São Paulo, Sábado, 13 de Março de 1999 |
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O véu e a mortalha
ABÍLIO GUERRA
Como já deve estar claro para o leitor, estamos diante de uma explicação histórica materialista em que as demandas infra-estruturais do modo de produção determinam a evolução superestrutural da cultura. Como Otília assume uma determinação rígida, os mais variados encaminhamentos da arquitetura deste século acabam se tornando aos seus olhos apenas representações ideológicas. Alguns movimentos, como o "regionalismo crítico" de Frampton e as "teorias do lugar" de Rossi e Gregotti, aos quais ela atribuía em textos anteriores teor crítico e possibilidades de resistência e subversão, tornam-se agora expressões ideológicas das novas acomodações do capital. Como não pode atribuir à má-fé ou ingenuidade universais a sucessão de enganos e quimeras produzidos pelos arquitetos modernos, Otília apela para uma psicanálise difusa. Conceitos como autoconsolo, racionalização, deslocamento, narcisismo, fobia e sublimação são arregimentados para contornar o problema. O mundo anímico humano recebe os impulsos do mundo material e a ele devolve alguma "veleidade compensatória" ou "alheamento" diversionista. Ao negar o caráter eficiente (e não apenas representativo) e intelectivo (e não apenas ideológico ou pulsional) do discurso arquitetônico -o que estaria, no nosso modo de ver, mais ajustado à dialética marxista-, Otília nos lega um mundo governado por forças intransponíveis do capital, que, na sua versão globalizante atual, coloniza "as últimas zonas remanescentes de pré-capitalismo": o "Terceiro Mundo" e o "inconsciente" (pág. 178). Não há como negar que a argumentação de Otília Arantes é magnífica em sua estruturação e na sua fluência. Ficamos tomados por sua retórica, convencidos da "verdade" que nos conta, uma verdade fria, implacável. Verdade que se encontrava sempre lá, desde a origem, mas que foi sempre acobertada por véus, véus que a autora vai retirando um a um. Não há como dizer, com absoluta segurança, que esteja errada, que a ilusão seja dela e não nossa. Diríamos até que é bem possível que esteja certa e que uma ou outra objeção que aqui fizemos sejam frutos de nossa recusa em aceitar o destino inelutável, afinal o futuro imediato que nos prognostica é terrível em sua irreversibilidade: "Essa mundialização do capital (...) gera descompassos, segregações, guetos multiculturais e multirraciais, ao mesmo tempo que desterritorializações anárquicas, crescimentos anômalos e transgressivos -verdadeiros focos explosivos que devem esgotar suas energias numa entropia intransitiva, numa guerra interna generalizada, de facções e gangues, enquanto consomem e exportam formas culturais e religiosas cada vez mais sincréticas, criando uma vaga sensação generalizada de reconciliação democrática. Reposição das diferenças que não é senão "sublimação cultural", forjando, na ausência de referências sociais objetivas, identidades meramente simbólicas" (págs. 187 e 188). A sublimação, proposta por Freud como um mecanismo positivo por liberar criativamente as energias represadas por traumas recalcados, converte-se nas mãos de Otília em mecanismo bastardo de produção ideológica. O teor crítico do sonho ou da arte evapora-se diante dessa reiteração da subjugação. Em um mundo assim apocalíptico, onde qualquer proposição se vê transformada em seu contrário, alimentando aquilo que ingenuamente queria combater, não há mais lugar para propostas construtivas para a cidade. É o fim do urbanismo. Esperar novos encaminhamentos do capitalismo ou mesmo sua derrocada final, praticando uma arquitetura de sobrevivência, é o que nos resta. Diante dessa possibilidade, mesmo que verdadeira, parece tão estranho que os arquitetos estejam ignorando suas palavras? Abílio Guerra é professor de arquitetura da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e editor da revista "Óculum". Texto Anterior: Jorge Mattos Brito: O paradigma de Adorno Próximo Texto: Ana Luisa Escorel: Os "mãos sujas" Índice |
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