São Paulo, sábado, 13 de março de 2004

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UMA VIRADA HISTORIOGRÁFICA

Outra maneira de analisar o Brasil colonial

RAFAEL DE BIVAR MARQUESE

O historiador norte-americano Stuart Schwartz é um autor bastante conhecido dos leitores brasileiros. Sua produção já forneceu obras fundamentais para o conhecimento de nosso passado, como "Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial", que trata do funcionamento da administração colonial, e "Segredos Internos", que aborda a economia e a sociedade açucareiras no Recôncavo Baiano. O volume ora publicado em Portugal reúne sete ensaios que tratam de assuntos distintos, mas que podem ser agrupados em três grandes temas. O primeiro é a discussão da economia colonial, em especial do escravismo na agro-exportação e da produção voltada ao mercado interno. O segundo tema é a política colonial e imperial, abordado em textos que tratam da administração colonial, das respostas dos Habsburgo e da nobreza portuguesa às invasões holandesas do Brasil, das respostas espanholas à presença de comerciantes portugueses na América hispânica após o término da união das Coroas ibéricas e da lenta construção de uma identidade colonial na América portuguesa. Por fim, o terceiro tema é a historiografia sobre o período colonial, examinada em um artigo que traz um balanço da questão. O último ensaio fornece um guia para a leitura dos demais. Isso porque o livro demonstra como o autor participou da virada historiográfica "pós-dependentista" a que se refere. Segundo Schwartz, entre as décadas de 1930 e 1970, predominou um paradigma de análise do passado colonial brasileiro que ressaltava seu caráter escravista, agro-exportador, voltado para a geração de riquezas no centro da economia mundial capitalista. O modelo interpretativo teria encontrado sua formulação mais sofisticada na teoria da dependência. Denominado como "interpretação estruturalista da história colonial", esse paradigma começou a ser revisto a partir de fins da década de 1970, com a nova ênfase nas ações dos sujeitos históricos coloniais e a eleição de temas relacionados à história da cultura. Schwartz foi um dos principais nomes da virada historiográfica, ao abordar assuntos como as mediações entre a administração metropolitana na colônia e os agentes locais ou a formação da agro-exportação escravista, centrando sua atenção nos conflitos e interações entre os sujeitos que participaram da sua construção -senhores de engenho, lavradores de cana e, sobretudo, os escravos.

ECONOMIA COLONIAL
Com efeito, os ensaios que tratam da economia colonial dialogam criticamente com os trabalhos de Caio Prado Júnior, Celso Furtado e Fernando Novais, principais expoentes da "interpretação estruturalista da história colonial". O primeiro capítulo explica a transição da escravidão indígena para a africana por meio do "jogo complexo de percepções e ações européias e indígenas", ou seja, pela interação entre os agentes locais, e não pela lógica da acumulação de capitais na economia metropolitana, como o havia feito Novais, para quem teriam sido os interesses ligados ao tráfico negreiro transatlântico que levaram à substituição da mão-de-obra indígena pela africana. O mesmo ocorre com o terceiro capítulo, que aborda o peso da agricultura de mantimentos voltada ao mercado interno em fins do período colonial. Schwartz, no entanto, é bastante cuidadoso na revisão do "paradigma dependentista", pois demonstra a complementaridade estreita que houve entre a produção camponesa de mantimentos e a produção escravista voltada ao mercado externo. A compreensão dialética dessa relação é sem dúvida mais sofisticada do que alguns modelos recentes acerca do funcionamento da economia colonial, que postulam sua autonomia em relação aos influxos do mercado mundial. Os ensaios que tratam da política colonial e imperial também levam em conta a dinâmica das interações entre agentes locais e poderes imperiais. A administração colonial, a operação de reconquista da Bahia, a presença de comerciantes portugueses na América espanhola e a emergência de uma identidade colonial na América portuguesa são compreendidas por meio do complexo jogo econômico, social, político e cultural entre centros e periferias dos Impérios português e espanhol. Aliás, nos capítulos quatro e cinco, Schwartz demonstra os ganhos que podem ser obtidos para o conhecimento histórico ao se analisar os Impérios ultramarinos europeus de forma integrada, sem isolá-los uns dos outros. O sexto capítulo é um dos poucos que merecem ressalva no livro. Sua idéia de que o escravismo foi obstáculo ao surgimento de uma identidade colonial ou "protonacional" entre as elites senhoriais da América portuguesa -derivada de outra, a de que a escravidão foi o limite do liberalismo no Brasil- vem sendo questionada nos últimos tempos. Pesquisas recentes indicam que o escravismo foi peça chave para a emergência de uma identidade nacional no Brasil. O outro ensaio que cabe criticar é o primeiro. Nele, Schwartz concedeu ênfase quase exclusiva aos fatores locais para explicar a transição do cativeiro indígena para o africano. No entanto, em textos posteriores, o autor lembrou a importância do mercado atlântico -leia-se do tráfico negreiro transatlântico- para compreender a questão. Essas críticas derivam da produção historiográfica posterior à publicação original dos ensaios e não visam em absoluto a negar sua importância. Aliás, um aspecto positivo do livro é a decisão do autor de manter os textos tais como foram redigidos, sem acréscimos ou correções, o que de fato permite ao leitor recompor o "contexto historiográfico do momento da sua produção".


RAFAEL DE BIVAR MARQUESE é professor de história na USP

Da América Portuguesa ao Brasil. Estudos Históricos Stuart B. Schwartz Difel (encomendas na FNAC - Tel..0/xx/11/4501-3000) 324 págs. 19 euros



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