São Paulo, Sábado, 13 de Fevereiro de 1999
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Uma inquietante atualidade

RICARDO MUSSE

Nada mais fugidio que entrevistas. Seja pelo veículo, seja pela proeminência do agora, foco permanente de atenção e orientação. Nas entrevistas de teor político o caráter datado, próprio do gênero, intensifica-se. As inevitáveis análises de conjuntura e a prospecção do futuro dão o tom. Passado um certo tempo, poucas ainda guardam algum interesse. Servem no máximo para confrontar a posição atual do autor com a anterior ou para aferir sua capacidade de prognosticar o futuro.
Talvez daqui a 25 anos essa regra valha para a série de entrevistas que Noam Chomsky concedeu a David Barsamian. Mas, por ora, conservam uma estranha e inquietante atualidade. Parte desse segredo resulta da tentativa de compreensão histórica dos objetos, da construção explicativa que procura remontar toda a trajetória dos fenômenos. Parte deve-se à intenção de destacar as linhas de força, as constantes estruturais responsáveis inclusive pela fugacidade e mutabilidade dos eventos.
"A Luta de Classes" -o mais recente volume de uma série que cobre um período de mais de dez anos (algumas delas publicadas no Brasil pela Editora UnB)- congrega seis entrevistas concedidas entre dezembro de 1994 e janeiro de 1996. Nelas, Chomsky pouco fala dos assuntos de sua especialidade acadêmica, linguística e filosofia (uma versão recente de sua posição sobre esses temas pode ser encontrada na coletânea de conferências "Os Caminhos do Poder", também editado pela Artmed), bastante da política externa americana, como seria de se esperar, mas concede um espaço ainda maior à política interna dos EUA e aos temas econômicos.
No campo externo, privilegia os episódios de anexação do Timor Leste pela Indonésia -apoiada especialmente pela Austrália e pelos EUA-, com seu cortejo de horrores (o massacre de quase um terço de sua população) e a "paz" entre Israel e os palestinos (para Chomsky, apenas a constituição de um novo "apartheid"). Já a atenção preferencial à situação interna americana deve-se à ascensão dos "novos republicanos" liderados por Newt Gingrich.
Camuflando um programa econômico antipopular de desmantelamento da rede de proteção social, sob a capa de "questões culturais", estes propõem uma falsa "reconstrução da civilização americana" à maneira da propaganda dos adeptos de Hitler na Alemanha dos anos 20. Chomsky destaca aí uma contradição: por mais que esse projeto beneficie a elite econômica, seu fanatismo "religioso" não deixa de assustar uma parcela ponderável dos mais ricos, habituados com os benefícios da modernização dos costumes.
A ascensão republicana evidencia o desgaste da democracia americana, ou melhor, o progressivo abandono das práticas e ideais liberais. Diga-se de passagem, um tema recorrente na melhor análise política dessa década, como se pode ver, por exemplo -para me limitar a três obras traduzidas no Brasil nesse período- em "Os Últimos Intelectuais", de Russell Jacoby (Edusp), em "O Medo da Queda", de Barbara Ehrenreich (Scritta), ou em "A Rebelião das Elites e a Traição da Democracia", de Christopher Lasch (Ediouro). Para Chomsky, a fragilização da democracia se prende ao surgimento de um novo contexto econômico e político no qual o "fundamentalismo" dos republicanos é, certamente, uma posição extremada, mas não destoante.
A partir dos anos 60, temerosa diante das conquistas sociais e do crescente poder político e econômico dos trabalhadores, a classe empresarial americana passou a conduzir uma guerra sem tréguas contra o mundo do trabalho.
Atacando em todas as frentes, do chão da fábrica à propaganda subliminar dos filmes de Hollywood, a comunidade empresarial aplicou a maior parte de suas energias (e alguns bilhões de dólares) num esforço, até agora muito bem-sucedido, para conter e reverter as premissas de um contrato social conquistado pelos trabalhadores ao longo de um século e meio de lutas: a democracia, os direitos humanos e a estrutura do Estado de Bem-Estar.
O resultado dessa "luta de classes" delineia-se, para Chomsky, cada vez mais nitidamente como substituição de um modelo no qual interessava às empresas remunerar bem seus trabalhadores, já que eles eram também os principais consumidores, por um projeto de capitalismo "terceiro-mundista". A internacionalização do capitalismo, pela disseminação dos elos da cadeia produtiva, abrange também o mercado de consumo. A ampliação das redes de transporte e crédito possibilita que uma parcela ponderável da produção, outrora orientada para um mercado interno de massas, seja destinada às minorias ricas de todos os países e continentes, o que não deixa de significar um ganho de escala.
Os efeitos dessa nova configuração econômica não tardaram a ser notados, seja nos EUA, seja nos países periféricos. Na América do Norte, o Estado não perde o seu caráter de provedor, só que agora os maiores beneficiados são os setores mais ricos da população. Enquanto diminuem -em nome do déficit público e da crise fiscal- os subsídios para transportes urbanos de massa, intensifica-se a ajuda -via Pentágono- a grandes empresas e corporações. Por conseguinte fortalece-se também, na medida em que se desmonta o sistema previdenciário, o aparato policial e repressor. Durante os anos 80, a população carcerária triplicou...
Na periferia, inspiradora desse novo perfil do capitalismo, a situação torna-se ainda mais dramática. Instigados a abandonar qualquer forma de protecionismo (tática que, insiste Chomsky, permitiu aos países hoje ricos, sem exceção, chegar onde estão); incentivados a privatizar suas empresas públicas, diminuindo sobremaneira sua capacidade de intervenção e resistência; submetidos ao jugo de uma dívida recorrente contraída pela minoria rica, geralmente para elevar ainda mais seu incomparável padrão de vida; o resultado só poderia ser uma ampliação das desigualdades, conjugada com o debilitamento da já parca democracia e direitos.
As origens desse processo remontariam aos fins do século 19, quando as corporações assumem o controle do capitalismo, num período de concentração e centralização do poder que não por acaso engendrou também o fascismo e o bolchevismo. O predomínio das instituições bancárias e das corporações industriais, cada vez mais concentradas, antes mesmo da atual onda de megafusões (num cenário em que as 500 maiores empresas controlam 63% do PIB norte-americano), instaura, segundo ele, uma nova forma de tirania, cujos braços mais visíveis constituem uma espécie de "governo mundial de fato": o FMI, a OMC, o Banco Mundial etc. Nesse novo cenário não é só o papel da democracia, dos direitos e do contrato social que muda radicalmente, a própria ordem econômica, isto é, o capitalismo, torna-se cada vez mais -numa fórmula bastante conhecida entre nós- uma forma de privatização dos lucros e de socialização dos custos e dos riscos.


A OBRA

A Luta de Classes - Entrevistas a David Barsamian
Noam Chomsky Tradução: Dayse Batista Artmed (Tel. 051/330-3444) 164 pág., R$ 23,00




Ricardo Musse é professor de filosofia na Unesp (Universidade Estadual Paulista).



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