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Nossos ancestrais
RENATO DA SILVA QUEIROZ
Poucos assuntos científicos têm merecido tanto
destaque na mídia internacional quanto os
anúncios de novas descobertas paleantropológicas. E não é para menos, pois essas evidências fósseis
iluminam a obscura trajetória das
nossas origens. Daquelas encontradas em sítios de pesquisa na
Tanzânia, Quênia e Etiópia, sabe-se que conferem reforço empírico ao "insight" de Charles Darwin, segundo o qual, malgrado o
postulado criacionista, os primeiros humanos evoluíram no continente africano a partir de ancestrais simiescos.
Ciência altamente complexa e
sofisticada, a paleantropologia
contemporânea reúne estudiosos
cujo prestígio advém dos significativos fósseis que desenterram.
Alguns desses pesquisadores chegam mesmo a migrar dos restritos
nichos acadêmicos para os documentários da televisão, donde a
merecida notoriedade que conquistam. O queniano Richard Leakey e o norte-americano Donald
Johanson encabeçam, com inegável mérito, a lista dos mais famosos. O primeiro, gravemente ferido em recente acidente aéreo (em
que perdeu, lamentavelmente,
ambas as pernas, num momento
em que também se indispunha
com os governantes de seu país),
parece estar sendo eclipsado por
Johanson, fundador e dirigente do
Instituto das Origens Humanas,
na Universidade da Califórnia em
Berkeley.
Johanson detém os louros de
uma das mais extraordinárias descobertas já registradas no campo
da paleantropologia: encontrou,
na região de Afar, Etiópia, cerca de
40% do esqueleto fossilizado de
um hominídeo que vivera havia
3,5 milhões de anos. Mais conhecido por "Lucy", esse fóssil foi
descrito por Johanson e seu parceiro Tim White como um exemplar de "Australopithecus afarensis" -o ancestral comum de todos os hominídeos subsequentes,
dos demais australopitecíneos como também daquelas espécies
classificadas no próprio gênero
"Homo". Johanson e M.A. Edey
relatam em detalhes esse caso e
suas repercussões na arena científica no livro "Lucy - Os Primórdios da Humanidade", editado
em português pela Bertrand Brasil
(1998).
Agora, com "O Filho de Lucy",
Donald Johanson e seu novo colaborador, James Shreeve, retornam
à África, ao trabalho de campo em
locais distantes e inóspitos, evocando a escassez de verbas e as dificuldades burocráticas para obtenção de licença de pesquisa em
território africano. Escrito numa
linguagem envolvente, despida de
jargão acadêmico, e fartamente
ilustrado, o livro proporciona ao
leitor informações preciosas a respeito das técnicas de datação do
material fóssil, procedimentos
metodológicos, dados geológicos,
instrumentos e estratégias de pesquisa, sem deixar de lado, é claro,
as interpretações pertinentes à
evolução humana. Quanto a este
último aspecto, são particularmente esclarecedores os segmentos reservados ao histórico dos
mais expressivos achados paleantropológicos e seus respectivos autores, ademais das necessárias ressalvas de que as teorias científicas
sempre são, em alguma medida,
cativas da mentalidade vigente
(incluindo-se aí preconceitos e
ideologias) nos períodos históricos em que ganham vida.
Dessa feita, Johanson encontra-se na Tanzânia, mais precisamente na garganta Olduvai, território de pesquisa da ilustre família
Leakey, cenário de achados notáveis relativos aos primórdios da
evolução humana. As suas relações com os Leakeys, outrora cordiais, deterioraram-se, segundo
Johanson, desde a publicação do
artigo em que ele e Tim White
propuseram a controvertida teoria de que o "afarensis" ocupava
a posição de ancestral direto tanto
das outras espécies australopitecíneas quanto da linhagem humana.
Os Leakeys, que insistiam na tese
de que as primeiras espécies de
"Homo" emergiram há bem
mais de 3,5 milhões de anos, mostraram-se, a partir daí, profundamente contrariados. Compreende-se assim o que representou a
ida de Johanson e sua equipe para
uma região de pesquisa assenhorada durante longos anos pelos
Leakeys, como se lê na obra em
apreço.
Em poucas semanas de trabalho
em Olduvai, em 1986, Johanson e
sua equipe de lá extraíram os restos fossilizados de um "Homo habilis", um representante da primeira espécie humana verdadeira,
de cerca de 2 milhões de anos. Nas
palavras dos autores, "este hominídeo, com um corpo semelhante
ao de Lucy, mas presumivelmente
com um cérebro bem mais capaz
do que o dela, era "Homo habilis".
O filho de Lucy. "Homo". Um de
nós". Objeto de pormenorizado
exame em laboratório, o espécime
revelara fortes indícios, quanto ao
tamanho e à estrutura, de que a
primeira espécie humana teria feições mais primitivas do que até
então se supunha.
Sendo esses nossos ancestrais
tão primitivos, o que, então, nos
tornou humanos? A despeito desses traços, o "habilis", conforme
apontado acima, já era senhor de
um cérebro maior que o do "afarensis". Um cérebro expandido
nos torna flexíveis, assinalam Johanson e Shreeve, e por isso capazes de obter e transmitir conhecimentos. Assim, "o que distinguiu
o "Homo habilis" e definiu o nicho humano não foi a caça nem a
necrofagia nem mesmo a capacidade de usar bastões para escavar
nem nenhuma ferramenta em si,
mas a compreensão de possibilidades numa paisagem nada prometedora. Um animal interesseiro".
Em larga medida, prosseguem,
deve-se tomar a própria sociedade
como a força propulsora da inteligência dos primatas em geral e,
sobretudo, o principal estímulo
para a magnífica inteligência do
homem. Por consequência, astutas alianças intragrupais e competição entre integrantes de grupos
rivais teriam favorecido a evolução humana. Por sua vez, um crescente predomínio ecológico, alcançado ao longo dessa trajetória,
revelou-se igualmente prenhe de
valor adaptativo.
Tais enfoques interpretativos,
reconhecem os próprios autores,
provêm de disciplinas variadas
-primatologia, sociobiologia e
ecologia, entre outras. Atentos à
lição de que as idéias costumam
expressar o contexto em que são
concebidas, Johanson e Shreeve
não se descuidam de um sistemático autoquestionamento. Nessa
medida, ressaltam que o predomínio ecológico, sustentado pela arrogante presunção de que fomos
criados separadamente para um
destino próprio, estando as demais espécies do planeta submissas às nossas vontades, ameaça-nos na atualidade com uma
progressiva degradação ambiental. De outro lado, as intensas disputas intergrupais pela hegemonia de poder, não obstante o valor
adaptativo que possam ter tido em
nosso passado evolutivo, já nos levaram à ante-sala do holocausto
nuclear. Como se vê, a paleantropologia não se ocupa apenas de
ossos fossilizados.
A OBRA
O Filho de Lucy
Donald Johanson e James Shreeve
Tradução: Fernando Py
Bertrand Brasil (Tel. 021/263-2082)
432 págs., R$ 45,00
Renato da Silva Queiroz é professor do departamento de antropologia da USP.
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