São Paulo, Sábado, 13 de Fevereiro de 1999
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Outros carnavais

MARIA CLEMENTINA CUNHA

Parece estranho, num país cuja identidade foi tão frequentemente associada às festas carnavalescas, que os dias da folia tenham permanecido por tanto tempo como uma terra quase virgem para os historiadores. Efetivamente, a maior parte dos livros publicados sobre o tema foram produzidos por antropólogos e sociólogos -para não falar dos folcloristas e memorialistas que ajudaram a cristalizar a imagem de antigos carnavais, conservada ainda hoje, quase sem contestação.
Às conhecidas generalizações de Roberto Da Matta sobre a festiva identidade brasileira vieram contrapor-se, no início desta década, os argumentos de Maria Isaura Pereira de Queiroz, plenos de teleologia sociológica. Méritos e defeitos de cada um deles à parte, enquanto o debate proliferava nesta seara, os historiadores mantinham-se mudos -salvos apenas pelo excelente trabalho de Leonardo Pereira, "O Carnaval das Letras", publicado em pequena edição logo esgotada pela Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro.
Assim, o novo livro de Rachel Soihet ajuda a saldar uma antiga dívida dos profissionais da história, pouco atentos até aqui aos significados da folia e seu imenso potencial heurístico para o passado do país. Na abertura do volume, a própria autora parece constrangida com a quase total ausência de interlocutores entre seus pares, duvidando mesmo se seria "lícito" a uma historiadora aventurar-se nesse território dominado por outras tribos acadêmicas. A leitura comprova que é mais que lícito.
Neste viés, a interpretação procura espaços pouco explorados pela bibliografia existente a fim de promover um inquérito voltado sobretudo para as relações do Carnaval com o poder e a dominação no período percorrido pela análise. Seus diferentes capítulos -sobre a Festa da Penha, as modalidades designadas como "populares" das brincadeiras de rua, o espaço conquistado pela música popular na e por intermédio da folia, as escolas de samba e sua construção enquanto símbolos máximos do Carnaval ou alguns significados da presença feminina nestas festas- estão abertamente empenhados em mergulhar nas fontes procurando os sujeitos da festa e seu movimento no tempo.
É o que Rachel Soihet tentou fazer -e isso torna, por si só, o livro uma contribuição relevante. Mais ainda, é bom lembrar, com a proximidade do quinto centenário do descobrimento do Brasil no ano 2000, cujas comemorações, ao que se anuncia, devem requentar amplamente esse tipo de simbologia nacionalista.
Evidentemente, a autora não poderia deixar de pagar algum preço por sua ousadia. Há vários reparos, de diferentes intensidades e embocaduras, a serem feitos ao resultado final. Entre eles, está a estrutura um tanto desconjuntada do volume, que intercala temas e recortes cronológicos cuja articulação nem sempre fica clara para o leitor. Notem-se ainda momentos de sensível descuido com o estilo, que aqui e ali compromete a qualidade da narrativa. O apoio por vezes excessivo da argumentação em bibliografia consagrada, mas pouco confiável, causa equívocos que poderiam ser facilmente evitados. Nesta mesma direção, a autora adota alguns elementos de periodização oriundos destas leituras "clássicas" que carregam pressupostos claramente evolucionistas e politicamente comprometidos -como a suposição de que o entrudo tem "estertores" no final do século 19, que este é o momento em que o Carnaval (seu oposto) "ascende" por meio de grupos organizados ou de que os ranchos são cordões mais civilizados.
Com todos os seus problemas -e talvez em parte por causa deles-, o livro coloca seus leitores no centro de um debate pertinente aos resultados que, de um modo geral, os historiadores vêm produzindo nesta área de pesquisas. Peter Burke sintetizou a questão em um seminário na Unicamp no qual se discutiu aquilo que constitui o objeto central da autora: a noção de "cultura popular". O experiente historiador inglês nos dizia então, em tom de blague, que via apenas dois pequenos problemas neste conceito. O primeiro era a impossibilidade de operar historicamente com a radical imprecisão do "popular"; o segundo, que historiadores não conseguem definir com um mínimo de exatidão aquilo que designam como "cultura".
Se não se trata de um problema exclusivo deste livro, deve-se notar que o texto de Rachel Soihet -até porque assume frontalmente o conceito, sem qualquer problematização- dá margem a uma boa reflexão sobre o tema. Nele podemos avaliar as dificuldades compreendidas na visão holística de cultura, da qual extrai dois pilares teóricos da sua análise: as noções de circularidade e resistência, entendidas como os mecanismos básicos da dinâmica cultural dos tais "populares".
A (boa) intenção é, evidentemente, atacar uma visão homogeneizadora como a "cultura nacional". Mas os pólos de oposição que formam esta totalidade são definidos, no caso, por um recorte estrito: a uma cultura popular corresponde o seu inverso -e complemento- na cultura dos dominantes (a terminologia é da autora), pensadas ambas como sistemas fechados. Assim, a festa é reduzida a um canal de comunicação "entre as classes sociais", por meio do qual se efetuam "interpenetração" ou resistência.
A "cultura popular", por sua vez, limita-se a algo como uma cultura dos pobres, às vezes definidos como trabalhadores urbanos. Em outros momentos, no entanto, ela é utilizada como sinônimo de cultura dos "negros", reivindicando a etnicidade como um aspecto estritamente racial e, ao mesmo tempo, ignorando seus complexos meandros e desvãos. Estas escolhas teóricas levam a autora até a sugerir uma "cultura pequeno-burguesa", derrotada na Cidade Nova pela "cultura negra e mestiça" das tias baianas e do samba. Noel Rosa, sambista branquelo de Vila Isabel, acaba aí reduzido a produto de uma discutível "interpenetração dos valores culturais da classe média e dos populares". O espectro de Bakhtin, principal referência teórica da autora, parece andar em círculos nestas velhas noites cariocas do início do século, deslocado e um tanto contrafeito neste cenário.
Melhor fazemos em deixá-lo de lado, para aproveitar a parte mais interessante do volume, o capítulo dedicado às escolas de samba. Para recuperar o processo de constituição destas verdadeiras instituições cariocas, a autora recorre a documentação original. Sobretudo, usa depoimentos diretos dos personagens de uma história ainda recente e articula com mais clareza um rico conjunto de informações novas. O resultado é instigante: embora ela não leve esta idéia às últimas consequências, pode-se ler nas suas entrelinhas o bem sucedido processo de construção da "autenticidade" de um Carnaval desenhado como sambeiro e popular, eleito entre as décadas de 1920 e 1940 como símbolo acabado da brasilidade. Entre os atores deste processo a autora faz desfilar membros da elite dirigente, intelectuais, artistas com diferentes graus de escolaridade e erudição, animados habitantes de favelas e subúrbios e muitos sujeitos que compartilharam a festa -mas não necessariamente seus significados.
O texto permite vislumbrar neste momento, e talvez involuntariamente, um outro caminho de interpretação que poderia adensar a releitura da festa e seus significados nas primeiras décadas do século 20. Afinal, a intensa massificação da cultura, que ele acaba retratando, não seria caminho bem mais denso e promissor para entender aquilo que se passava nas ruas nestes velhos carnavais de signos compartilhados, atribuição de autenticidade, diálogo e comunicação entre diferentes, busca de um espelho no qual a nação pudesse reconciliar-se em sua imagem festiva? Seja como for, até pelo que apenas indica para leitores mais atentos, o livro compensa o esforço dispendido por sua autora para livrar a história do Carnaval de sentidos que, construídos nas próprias décadas analisadas, tornaram-se cânones interpretativos ainda difíceis de superar.


A OBRA

A Subversão Pelo Riso - O Carnaval Carioca da Belle Époque ao Tempo de Vargas
Rachel Soihet Fundação Getúlio Vargas (Tel. 021/536-9110) 198 págs., R$ 25,00




Maria Clementina Pereira Cunha é professora de história na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).



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