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Uma inquietante atualidade
RICARDO MUSSE
Nada mais fugidio que entrevistas. Seja pelo veículo, seja pela proeminência do agora, foco
permanente de atenção e orientação. Nas entrevistas de teor político o caráter datado, próprio do gênero, intensifica-se. As inevitáveis
análises de conjuntura e a prospecção do futuro dão o tom. Passado um certo tempo, poucas ainda guardam algum interesse. Servem no máximo para confrontar a
posição atual do autor com a anterior ou para aferir sua capacidade
de prognosticar o futuro.
Talvez daqui a 25 anos essa regra
valha para a série de entrevistas
que Noam Chomsky concedeu a
David Barsamian. Mas, por ora,
conservam uma estranha e inquietante atualidade. Parte desse segredo resulta da tentativa de compreensão histórica dos objetos, da
construção explicativa que procura remontar toda a trajetória dos
fenômenos. Parte deve-se à intenção de destacar as linhas de força,
as constantes estruturais responsáveis inclusive pela fugacidade e
mutabilidade dos eventos.
"A Luta de Classes" -o mais
recente volume de uma série que
cobre um período de mais de dez
anos (algumas delas publicadas no
Brasil pela Editora UnB)- congrega seis entrevistas concedidas
entre dezembro de 1994 e janeiro
de 1996. Nelas, Chomsky pouco
fala dos assuntos de sua especialidade acadêmica, linguística e filosofia (uma versão recente de sua
posição sobre esses temas pode ser
encontrada na coletânea de conferências "Os Caminhos do Poder", também editado pela Artmed), bastante da política externa
americana, como seria de se esperar, mas concede um espaço ainda
maior à política interna dos EUA e
aos temas econômicos.
No campo externo, privilegia os
episódios de anexação do Timor
Leste pela Indonésia -apoiada
especialmente pela Austrália e pelos EUA-, com seu cortejo de
horrores (o massacre de quase um
terço de sua população) e a "paz"
entre Israel e os palestinos (para
Chomsky, apenas a constituição
de um novo "apartheid"). Já a
atenção preferencial à situação interna americana deve-se à ascensão dos "novos republicanos" liderados por Newt Gingrich.
Camuflando um programa econômico antipopular de desmantelamento da rede de proteção social, sob a capa de "questões culturais", estes propõem uma falsa
"reconstrução da civilização
americana" à maneira da propaganda dos adeptos de Hitler na
Alemanha dos anos 20. Chomsky
destaca aí uma contradição: por
mais que esse projeto beneficie a
elite econômica, seu fanatismo
"religioso" não deixa de assustar
uma parcela ponderável dos mais
ricos, habituados com os benefícios da modernização dos costumes.
A ascensão republicana evidencia o desgaste da democracia americana, ou melhor, o progressivo
abandono das práticas e ideais liberais. Diga-se de passagem, um
tema recorrente na melhor análise
política dessa década, como se pode ver, por exemplo -para me limitar a três obras traduzidas no
Brasil nesse período- em "Os
Últimos Intelectuais", de Russell
Jacoby (Edusp), em "O Medo da
Queda", de Barbara Ehrenreich
(Scritta), ou em "A Rebelião das
Elites e a Traição da Democracia", de Christopher Lasch
(Ediouro). Para Chomsky, a fragilização da democracia se prende
ao surgimento de um novo contexto econômico e político no qual
o "fundamentalismo" dos republicanos é, certamente, uma posição extremada, mas não destoante.
A partir dos anos 60, temerosa
diante das conquistas sociais e do
crescente poder político e econômico dos trabalhadores, a classe
empresarial americana passou a
conduzir uma guerra sem tréguas
contra o mundo do trabalho.
Atacando em todas as frentes, do
chão da fábrica à propaganda subliminar dos filmes de Hollywood, a comunidade empresarial
aplicou a maior parte de suas
energias (e alguns bilhões de dólares) num esforço, até agora muito
bem-sucedido, para conter e reverter as premissas de um contrato social conquistado pelos trabalhadores ao longo de um século e
meio de lutas: a democracia, os direitos humanos e a estrutura do
Estado de Bem-Estar.
O resultado dessa "luta de classes" delineia-se, para Chomsky,
cada vez mais nitidamente como
substituição de um modelo no
qual interessava às empresas remunerar bem seus trabalhadores,
já que eles eram também os principais consumidores, por um projeto de capitalismo "terceiro-mundista". A internacionalização do capitalismo, pela disseminação dos elos da cadeia produtiva, abrange também o mercado
de consumo. A ampliação das redes de transporte e crédito possibilita que uma parcela ponderável
da produção, outrora orientada
para um mercado interno de massas, seja destinada às minorias ricas de todos os países e continentes, o que não deixa de significar
um ganho de escala.
Os efeitos dessa nova configuração econômica não tardaram a ser
notados, seja nos EUA, seja nos
países periféricos. Na América do
Norte, o Estado não perde o seu
caráter de provedor, só que agora
os maiores beneficiados são os setores mais ricos da população. Enquanto diminuem -em nome do
déficit público e da crise fiscal-
os subsídios para transportes urbanos de massa, intensifica-se a
ajuda -via Pentágono- a grandes empresas e corporações. Por
conseguinte fortalece-se também,
na medida em que se desmonta o
sistema previdenciário, o aparato
policial e repressor. Durante os
anos 80, a população carcerária
triplicou...
Na periferia, inspiradora desse
novo perfil do capitalismo, a situação torna-se ainda mais dramática. Instigados a abandonar
qualquer forma de protecionismo
(tática que, insiste Chomsky, permitiu aos países hoje ricos, sem
exceção, chegar onde estão); incentivados a privatizar suas empresas públicas, diminuindo sobremaneira sua capacidade de intervenção e resistência; submetidos ao jugo de uma dívida recorrente contraída pela minoria rica,
geralmente para elevar ainda mais
seu incomparável padrão de vida;
o resultado só poderia ser uma
ampliação das desigualdades,
conjugada com o debilitamento
da já parca democracia e direitos.
As origens desse processo remontariam aos fins do século 19,
quando as corporações assumem
o controle do capitalismo, num
período de concentração e centralização do poder que não por acaso engendrou também o fascismo
e o bolchevismo. O predomínio
das instituições bancárias e das
corporações industriais, cada vez
mais concentradas, antes mesmo
da atual onda de megafusões
(num cenário em que as 500 maiores empresas controlam 63% do
PIB norte-americano), instaura,
segundo ele, uma nova forma de
tirania, cujos braços mais visíveis
constituem uma espécie de "governo mundial de fato": o FMI, a
OMC, o Banco Mundial etc. Nesse
novo cenário não é só o papel da
democracia, dos direitos e do contrato social que muda radicalmente, a própria ordem econômica, isto é, o capitalismo, torna-se cada
vez mais -numa fórmula bastante conhecida entre nós- uma forma de privatização dos lucros e de
socialização dos custos e dos riscos.
A OBRA
A Luta de Classes - Entrevistas a David Barsamian
Noam Chomsky
Tradução: Dayse Batista
Artmed (Tel. 051/330-3444)
164 pág., R$ 23,00
Ricardo Musse é professor de filosofia na
Unesp (Universidade Estadual Paulista).
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