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Outros carnavais
MARIA CLEMENTINA CUNHA
Parece estranho, num
país cuja identidade foi
tão frequentemente associada às festas carnavalescas, que os dias da folia tenham permanecido por tanto
tempo como uma terra quase virgem para os historiadores. Efetivamente, a maior parte dos livros
publicados sobre o tema foram
produzidos por antropólogos e
sociólogos -para não falar dos
folcloristas e memorialistas que
ajudaram a cristalizar a imagem
de antigos carnavais, conservada
ainda hoje, quase sem contestação.
Às conhecidas generalizações de
Roberto Da Matta sobre a festiva
identidade brasileira vieram contrapor-se, no início desta década,
os argumentos de Maria Isaura
Pereira de Queiroz, plenos de teleologia sociológica. Méritos e defeitos de cada um deles à parte, enquanto o debate proliferava nesta
seara, os historiadores mantinham-se mudos -salvos apenas
pelo excelente trabalho de Leonardo Pereira, "O Carnaval das Letras", publicado em pequena edição logo esgotada pela Secretaria
Municipal de Cultura do Rio de Janeiro.
Assim, o novo livro de Rachel
Soihet ajuda a saldar uma antiga
dívida dos profissionais da história, pouco atentos até aqui aos significados da folia e seu imenso potencial heurístico para o passado
do país. Na abertura do volume, a
própria autora parece constrangida com a quase total ausência de
interlocutores entre seus pares,
duvidando mesmo se seria "lícito" a uma historiadora aventurar-se nesse território dominado
por outras tribos acadêmicas. A
leitura comprova que é mais que
lícito.
Neste viés, a interpretação procura espaços pouco explorados
pela bibliografia existente a fim de
promover um inquérito voltado
sobretudo para as relações do Carnaval com o poder e a dominação
no período percorrido pela análise. Seus diferentes capítulos -sobre a Festa da Penha, as modalidades designadas como "populares" das brincadeiras de rua, o espaço conquistado pela música popular na e por intermédio da folia,
as escolas de samba e sua construção enquanto símbolos máximos
do Carnaval ou alguns significados da presença feminina nestas
festas- estão abertamente empenhados em mergulhar nas fontes
procurando os sujeitos da festa e
seu movimento no tempo.
É o que Rachel Soihet tentou fazer -e isso torna, por si só, o livro
uma contribuição relevante. Mais
ainda, é bom lembrar, com a proximidade do quinto centenário do
descobrimento do Brasil no ano
2000, cujas comemorações, ao que
se anuncia, devem requentar amplamente esse tipo de simbologia
nacionalista.
Evidentemente, a autora não poderia deixar de pagar algum preço
por sua ousadia. Há vários reparos, de diferentes intensidades e
embocaduras, a serem feitos ao
resultado final. Entre eles, está a
estrutura um tanto desconjuntada
do volume, que intercala temas e
recortes cronológicos cuja articulação nem sempre fica clara para o
leitor. Notem-se ainda momentos
de sensível descuido com o estilo,
que aqui e ali compromete a qualidade da narrativa. O apoio por vezes excessivo da argumentação em
bibliografia consagrada, mas pouco confiável, causa equívocos que
poderiam ser facilmente evitados.
Nesta mesma direção, a autora
adota alguns elementos de periodização oriundos destas leituras
"clássicas" que carregam pressupostos claramente evolucionistas
e politicamente comprometidos
-como a suposição de que o entrudo tem "estertores" no final
do século 19, que este é o momento em que o Carnaval (seu oposto)
"ascende" por meio de grupos
organizados ou de que os ranchos
são cordões mais civilizados.
Com todos os seus problemas
-e talvez em parte por causa deles-, o livro coloca seus leitores
no centro de um debate pertinente
aos resultados que, de um modo
geral, os historiadores vêm produzindo nesta área de pesquisas. Peter Burke sintetizou a questão em
um seminário na Unicamp no
qual se discutiu aquilo que constitui o objeto central da autora: a
noção de "cultura popular". O
experiente historiador inglês nos
dizia então, em tom de blague, que
via apenas dois pequenos problemas neste conceito. O primeiro
era a impossibilidade de operar
historicamente com a radical imprecisão do "popular"; o segundo, que historiadores não conseguem definir com um mínimo de
exatidão aquilo que designam como "cultura".
Se não se trata de um problema
exclusivo deste livro, deve-se notar que o texto de Rachel Soihet
-até porque assume frontalmente o conceito, sem qualquer problematização- dá margem a uma
boa reflexão sobre o tema. Nele
podemos avaliar as dificuldades
compreendidas na visão holística
de cultura, da qual extrai dois pilares teóricos da sua análise: as noções de circularidade e resistência,
entendidas como os mecanismos
básicos da dinâmica cultural dos
tais "populares".
A (boa) intenção é, evidentemente, atacar uma visão homogeneizadora como a "cultura nacional". Mas os pólos de oposição
que formam esta totalidade são
definidos, no caso, por um recorte
estrito: a uma cultura popular corresponde o seu inverso -e complemento- na cultura dos dominantes (a terminologia é da autora), pensadas ambas como sistemas fechados. Assim, a festa é reduzida a um canal de comunicação "entre as classes sociais", por
meio do qual se efetuam "interpenetração" ou resistência.
A "cultura popular", por sua
vez, limita-se a algo como uma
cultura dos pobres, às vezes definidos como trabalhadores urbanos. Em outros momentos, no entanto, ela é utilizada como sinônimo de cultura dos "negros", reivindicando a etnicidade como um
aspecto estritamente racial e, ao
mesmo tempo, ignorando seus
complexos meandros e desvãos.
Estas escolhas teóricas levam a autora até a sugerir uma "cultura
pequeno-burguesa", derrotada
na Cidade Nova pela "cultura negra e mestiça" das tias baianas e
do samba. Noel Rosa, sambista
branquelo de Vila Isabel, acaba aí
reduzido a produto de uma discutível "interpenetração dos valores
culturais da classe média e dos populares". O espectro de Bakhtin,
principal referência teórica da autora, parece andar em círculos
nestas velhas noites cariocas do
início do século, deslocado e um
tanto contrafeito neste cenário.
Melhor fazemos em deixá-lo de
lado, para aproveitar a parte mais
interessante do volume, o capítulo
dedicado às escolas de samba. Para recuperar o processo de constituição destas verdadeiras instituições cariocas, a autora recorre a
documentação original. Sobretudo, usa depoimentos diretos dos
personagens de uma história ainda recente e articula com mais clareza um rico conjunto de informações novas. O resultado é instigante: embora ela não leve esta idéia
às últimas consequências, pode-se
ler nas suas entrelinhas o bem sucedido processo de construção da
"autenticidade" de um Carnaval
desenhado como sambeiro e popular, eleito entre as décadas de
1920 e 1940 como símbolo acabado da brasilidade. Entre os atores
deste processo a autora faz desfilar
membros da elite dirigente, intelectuais, artistas com diferentes
graus de escolaridade e erudição,
animados habitantes de favelas e
subúrbios e muitos sujeitos que
compartilharam a festa -mas não
necessariamente seus significados.
O texto permite vislumbrar neste momento, e talvez involuntariamente, um outro caminho de
interpretação que poderia adensar
a releitura da festa e seus significados nas primeiras décadas do século 20. Afinal, a intensa massificação da cultura, que ele acaba retratando, não seria caminho bem
mais denso e promissor para entender aquilo que se passava nas
ruas nestes velhos carnavais de
signos compartilhados, atribuição
de autenticidade, diálogo e comunicação entre diferentes, busca de
um espelho no qual a nação pudesse reconciliar-se em sua imagem festiva? Seja como for, até pelo que apenas indica para leitores
mais atentos, o livro compensa o
esforço dispendido por sua autora
para livrar a história do Carnaval
de sentidos que, construídos nas
próprias décadas analisadas, tornaram-se cânones interpretativos
ainda difíceis de superar.
A OBRA
A Subversão Pelo Riso - O Carnaval Carioca da Belle Époque ao Tempo de Vargas
Rachel Soihet
Fundação Getúlio Vargas (Tel. 021/536-9110)
198 págs., R$ 25,00
Maria Clementina Pereira Cunha é professora
de história na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
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