São Paulo, Sábado, 13 de Março de 1999
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Direto de direita

NUNO RAMOS

Poucas vezes tantas contradições se juntaram num único evento esportivo. O moço contra o velho, a força contra a arte, a dança contra a imobilidade, os braços contra as pernas, a sequência de socos monótona e contínua -que cava um buraco no saco de areia de treinamento- e a variação inesgotável de golpes, o bater parado e o bater em movimento, a contenção na fala (associada à violência máxima e ininterrupta no ringue) e a fala descontrolada (associada à total economia de esforços no ringue), o bom moço americano -agitando suas bandeirinhas ao ganhar o ouro olímpico- e o traidor da pátria (nenhum vietcongue o chamou de "nigger") e da religião (seu nome adotivo é muçulmano). A luta entre George Foreman e Muhammad Ali estava fadada a ser, esportiva e culturalmente, um dos eventos mais intensos da história do esporte. Que tenha sido realizada em Kinshasa -a capital do antigo Congo, atual Zaire, ponto de partida para o percurso rio adentro até "o horror... o horror..." conradiano, transformada agora em capital confusa e miserável de uma ditadura tropical- parece apenas acrescentar um último par a esse conjunto de oxímoros.
Poucas vezes, também, as características propriamente esportivas do evento se prestaram com tanta legitimidade à propaganda simbólica de seus conteúdos. Pois, se é a causa negra, com shows de James Brown e B.B. King, que vai se afirmar no terreno ambíguo de Kinshasa (cidade a um só tempo demasiado ancestral, com suas tempestades diluvianas inundando tudo e o rugido de um leão dentro do perímetro urbano, e demasiado recente, com seus destroços e resíduos do capitalismo mais violento em forma de favelas, caos e gente famélica), nenhum esportista poderia encarnar suas aspirações de modo tão cristalino quanto Ali.
É que ambos procuravam e sentiam-se prontos para a mesma coisa: sublimação, inclusão de novos conteúdos, aumento de repertório, ambiguidade simbólica, em suma, autonomia. A adequação do estilo de Ali às dores de crescimento do movimento negro está no centro dessa luta.
O boxe é a borda do esporte. Pouquíssimo instrumentalizado (não há bola nem tento nem rede nem raquetes -é a própria existência física do oponente que se procura anular, levando-o ao coma temporário), recoloca sem cessar a pergunta pela sua legitimidade enquanto esporte. O vocabulário que cerca a "nobre arte" é a expressão empolada e um pouco cômica dessa necessidade de elevação. Algo precisa distingui-la da briga cega, e a catalogação minuciosa dos golpes ou a falsa ciência na contagem dos pontos procuram apontar um território onde o pensamento possa pousar, um lago razoavelmente tranquilo onde a vida se deixe refletir.
É claro que a linhagem de boxeadores técnicos, cujo patrono talvez seja o médio Sugar Ray Robinson, ajuda a ritualizar a briga e transformar o desfecho sangrento em necessidade, consequência natural de mediações lentamente acumuladas. Desde que Cassius Clay pisou num ringue, no início dos anos 60, o ciclo se fechou: até que enfim um peso-pesado, guardião atávico da brutalidade e da coesão primatas, bailava em torno do alvo, driblava-o, adiava os próprios impulsos, disfarçava-os, mudava de ritmo (muito da força simbólica de Mike Tyson, com sua violência crua, sua incapacidade de defender-se, seus golpes sem preparação etc., vem de um certo retorno do reprimido: com ele, é a sublimação representada por Ali que beija a lona).
Pela primeira vez era possível "ler" um peso-pesado, seguir o fluxo de seu raciocínio, deixar-se emaranhar em sua estratégia. Pela primeira vez a capacidade que tem a luta de simbolizar a vida, não apenas em seus aspectos mais primários e condenáveis, deixava-se perceber claramente, mesmo entre lutadores gigantes. Com Ali, o boxe tornou-se uma linguagem a ser recitada alto e não apenas tartamudeada numa roda de aficionados -por isso, mais do que tudo e do que todos, Ali "falava". Com sua ajuda, a causa negra vai percorrer um percurso semelhante, saindo do gueto e aspirando a uma universalidade nova.
É essa encruzilhada de questões que duas obras excelentes, agora disponíveis entre nós, tentam captar. Trata-se de uma pequena obra-prima, o documentário "Quando Éramos Reis", de Leon Gast, filmado em 1974, mas montado na década de 90, ganhador do Oscar de melhor documentário de 1997, e do intenso "A Luta", de Norman Mailer, publicado originalmente em 1975. Em meio a diferenças enormes (embora Mailer seja também personagem do filme), as duas obras mantêm em comum uma espécie de pasmo contínuo diante da riqueza extraordinária do que vão encontrando em Kinshasa. Em ambos, a natureza fabulosa está posta de lado. Nada de selvas, rios, animais. Estamos falando de homens, ou melhor, de personagens, figuras premeditadamente construídas que aparecem, nas mesmas cenas às vezes, em ambas as obras.
Não há ninguém propriamente comum aqui: a começar pela dupla Ali e Foreman (o talento de Ali não nos deve fazer esquecer a inteligência tranquila, extremamente concentrada e coesa, de Foreman), passando por Bundini (o "manager" amigo de Ali, a língua ainda mais audaz do que a dele), por Don King jovem (espécie de canalha messiânico que citava Shakespeare), por Archie Moore a serviço do "corner" errado (derrotado por Ali em seu final de carreira e fazendo parte agora do "staff" de Foreman, o estilo de Moore só pode identificar-se com Ali). O veículo deste "drama em gente" é a "fala", praticada voluptuosamente, até a exaustão, por tudo e por todos -Ali fala, Bundini fala, Don King fala, James Brown fala, Foreman (mais lento) fala, as paredes falam. Há uma espécie de loquacidade insana no ar, tão fluente e contínua que parece abandonar qualquer objeto.
Mais do que veículo de um conteúdo, trata-se de um mantra auto-suficiente que se expande e se contrai sem verdadeiramente avançar. Seu fascínio não está numa cadeia de idéias, mas na capacidade sempre renovada de "dizer a mesma coisa de outro modo", sem titubear, sem hiato, contínua e ininterruptamente, misturando-se ao próprio ar que os interlocutores respiram. Aqui não se conversa. Aqui se prega, está-se tomado pelo demônio da palavra, por séculos de opressão e violência que exigem reparação. Não se quer propriamente atrair alguém para determinado ponto de vista, mas mostrar-lhe um mundo vivo que basta a si mesmo, sinalizado num jargão próprio, em distorções semânticas e de pronúncia. A música de James Brown é a crônica desses pregadores negros, tão distantes em sua inventividade inesgotável do dialeto simplificado das gangues mais recentes quanto James Brown está do "rap".
Mais do que todos, no entanto, é Ali quem fala. Talvez essa seja a principal vantagem do filme sobre o livro -captar em ato o fluxo inesgotável de seu discurso. Ali fala correndo, fala treinando, fala lutando contra Foreman. Ali provoca, pede aplauso, dá respostas desconcertantes, faz discursos, lê poemas chatos -mas, principalmente, Ali fala de Ali. É esse outro eu, espécie de criança mimada, que pica como uma abelha e voa como uma borboleta, intocada pelo cansaço, pela idade, pelas derrotas para Joe Frazer (com um "knock-down") e para Ken Norton (que lhe quebrou a mandíbula), é esse retrato dourado de suas expectativas que Ali alardeia o tempo todo. Encurralado no canto do ringue de uma luta que todos, mesmo os integrantes de sua equipe, consideravam perdida, é com o frágil tecido das próprias palavras que Ali vai erguer seu escudo, um pouco como um condenado à morte que recitasse um hino.
Essa transformação da auto-estima em personagem exteriorizada, com o qual todos -entrevistadores, fãs, treinadores, adversários- têm de saber lidar, é uma das invenções mais impressionantes de Ali. Basta comparar com a clivagem semelhante entre duas faces de outro atleta excepcional -Pelé. De um lado, o moço pobre, humilde e solidário, Edson Arantes do Nascimento; de outro, a estátua de bronze inalcançável, adormecida no formol dos deuses, do mito Pelé. É a distância profilática entre os dois que está sendo enfatizada aqui. Para Muhammad Ali, ao contrário, a estátua, como a do Commendatore de "Don Giovanni", ganhou vida e está cobrando os seus direitos. É ela quem sobe ao ringue e luta, mas é ela, também, quem anda, dorme, dá entrevistas, corre, treina etc.
Uma das dificuldades maiores do livro de Mailer é lidar com esse mito de carne e osso. O Ali de Mailer é na verdade um personagem de Hemingway, o velho pescador que tivesse afinal trazido seu peixe para casa. Há um certo vitalismo que atravessa todo o livro, uma luta entre "forças vitais" (o termo "n'golo" em congolês se repete mais de uma dezena de vezes) e o cansaço, o envelhecimento e a morte. É um tema, no fundo, que pertence mais ao autor do que a Ali. Será que Mailer consegue correr cinco quilômetros? Será que está velho? Será que consegue atravessar a sacada de seu quarto de hotel debruçando-se sobre o abismo? Será que dá sorte àqueles por quem torce?
Questões aborrecidas como estas são recorrentes no livro e apontam uma de suas dificuldades centrais: qual o estatuto do narrador? Sim, porque em vez de um prosaico "eu", o termo utilizado é "Norman"; indeciso em sua ironia, é fraco como personagem e excessivamente presente como narrador. A estátua de Mailer tem os pés de barro, e a dificuldade dessa passagem entre o "eu" e "Norman" é a imagem invertida do veio central da força de Ali, da pura exterioridade de suas palavras. A idéia do ciclo vital, da personagem que se mede com a natureza e, ao sofrer a derrota, adquire ou proporciona conhecimento, temas de Melville e de Hemingway a que Mailer se filia, é totalmente alheia a Ali. Seu "n'golo" tem a cara-de-pau (irônica e bem-humorada, mas também bastante séria, a ponto de socorrê-lo em seus momentos mais difíceis -durante a própria luta ou gritando "vamos dançar?" para uma platéia de velório nos vestiários antes da luta) de procurar encarnar seu próprio mito, para fora do tempo e do ciclo da natureza.

A OBRA
A Luta Norman Mailer Tradução: Cláudio Weber Abramo Companhia das Letras (Tel. 011/866-0801) 224 págs., R$ 24,00



Mas é preciso ser justo com esse livro excelente. Poucas vezes um acontecimento esportivo terá sido tão bem tratado quanto nas páginas sobre a própria luta. Vale a pena conferir pelo filme o que Mailer descreve. Trata-se de uma obra-prima em três atos (e três surpresas). A primeira, executada inteira no primeiro assalto, são os diretos de direita (um dos golpes mais potentes do boxe, mas, também, um dos mais expostos) com que Ali atacou Foreman durante todo o assalto. É como se, ao lutar com um urso, você pulasse em seu pescoço. Quando todos esperavam que saracoteasse pelo ringue, fugindo das patadas de Foreman, Ali fuzilou-o seguidamente com seu golpe mais explícito. O nome do golpe guarda a verdade da luta: um "direto", aquilo que não tem subterfúgios nem desvios. Essa será a luta de Ali: um pouco como "A Carta Roubada", de Poe, surpreende pelo óbvio, renunciando à retórica poderosa de seus golpes.
Esse aspecto fica ainda mais claro na inversão de sentido do segundo assalto. Depois do gongo, Ali recua para as cordas e, em oposição a tudo o que fizera no assalto anterior, deixa-se prender no canto do ringue. Foi um movimento tão surpreendente que o escritor Georges Plimpton, que assistia à luta com Mailer, chegou a pensar em marmelada. Provavelmente, tudo o que Ali não poderia fazer era isso: ficar parado diante de Foreman, renunciando ao seu extraordinário jogo de pernas e deixando-se surrar. Mas, talvez por intuir que um tufão também pode ser vencido desde o centro, Ali adere àquilo que o adversário tem de mais temível, colocando-se "demasiado próximo" dessa força para ser ferido.
É assim que Foremam perde a luta, gastando toda a sua energia, enquanto despeja seus golpes quase mortíferos (e que por milímetros não derrubam Ali) durante cinco assaltos consecutivos, ouvindo suas provocações ("Isso é tudo o que você consegue?", "Você não bate, empurra" etc.), sem conseguir livrar-se desse parasita enrolado a seu tronco.
O nocaute de Foreman no final do oitavo assalto é o terceiro ato que coroa tudo o que a luta prometera. Depois de um primeiro assalto surpreendentemente ativo e de sete assaltos surpreendentemente passivos, Ali sai das cordas, trocando de posição com Foreman. Uma rápida sequência culmina com um golpe de direita que faz Foreman girar em torno de Ali e cair para não se levantar mais. A imagem de Ali olhando fixamente a queda de Foreman em torno dele, a direita engatilhada para mais um golpe que não chega a utilizar (embora tivesse tempo para isto), é uma das mais belas da história do boxe. Ela resume toda a lisura e o refinamento de Ali, sua noção de gasto exato de energia, de proporção entre meios e fins, de que não se golpeia um adversário caindo (lembremos do golpe de Foreman contra a nuca de Frazer). Tem-se a nítida impressão de que Foreman poderia ainda levantar-se (houve dúvidas se o juiz contara até 8 ou até 10), mas que desiste, tão deprimido quanto nocauteado. Na verdade, a contagem aberta pelo juiz diz respeito a anos, e não a segundos: quase dez vão se passar antes que Foreman supere o trauma desta luta.


Nuno Ramos é artista plástico.


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