. Logo, o riso,
como o mito, é bom para pensar
uma cultura. De toda forma, mesmo que se possa perguntar se o riso realmente tem raízes, posso garantir que ele dá flores e frutos
quando cuidado pelo autor.
No texto, ele analisa as concepções e práticas humorísticas de
um período da história, a chamada "Belle Époque", que abarca,
grosso modo, as duas últimas décadas do século 19 e as três primeiras do 20. Um tempo de grandes transformações sociais no
mundo e no Brasil, que então viveu a abolição da escravidão e a
instauração da República, com
todas as esperanças e frustrações
que ambos os acontecimentos
produziram.
Um período no qual o país começou a ser moderno, convivendo com novas tecnologias na área
das comunicações, transportes e
modos de vida. Os bondes elétricos, o telégrafo, o telefone, os fogões que não usavam lenha, as
primeiras geladeiras etc. No circuito da mídia, ao lado do teatro,
dos jornais e das numerosas e populares revistas ilustradas, surge o
cinema, o rádio, os discos, a publicidade. A linguagem audiovisual,
a velocidade e o conforto passavam a ser signos do progresso,
povoando os desejos de consumo
de muitos, especialmente daqueles que habitavam algumas das cidades do país, como o Rio de Janeiro, a capital federal, e São Paulo que, a partir dos anos 1910, inicia seu grande crescimento urbano-industrial.
Artistas do traço e das letras
São essas cidades que fornecem
o cenário de atuação dos humoristas selecionados por Elias. Ele
trabalha, o que não é comum,
com intelectuais do Rio e de São
Paulo com vínculos entre si, mas
que têm características distintas
pelo momento em que surgem
com mais força e pelas próprias
condições e tradições intelectuais
que marcam cada uma dessas cidades. Por meio desses humoristas, o livro nos revela um rico e
agitado mundo cultural, ainda
pouco frequentado pelos estudos
na área das ciências sociais. E
quem são eles? No Rio, são homens de um novo jornalismo e
teatro, como José do Patrocínio
Filho, Raul Pederneiras, Bastos
Tigre, J. Carlos, Storni e Calixto,
cuja produção se afirma na virada
do século 19 para o 20 e que, no
caso de alguns, imprime sua marca até as décadas de 1940 e 1950.
Em São Paulo, as maiores figuras
são Belmonte, Bananére e Voltolino, entre outros, que explodem
nas décadas de 1910 e 1920.
Esses humoristas são intelectuais de vanguarda, polígrafos e
modernos sem serem modernistas, em sua maioria. Suas criações
marcaram não apenas a história
do humor no Brasil, mas também
a história da arte, pois são fantásticos artistas do traço e das letras.
Fantásticos, como nos mostra
Elias, porque inovam e fazem crítica na melhor tradição do cômico, utilizando o conteúdo e a forma de expressão artística como
seus instrumentos de fazer pensar
o social. Uma atividade crítica que
atinge as chamadas formas cultas
da escrita, que ousa no uso da língua (bem antes dos modernistas)
e que lança seus petardos no
mundo político e intelectual.
Nada escapa à argúcia e ao talento dos humoristas, que introduzem termos do linguajar popular em seus textos, que fazem chacota de estilos literários, que inventam novas línguas (misturando o português e o italiano), que
dão vida a personagens eternos (a
Melindrosa de J. Carlos e Juca Pato de Belmonte), que fazem rir
tanto com as esperanças que a política trazia, como principalmente
com as frustrações que produzia.
Fazem rir, no presente, pois, se a
política brasileira mudou muito
(e mudou mesmo), nesse humor
há elementos de uma cultura política que permanece numa duração maior e que escapa ao evento
e à conjuntura em que o produtor
cultural se insere.
É portanto no marco da melhor
história cultural que Elias trabalha, fazendo-nos entender a dinâmica e os estratagemas do riso (o
solavanco mental, o poema piada) e o contexto de disputas em
que viviam os humoristas. Isso
porque não era sempre divertida
a vida desses profissionais do riso.
Foram muitas e duras as lutas que
enfrentaram com os círculos de
intelectuais "sérios" e também
com os políticos, todos eles desconfiados da popularidade dos
humoristas e sempre prontos a
transitar para a irritação com sua
produção, taxada de menor, baixa
ou, no dizer de hoje, politicamente incorreta.
Elias mostra como, ao longo
desse período, estrutura-se uma
imagem da produção humorística como algo menor; algo que
precisa ser menosprezado para
que uma hierarquia de produtos e
produtores culturais seja sustentada. O humor era acusado de se
voltar para um amplo público, de
usar linguagens visuais e sonoras,
e principalmente de não ter como
suporte o livro, mas a revista ilustrada, os cartazes de publicidade,
a encenação teatral etc. Ou seja, o
humorserá associado ao popular
e aos novos meios de comunicação, muito problemáticos para a
"séria" intelectualidade da época.
Por tais razões, os humoristas
foram marginalizados pelos setores "eruditos" de sua época e,
mesmo posteriormente, continuaram a ser considerados "perdedores" no interior do pequeno
mundo intelectual. Elias destaca o
fato, mas a meu ver ainda acompanha em parte esse diagnóstico
que reconhece os humoristas como intelectuais, digamos, de uma
outra categoria. Acompanha, embora forneça muitos elementos
para uma visão distinta, que questione se esses humoristas realmente incorporaram essa "pele
de perdedores" e se tiveram e têm
um lugar menor na produção cultural do país.
Senão vejamos. Os humoristas
são intelectuais com enorme continuidade de atuação e com mobilidade entre as formas de expressão mais consumidas em seu tempo. E faziam grande sucesso, sendo reconhecidos, embora de forma diferenciada entre si.
É claro que isso ocorre em momentos distintos no Rio e São
Paulo e que no caso dos humoristas paulistas a luta com os modernistas é imediata e dura. Isso é
uma questão crucial de disputa
por espaço, não só dentro do
mundo intelectual, mas também
dentro do próprio humor. No
Rio, a situação foi diferente, mas
mesmo havendo uma certa perda
de status da boemia, os intelectuais humoristas sempre trabalharam muito. Sua produção não
diminuiu ao longo de décadas,
nem seu sucesso. Por isso, entendo que, mesmo atuando em veículos que não têm a duração do livro, os produtos culturais dos humoristas não são efêmeros, sobretudo considerando-se sua qualidade, continuidade e quantidade.
Por fim, a leitura do livro me
convenceu, e convencerá aos que
o lerem, que o humor e os intelectuais do riso são partes fundamentais da história cultural do
Brasil e, dessa maneira, do processo de construção de identidade
nacional, contribuindo com seu
olhar crítico e sua ousadia artística de maneira decisiva.
Angela de Castro Gomes é professora
de história do Brasil na Universidade Federal Fluminense e autora de "Essa Gente do Rio... Modernismo e Nacionalismo"
(Ed. FGV).
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