São Paulo, Sábado, 13 de Março de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Sem trama nítida

MILTON HATOUM

Certos textos de ficção não se enquadram num determinado gênero; talvez por isso o leitor acostumado a ler romances ou contos tenha uma sensação de estranheza ao se deparar com textos que escapam da convenção literária.
Na França, esse gênero inclassificável, híbrido, sempre encontrou solo fértil. Os "Ensaios", de Montaigne, os textos baudelairianos do "Le Spleen de Paris", os aforismas e as reflexões do Paul Valéry de "Tel Quel" são exemplos de como a literatura pode criar zonas fronteiriças à ficção autobiográfica, ao ensaio e à poesia, sem perder o poder de persuasão, de incursão na alma humana e de conhecimento do mundo.
São textos sem trama nítida, e essa porosidade do enredo, ou mesmo a sua diluição, é um dos traços da modernidade. Talvez seja esse o caso de "O Filantropo", um livro que também poderia se intitular "Miscelânea", pois encerra traços da confissão, do poema em prosa, da reflexão e da autobiografia. Essa miscelânea de gêneros e temas aparece no conjunto das narrativas curtas, traço comum dos textos que compõem "O Filantropo". Em cada quadro está presente um narrador camaleônico e ubíquo, que em metamorfoses sucessivas afirma e nega o tempo todo, criando tensões no interior dos temas que aborda. Estes, de tão variados, podem dar ao leitor uma impressão de falta de coesão do conjunto, pois mudam como os assuntos de um almanaque. De fato, o leitor encontra em "O Filantropo" um pouco de tudo: a visão de uma metrópole, um modo de mulheres usarem mangas cavadas, uma fábula, brevíssimas biografias de artistas plásticos e de um revolucionário francês, o perfil de um pobre boxeador, o reumatismo do narrador, o erotismo de mocinhas em flor, a vigília, e assim por diante.
Essa falta de coesão, apenas aparente, diz respeito aos assuntos que misturam miudezas do cotidiano com temas mais elevados. Às vezes, num mesmo quadro, o narrador se desvia de um assunto e conduz o leitor para outras paragens, como ocorre em "Paris": "Meus modelos são tão volúveis. Uma metafísica caseira me propõe questões extremamente embaraçosas".
No entanto, há duas linhas que costuram esses textos escritos com parcimônia, num estilo sóbrio e elegante. A primeira é a "Linha de Conduta", título de uma das narrativas; a segunda, é a linha do horizonte, ou o ângulo de visão do narrador. No conjunto, os textos discutem linhas de conduta ético-moral de um narrador volúvel, que alterna a primeira com a terceira pessoa e muda inclusive de sexo. O narrador metódico e magnânimo que aparece em várias narrativas ("Paris", "Linha de Conduta", "Programa", "Vigília", "Princípios") procura não apenas a disciplina no cotidiano, mas sobretudo um equilíbrio na conduta moral.
"Não descuido um só instante de minha conduta moral", afirma o narrador do texto "Linha de Conduta". Mais adiante, um narrador surpreso com "as fricções ríspidas" da penetração durante um ato sexual escreve: "Evito em suma tudo o que coloque em risco um equilíbrio que conquistei a duras penas e que prezo mais do que tudo" ("Sexo").
Nessas e em outras narrativas, o leitor se depara com um narrador obsedado por uma harmonia do mundo, pela justa medida das coisas, pela ausência de desbordamento ou excesso. Tanto o gesto mais simples do dia-a-dia como a experiência amorosa encerram um pacto de princípios, como se o narrador fosse refém de uma coerção ética, refutando a desordem das pulsões e fazendo da discórdia um desagravo. O filantropo é um pouco esse narrador que busca a todo custo a dosagem certa dos sentimento e a justa repartição das coisas.

A OBRA
O Filantropo Rodrigo Naves Companhia das Letras (Tel. 011/866-0801) 96 págs., R$ 16,00



Essa busca passa pelo entendimento e pela sabedoria, que fazem da tensão um momento de conciliação. Raramente esse equilíbrio é precário; no entanto, há momentos em que essa harmonia só se revela plenamente pacificadora se o leitor subtrair os sinais de ironia das entrelinhas. Mas a armadura ética que prevalece na maioria das narrativas é rígida; por isso, "soçobrar ou ser absurdamente razoável" (1) não é certamente o dilema do filantropo, que também faz as vezes de misantropo e cínico, dependendo do ângulo de visão do narrador e do leitor.
É o ângulo de visão (ou uma certa forma de olhar) que vez ou outra relativiza ou desvia a linha de conduta, tornando sutil e poroso o jogo entre o interior e o exterior, entre a rigidez de um princípio ético-moral e o descontrole dos afetos.
Dois quadros ("Escala e Luz") aprofundam a importância da visão, e podem ser lidos como exercícios poéticos sobre o olhar. No primeiro, a mudança do ângulo de visão e as variações da luz fazem com que o observador se contraia ou expanda; são mudanças de escala, decisivas na maneira de perceber, sentir e apreender os seres e o espaço. "Sou o que há entre mim e o que vejo", afirma o narrador, enfatizando, assim, a apreensão e compreensão do mundo por meio do olhar. No segundo texto, o narrador, extasiado diante da claridade esplêndida da tarde, revela perplexidade ao tentar descrever o encanto do mundo exterior: "Ver é experimentar o que não temos, embora à nossa frente". O observador, estático, lembra ou vislumbra uma paisagem da infância. E a lembrança, mediada pela visão, além de tornar dinâmica a relação do presente com o passado, dá consistência e espessura à tarde e seus elementos. Ver, ou melhor, saber ver, torna-se conhecimento de si mesmo, das coisas distantes e do outro. A visão nos possibilita experimentar o que nos escapa. Pretende captar o que a aparência e seu contorno escondem.
Por meio dessa ambiguidade, desse olhar voltado para dentro e para fora, o filantropo vai tecendo calmamente a trama de sua ética privada. Ele é generoso quando pode, resignado quando não pode, "incapaz de descomedimentos", desconfiado com a espontaneidade, gauche ao lidar com sexo, e , mesmo quando muda de sexo, é asséptico ou obcecado pela higiene.
Na narrativa citada anteriormente ("Luz"), é significativo o fato de o narrador, à sombra, observar da soleira da porta uma "luminosidade que se cumpria apenas de longe". Também na soleira ou fronteira de vários gêneros literários situam-se os textos desse livro. Alguns podem ser lidos como ensaios ou insights ficcionais.
Lido como uma miscelânea de gêneros, o livro vai além do ensaio, pois combina a beleza da prosa poética com a reflexão e a confissão. Mas, por falta de uma definição estética, "O Filantropo" fica aquém de um texto ficcional, que requer um mínimo de enredo, de situações dramáticas e empenho na caracterização das personagens ou no aprofundamento da trajetória de um herói problemático. É o caso, por exemplo, das breves biografias ou do "retrato" de um boxeador, nos quais há uma tendência à caracterização de personagens, que se dilui na neutralidade, ou nessa ânsia de assepsia, mais adequada ao ensaio. O problema reside justamente na ausência de personagens problemáticos, tornando pálidos os retratos que poderiam imprimir força e consistência às personagens.
Essa promiscuidade de gêneros (para usar a expressão de João Moura Jr. na orelha do livro), em consonância com o ideal asséptico e a rígida conduta moral do narrador, talvez cause surpresa para certos leitores e embaraço para outros. No entanto, é na fruição de uma leitura sobre o comportamento ético e a maneira de perceber o mundo por meio do olhar que reside a força desse livro.

Nota
1. Uso a expressão de Gérard Lebrun -"O Avesso da Dialética" (Companhia das Letras).


Milton Hatoum é autor do romance "Relato de um Certo Oriente" (Cia. das Letras) e professor de literatura da Universidade do Amazonas.


Texto Anterior: Ana Luisa Escorel: Os "mãos sujas"
Próximo Texto: Vilma Arêas: Memorial das íntimas ocorrências
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.