São Paulo, sábado, 13 de março de 2004

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NAVA E A IMAGINAÇÃO DO BRASIL

A reinvenção do memorialismo na literatura brasileira

RUBEM BARBOZA FILHO

Existem livros cuja trama e maciez escondem uma enorme audácia. Pois é assim com "Memórias Videntes do Brasil", de José Maria Cançado. É o próprio "pathos" naviano que, xamânico, se apodera do autor para reabrir o enigma de uma "ars moriendi" sem paralelo em nossa literatura. O vertiginoso mergulho de Nava no passado, nos diz Cançado, é mais do que o enfrentamento da morte pela individuação extremada. É, ao mesmo tempo, o modo inesperado de "perscrutar o rosto do Brasil", de recriar a nossa grande tradição coletiva, a nossa brasileiríssima e barroca "ars vivendi". Operação cujo êxito implica uma ruptura inicial: o modo de rememoração de Nava é o oposto daquele de Joaquim Nabuco, o ícone do tradicional memorialismo brasileiro, sempre enredado no pacto autobiográfico, na ambição da clonagem escrita de um eu, no anelo de fixação de uma identidade nascida num mundo patriarcal e desaparecido. Nava é Proust e Mário de Andrade, de quem rouba o princípio da "despeçagem", de desmanche do eu e do mundo, mostra Cançado. Sua matéria não é a cartorial e patrimonial, mas o fragmento, o caco, a ruína, a "madeleine" que irrompe como memória involuntária e que, como em Proust, enlaça a narrativa na direção contrária da rememoração que seleciona industriosamente os fatos, em razão dos códigos subjetivistas ou patrimonialistas de identidade, sustenta o autor. É essa "condição deficitária", a desindividualização do sujeito e da memória, que alforria Nava e lhe autoriza o exercício sobre o vivido e o extinto como "ação póstuma" de reabertura e reinvenção de sentidos, como misteriosa vidência da polissemia do que já foi. Voluntária dissolução da integridade do narrador que lhe permite negar a "moléstia de Nabuco" -para quem não existia imaginação estética e histórica no Novo Mundo- e aceitar o repto de Fuentes de que uma cultura sem imaginação será historicamente indecifrável. A escrita naviana destrói as marcações do tempo e do espaço. Ela é uma gigantesca cartografia do mundo e das civilizações, tudo devorando e incluindo para esse desígnio de imaginação e identidade. A figura de Édipo e a lama do Nilo estão pregadas em nosso carro-de-boi, e o tiro que deflagra a Primeira Guerra faz o Marne desaguar no Arrudas, misturando França e Minas. O mundo está em nós, e, por isso, somos velhos e complexos como ele, reconhecimento que nos descoloniza e universaliza. Mas o patoá estilístico-literário de Pedro Nava, aberto por natureza, ainda vai mais longe: esse narrador proteiforme não hesita em se apoderar de um passado que supera o da sua própria vida e em saltar para dentro dos outros "uns" que existiram, comutando-se com eles. Não apenas homens e mulheres, mas natureza e objetos. São esses outros que se expõem e se revelam nas memórias navianas, transformadas em recriação expressivista do magma de nossa vertente civilizacional.

DESTRUIÇÃO DO TEMPO
Escrita, que, pela sua natureza, carrega uma idéia: a de que a nossa felicidade, o nosso éden, só pode emergir no ato de consubstanciação com a nossa própria civilização, com os seus memoriais de experiência e de cultura. Felicidade que não nos aliena, mas "nos dá um rosto e uma condição história difíceis", afirma nosso autor. Cançado percebe ainda, com extrema acuidade, que essa destruição do tempo ritmado e da contigüidade espacial, esse saque permanente de tudo para a constituição do Brasil, é também o segredo da nossa tradição barroca. Porque não fomos gerados por uma gramática coerente de valores, por uma utopia, a nossa condição é essa de abertura, de tudo devorar em busca de sentido e emancipação. Nava reinventa essa tradição para tornar-se o "antecessor" de Gilberto Freyre e ocupar o estatuto de um dos grandes explicadores do Brasil. Nele não se encontra o enquadramento do Brasil como subjetividade una e autotransparente, mas a decisão de enfrentar esse jogo barroco entre o despedaçamento, a inclusão e a unidade, com o qual nos formamos no passado e vivemos no presente. Este livro, ao qual não fiz inteira justiça, merece ser lido.


RUBEM BARBOZA FILHO é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora e autor de "Tradição e Artifício - Iberismo e Barroco na Formação Americana" (UFMG).

Memórias Videntes do Brasil - A Obra de Pedro Nava José Maria Cançado Ed. UFMG (Tel.0/xx/31/3499-4642) 234 págs. R$ 32,00



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