São Paulo, Sábado, 13 de Fevereiro de 1999
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Nossos ancestrais

RENATO DA SILVA QUEIROZ

Poucos assuntos científicos têm merecido tanto destaque na mídia internacional quanto os anúncios de novas descobertas paleantropológicas. E não é para menos, pois essas evidências fósseis iluminam a obscura trajetória das nossas origens. Daquelas encontradas em sítios de pesquisa na Tanzânia, Quênia e Etiópia, sabe-se que conferem reforço empírico ao "insight" de Charles Darwin, segundo o qual, malgrado o postulado criacionista, os primeiros humanos evoluíram no continente africano a partir de ancestrais simiescos.
Ciência altamente complexa e sofisticada, a paleantropologia contemporânea reúne estudiosos cujo prestígio advém dos significativos fósseis que desenterram. Alguns desses pesquisadores chegam mesmo a migrar dos restritos nichos acadêmicos para os documentários da televisão, donde a merecida notoriedade que conquistam. O queniano Richard Leakey e o norte-americano Donald Johanson encabeçam, com inegável mérito, a lista dos mais famosos. O primeiro, gravemente ferido em recente acidente aéreo (em que perdeu, lamentavelmente, ambas as pernas, num momento em que também se indispunha com os governantes de seu país), parece estar sendo eclipsado por Johanson, fundador e dirigente do Instituto das Origens Humanas, na Universidade da Califórnia em Berkeley.
Johanson detém os louros de uma das mais extraordinárias descobertas já registradas no campo da paleantropologia: encontrou, na região de Afar, Etiópia, cerca de 40% do esqueleto fossilizado de um hominídeo que vivera havia 3,5 milhões de anos. Mais conhecido por "Lucy", esse fóssil foi descrito por Johanson e seu parceiro Tim White como um exemplar de "Australopithecus afarensis" -o ancestral comum de todos os hominídeos subsequentes, dos demais australopitecíneos como também daquelas espécies classificadas no próprio gênero "Homo". Johanson e M.A. Edey relatam em detalhes esse caso e suas repercussões na arena científica no livro "Lucy - Os Primórdios da Humanidade", editado em português pela Bertrand Brasil (1998).
Agora, com "O Filho de Lucy", Donald Johanson e seu novo colaborador, James Shreeve, retornam à África, ao trabalho de campo em locais distantes e inóspitos, evocando a escassez de verbas e as dificuldades burocráticas para obtenção de licença de pesquisa em território africano. Escrito numa linguagem envolvente, despida de jargão acadêmico, e fartamente ilustrado, o livro proporciona ao leitor informações preciosas a respeito das técnicas de datação do material fóssil, procedimentos metodológicos, dados geológicos, instrumentos e estratégias de pesquisa, sem deixar de lado, é claro, as interpretações pertinentes à evolução humana. Quanto a este último aspecto, são particularmente esclarecedores os segmentos reservados ao histórico dos mais expressivos achados paleantropológicos e seus respectivos autores, ademais das necessárias ressalvas de que as teorias científicas sempre são, em alguma medida, cativas da mentalidade vigente (incluindo-se aí preconceitos e ideologias) nos períodos históricos em que ganham vida.
Dessa feita, Johanson encontra-se na Tanzânia, mais precisamente na garganta Olduvai, território de pesquisa da ilustre família Leakey, cenário de achados notáveis relativos aos primórdios da evolução humana. As suas relações com os Leakeys, outrora cordiais, deterioraram-se, segundo Johanson, desde a publicação do artigo em que ele e Tim White propuseram a controvertida teoria de que o "afarensis" ocupava a posição de ancestral direto tanto das outras espécies australopitecíneas quanto da linhagem humana. Os Leakeys, que insistiam na tese de que as primeiras espécies de "Homo" emergiram há bem mais de 3,5 milhões de anos, mostraram-se, a partir daí, profundamente contrariados. Compreende-se assim o que representou a ida de Johanson e sua equipe para uma região de pesquisa assenhorada durante longos anos pelos Leakeys, como se lê na obra em apreço.
Em poucas semanas de trabalho em Olduvai, em 1986, Johanson e sua equipe de lá extraíram os restos fossilizados de um "Homo habilis", um representante da primeira espécie humana verdadeira, de cerca de 2 milhões de anos. Nas palavras dos autores, "este hominídeo, com um corpo semelhante ao de Lucy, mas presumivelmente com um cérebro bem mais capaz do que o dela, era "Homo habilis". O filho de Lucy. "Homo". Um de nós". Objeto de pormenorizado exame em laboratório, o espécime revelara fortes indícios, quanto ao tamanho e à estrutura, de que a primeira espécie humana teria feições mais primitivas do que até então se supunha.
Sendo esses nossos ancestrais tão primitivos, o que, então, nos tornou humanos? A despeito desses traços, o "habilis", conforme apontado acima, já era senhor de um cérebro maior que o do "afarensis". Um cérebro expandido nos torna flexíveis, assinalam Johanson e Shreeve, e por isso capazes de obter e transmitir conhecimentos. Assim, "o que distinguiu o "Homo habilis" e definiu o nicho humano não foi a caça nem a necrofagia nem mesmo a capacidade de usar bastões para escavar nem nenhuma ferramenta em si, mas a compreensão de possibilidades numa paisagem nada prometedora. Um animal interesseiro".
Em larga medida, prosseguem, deve-se tomar a própria sociedade como a força propulsora da inteligência dos primatas em geral e, sobretudo, o principal estímulo para a magnífica inteligência do homem. Por consequência, astutas alianças intragrupais e competição entre integrantes de grupos rivais teriam favorecido a evolução humana. Por sua vez, um crescente predomínio ecológico, alcançado ao longo dessa trajetória, revelou-se igualmente prenhe de valor adaptativo.
Tais enfoques interpretativos, reconhecem os próprios autores, provêm de disciplinas variadas -primatologia, sociobiologia e ecologia, entre outras. Atentos à lição de que as idéias costumam expressar o contexto em que são concebidas, Johanson e Shreeve não se descuidam de um sistemático autoquestionamento. Nessa medida, ressaltam que o predomínio ecológico, sustentado pela arrogante presunção de que fomos criados separadamente para um destino próprio, estando as demais espécies do planeta submissas às nossas vontades, ameaça-nos na atualidade com uma progressiva degradação ambiental. De outro lado, as intensas disputas intergrupais pela hegemonia de poder, não obstante o valor adaptativo que possam ter tido em nosso passado evolutivo, já nos levaram à ante-sala do holocausto nuclear. Como se vê, a paleantropologia não se ocupa apenas de ossos fossilizados.


A OBRA

O Filho de Lucy
Donald Johanson e James Shreeve Tradução: Fernando Py Bertrand Brasil (Tel. 021/263-2082) 432 págs., R$ 45,00




Renato da Silva Queiroz é professor do departamento de antropologia da USP.



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