São Paulo, Sábado, 13 de Março de 1999 |
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Sem trama nítida
MILTON HATOUM
Essa busca passa pelo entendimento e pela sabedoria, que fazem da tensão um momento de conciliação. Raramente esse equilíbrio é precário; no entanto, há momentos em que essa harmonia só se revela plenamente pacificadora se o leitor subtrair os sinais de ironia das entrelinhas. Mas a armadura ética que prevalece na maioria das narrativas é rígida; por isso, "soçobrar ou ser absurdamente razoável" (1) não é certamente o dilema do filantropo, que também faz as vezes de misantropo e cínico, dependendo do ângulo de visão do narrador e do leitor. É o ângulo de visão (ou uma certa forma de olhar) que vez ou outra relativiza ou desvia a linha de conduta, tornando sutil e poroso o jogo entre o interior e o exterior, entre a rigidez de um princípio ético-moral e o descontrole dos afetos. Dois quadros ("Escala e Luz") aprofundam a importância da visão, e podem ser lidos como exercícios poéticos sobre o olhar. No primeiro, a mudança do ângulo de visão e as variações da luz fazem com que o observador se contraia ou expanda; são mudanças de escala, decisivas na maneira de perceber, sentir e apreender os seres e o espaço. "Sou o que há entre mim e o que vejo", afirma o narrador, enfatizando, assim, a apreensão e compreensão do mundo por meio do olhar. No segundo texto, o narrador, extasiado diante da claridade esplêndida da tarde, revela perplexidade ao tentar descrever o encanto do mundo exterior: "Ver é experimentar o que não temos, embora à nossa frente". O observador, estático, lembra ou vislumbra uma paisagem da infância. E a lembrança, mediada pela visão, além de tornar dinâmica a relação do presente com o passado, dá consistência e espessura à tarde e seus elementos. Ver, ou melhor, saber ver, torna-se conhecimento de si mesmo, das coisas distantes e do outro. A visão nos possibilita experimentar o que nos escapa. Pretende captar o que a aparência e seu contorno escondem. Por meio dessa ambiguidade, desse olhar voltado para dentro e para fora, o filantropo vai tecendo calmamente a trama de sua ética privada. Ele é generoso quando pode, resignado quando não pode, "incapaz de descomedimentos", desconfiado com a espontaneidade, gauche ao lidar com sexo, e , mesmo quando muda de sexo, é asséptico ou obcecado pela higiene. Na narrativa citada anteriormente ("Luz"), é significativo o fato de o narrador, à sombra, observar da soleira da porta uma "luminosidade que se cumpria apenas de longe". Também na soleira ou fronteira de vários gêneros literários situam-se os textos desse livro. Alguns podem ser lidos como ensaios ou insights ficcionais. Lido como uma miscelânea de gêneros, o livro vai além do ensaio, pois combina a beleza da prosa poética com a reflexão e a confissão. Mas, por falta de uma definição estética, "O Filantropo" fica aquém de um texto ficcional, que requer um mínimo de enredo, de situações dramáticas e empenho na caracterização das personagens ou no aprofundamento da trajetória de um herói problemático. É o caso, por exemplo, das breves biografias ou do "retrato" de um boxeador, nos quais há uma tendência à caracterização de personagens, que se dilui na neutralidade, ou nessa ânsia de assepsia, mais adequada ao ensaio. O problema reside justamente na ausência de personagens problemáticos, tornando pálidos os retratos que poderiam imprimir força e consistência às personagens. Essa promiscuidade de gêneros (para usar a expressão de João Moura Jr. na orelha do livro), em consonância com o ideal asséptico e a rígida conduta moral do narrador, talvez cause surpresa para certos leitores e embaraço para outros. No entanto, é na fruição de uma leitura sobre o comportamento ético e a maneira de perceber o mundo por meio do olhar que reside a força desse livro. Nota 1. Uso a expressão de Gérard Lebrun -"O Avesso da Dialética" (Companhia das Letras). Milton Hatoum é autor do romance "Relato de um Certo Oriente" (Cia. das Letras) e professor de literatura da Universidade do Amazonas. Texto Anterior: Ana Luisa Escorel: Os "mãos sujas" Próximo Texto: Vilma Arêas: Memorial das íntimas ocorrências Índice |
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