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Coisa
De onde teria Cardoso tirado essa suposta característica de uma escravidão
regida pelo "patriarcalismo brasileiro tradicional"? Por estas e outras, no mínimo
temos que nuançar o caráter de ruptura
entre a visão cardosiana e a freyreana da
escravidão brasileira, até porque Cardoso
não se coloca essa tarefa explicitamente
neste livro.
É verdade, porém, que ele irá desenvolver seus argumentos principalmente em
outra direção, enfatizando à exaustão, de
um lado, o aspecto exclusivamente coercitivo das relações escravistas e, de outro,
a passividade extrema do escravo nessas
relações. Aliás, o uso da força e o rígido
controle senhoriais seriam, afinal, características também dos grandes proprietários das charqueadas gaúchas, os melhores candidatos a patriarcas tradicionais e
brandos. Quanto ao escravo, Cardoso começa definindo-o do ponto de vista jurídico, como mercadoria, uma coisa que
podia ser objeto de diversos tipos de transação comercial.
Nenhuma novidade. A novidade está
em que o escravo de Cardoso teria se tornado subjetivamente uma coisa, no sentido de que sua vontade consistia em reflexo da vontade do senhor. A tese do escravo-coisa, que fez escola, resulta em parte
do uso de um marxismo esquemático,
em voga na época em que apareceu este
livro, e conduz o autor a concluir que a
posição estrutural dos escravos os impedia de vislumbrar seus próprios interesses, daí necessitarem de sociólogos para
fazê-lo. O autor então acreditava na tese
lukacsiana de "consciência possível" e
explica que, das classes subordinadas, só
ao proletariado seria dado entender seus
próprios interesses e traçar seu próprio
destino.
O conceito de alienação é acionado para arrematar a análise. O que historicamente produz a alienação do escravo é
seu embrutecimento à base de uma "socialização parcial", feita para treiná-lo na
ponta do chicote apenas para servir, para
tocar a produção senhorial. O resultado
seria um escravo infantilizado, espécie de
zumbi, mas não no sentido palmarino do
termo. Esse escravo aparentemente não
teria laços de parentesco, redes sociais e
práticas culturais próprios, enfim nada
seu de significativo para contrapor àquele processo de socialização alienante imposto pelo domínio senhor. Ele não é reconhecido pelo senhor, nem se reconhece como pessoa: lemos isso ao longo do livro.
Rebeldia escrava
Quando o leitor já está quase convencido da autenticidade desse quadro assombroso, Cardoso o reanima com páginas
dedicadas à rebeldia escrava, agora afirmando que a coisificação antes pintada
afinal não passava de aparência das coisas. Em suas palavras, "a resignação do
escravo à [sua] situação era aparente". Isso valia sobretudo para escravos situados
em posições menos convencionais na estrutura escravista -artesãos, domésticos, trabalhadores urbanos-, de onde
podiam enxergar mais longe do que os
escravos rurais. Uns mais que outros,
contudo, todos fugiam, roubavam, desobedeciam aos senhores e ativavam outras
formas de transgressão que, segundo
Cardoso, devolviam-lhes a humanidade.
Mas o alívio do leitor dura pouco, porque a rebeldia escrava termina ela também virando um jogo de aparências, apenas refletindo a "mera necessidade subjetiva de afirmação, que não encontrava
condições para realizar-se concretamente". Ou seja, de nada adiantou a liberdade
subjetiva de repente adquirida pelo escravo de Cardoso, porque ele não fazia
com ela o que devia fazer. A coerção brutal e o rígido controle senhoriais o teriam
incapacitado de "reação coordenada e de
perceber criticamente sua posição", e de
tal forma que sua revolta não passaria de
negação pura, sem um sentido de construção de futuro, limitando-se no "melhor dos casos" à formação de quilombos, que não passariam de uma "tentativa de retorno à situação tribal". Dá-se então que, no máximo, a rebeldia levava o
escravo a um movimento de involução
histórica.
No horizonte da análise cardosiana está
sempre a destruição do sistema, algo que
nem sempre estava no horizonte do escravo, daí suas ações emergirem como
insuficiências da pena do sociólogo. O raciocínio é meio circular: o escravo é um
ser alienado porque não consegue entender seu lugar na estrutura social, e não
conseguirá destruir a estrutura social sem
entendê-la. É também raciocínio evolucionista, porque a mudança desejável,
que não é pequena, se dirige numa direção previamente estabelecida: do trabalho escravo para o trabalho assalariado,
da sociedade de castas para uma de classes, do escravismo para o capitalismo
pleno.
Como o estudo de Cardoso tem por objetivo entender esse conjunto de transições, como aliás sugere o seu título, o
problema da abolição e de quem se responsabiliza pelo feito se torna impositivo. É daí precisamente que surge a insuficiência da ação coletiva escrava, que nunca alcança o patamar de uma ação revolucionária, no caso abolicionista, nos termos definidos pelo modelo desenhado
por esse tipo de marxismo.
Jornal negro
Esse esquema é em grande parte projetado para interpretar o que se passou
com o negro gaúcho no período pós-abolição, definido como o momento de sua
integração a uma sociedade de classes.
Esse negro, porém, não é o trabalhador
rural descendente do escravo reificado
das charqueadas, mas aquele que circula
pelo ambiente urbano, se organiza e escreve jornais, deixando fontes históricas
na superfície dos arquivos. Mesmo assim
ele não se liberta das amarras ideológicas
produzidas pelo branco, que impõe o seu
modo de ser. Agora livre, mas pressionado por uma ideologia racista, aliás bem
caracterizada por Cardoso, que barra sua
ascensão social, o negro vai se esforçar
para imitar o branco em modos de falar,
de vestir, de se comportar. Fica faltando a
informação sobre quais seriam os modos
genuinamente negros de fazer essas coisas, ou se eles teriam de ser inventados.
Mas, apesar de uma leitura às vezes superficial do jornal negro "O Exemplo",
sua principal fonte para discutir a "consciência negra" nesse período, Cardoso
apresenta um bom mapa das discussões
feitas por e entre negros sobre sua luta no
mundo dos brancos.
Muitas das conclusões de Cardoso decorrem de uma leitura passiva de suas
fontes. O viajante Saint-Hilaire, por
exemplo, lhe serve de guia para conclusões relativas à negação social supostamente introjetada pelo escravo. Saint-Hilaire escreve que o escravo se compara
aos animais para se sentir humano, e Cardoso acredita. Saint-Hilaire escreve que
um escravo demonstrou ter um raciocínio infantil por se recusar a penetrar a floresta, alegando que os "tigres" preferem a
carne negra, e Cardoso acredita. Como
sugere Sidney Chalhoub em "Visões da
Liberdade", neste último caso não ocorre
a Cardoso fazer uma leitura na contramão do europeu e perceber que o escravo
estava apenas tentando se safar do trabalho pesado. Ou seja, estava sendo inteligente.
É interessante que, percorrendo caminho teórico diferente, mais próximo de
um funcionalismo bem regado a psicologia, o historiador norte-americano Stanley Elkins chegasse a conclusões semelhantes em um polêmico livro publicado
em 1959, às vésperas de Cardoso iniciar a
redação de sua tese. Segundo Elkins, a natureza selvagemente capitalista da escravidão no sul dos Estados Unidos, ao contrário do que aconteceria em países como
o Brasil, teria levado o sistema a um tal nível de brutalidade e desumanização do
trabalhador escravizado que as unidades
produtivas escravistas seriam comparáveis a campos de concentração. Como resultado, os escravos desenvolveram personalidades infantilizadas semelhantes às
vítimas daquelas instituições nazistas.
Elkins era um intelectual progressista
que assim buscava radicalizar, retrospectivamente, a denúncia à escravidão norte-americana para esclarecer a origem
histórica da situação do negro e do racismo em seu país. A comparação com o
projeto intelectual de Cardoso é tentadora. A ironia é que Elkins, inspirado em
Freyre, usou o Brasil como um exemplo
de escravidão que não brutalizou, não
negou ao escravo o estatuto de pessoa.
O trabalho de Elkins criou uma reação
em cadeia que, inspirada no ativismo negro da década de 60, resultaria numa renovação da historiografia da escravidão
nos Estados Unidos, escravidão agora interpretada também do ponto de vista do
escravo. Um historiador negro, John
Blassingame, publicou um livro em 1972,
explicitamente dedicado a replicar Elkins, cujo título, "Slave Community"
("Comunidade Escrava"), refletia bem
seu objetivo: estabelecer que não se encaixam na imagem para eles criada por
Elkins os escravos que constituíram família, ritualizaram casamento, nascimento e morte através de tradições culturais significativas, além de apresentarem
outros elementos comuns a coletividades
humanas. Depois de Blassingame, e mesmo antes dele, vários pesquisadores
apontaram na mesma direção. Algo semelhante aconteceria com a historiografia brasileira da escravidão ao longo dos
últimos 20 anos, que reagiu a interpretações tipicamente representadas por esta
obra de Cardoso.
Os "incentivos"
Que a força constituiu aspecto fundamental da escravidão, a historiografia recente, inclusive aquela escrita sobre o Rio
Grande do Sul, concorda inteiramente. A
discordância ocorre quanto à tese de que
só a força explicaria a sua existência e dinamismo e, sobretudo, que o escravo tivesse sucumbido tão completamente ao
domínio senhorial. Nenhum sistema social resiste a isso por muito tempo, tampouco este, que durou quase quatro séculos.
Os novos estudos na sua maioria têm
mostrado que na escravidão o chicote foi
combinado a diversos tipos de "incentivo" não violento, como o acesso a roças
de subsistência e ao mercado para venda
de eventuais excedentes de produção, arranjos de meação em muitos casos, reconhecimento do pecúlio escravo e aceitação de seu uso para a compra de alforrias,
permissão a uma vida familiar, ao lazer
autônomo e à participação em instituições religiosas, nem sempre católicas. Essas concessões, vistas pelo ângulo do escravo, faziam parte do repertório de suas
conquistas. Os escravos, além disso,
transformaram muitos desses ganhos em
direitos costumeiros que, ninguém duvida, eram frequentemente tolhidos pelo
senhor, o que resultava, também frequentemente, em rebeldia.
Essas coisas não se passavam apenas
nas grandes propriedades. Pequenos escravistas também concediam, talvez mais
do que os grandes patriarcas, porque não
tinham a capacidade de vigilância e violência que estes tinham. Pelo ângulo estritamente econômico, os pequenos senhores podiam suportar menos a rebeldia escrava. A fuga individual, por exemplo, uma rotina da escravidão, prejudicava mais a um proprietário de dois escravos do que a um de 200.
O escravo, enfim, era uma propriedade
que trabalhava muito, mas que também
dava muito trabalho. Ele não permitiu
que a escravidão fosse perfeita, como prevalece na obra de Cardoso, exatamente
porque não permitiu que sua vontade
apenas refletisse a vontade do senhor. Pelo contrário, a vontade do escravo amiúde parecia ao senhor como sua própria
vontade. Artimanhas de escravo.
No prefácio escrito para esta edição,
Cardoso demonstra desconforto em relação ao que escreveu sobre o escravo, inspirado em Lukács, mas como também
garante que sua tese "pára em pé", achei
por bem concentrar meus comentários
sobre este aspecto central de sua tese. Outros são menos problemáticos, embora
careçam de maior fundamentação empírica -como a comparação entre as charqueadas riograndenses e os saladeiros
dos países platinos-, e alguns de enorme valor ainda hoje, como sua análise da
ideologia racial no Brasil pós-escravista.
É assim muito positiva a publicação dessa
nova edição de "Capitalismo e Escravidão".
João José Reis é historiador, professor na Universidade Federal da Bahia e autor de "Rebelião Escrava no Brasil" (Cia. das Letras).
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