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São Paulo, sábado, 13 de setembro de 2003

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Coisa

De onde teria Cardoso tirado essa suposta característica de uma escravidão regida pelo "patriarcalismo brasileiro tradicional"? Por estas e outras, no mínimo temos que nuançar o caráter de ruptura entre a visão cardosiana e a freyreana da escravidão brasileira, até porque Cardoso não se coloca essa tarefa explicitamente neste livro.
É verdade, porém, que ele irá desenvolver seus argumentos principalmente em outra direção, enfatizando à exaustão, de um lado, o aspecto exclusivamente coercitivo das relações escravistas e, de outro, a passividade extrema do escravo nessas relações. Aliás, o uso da força e o rígido controle senhoriais seriam, afinal, características também dos grandes proprietários das charqueadas gaúchas, os melhores candidatos a patriarcas tradicionais e brandos. Quanto ao escravo, Cardoso começa definindo-o do ponto de vista jurídico, como mercadoria, uma coisa que podia ser objeto de diversos tipos de transação comercial.
Nenhuma novidade. A novidade está em que o escravo de Cardoso teria se tornado subjetivamente uma coisa, no sentido de que sua vontade consistia em reflexo da vontade do senhor. A tese do escravo-coisa, que fez escola, resulta em parte do uso de um marxismo esquemático, em voga na época em que apareceu este livro, e conduz o autor a concluir que a posição estrutural dos escravos os impedia de vislumbrar seus próprios interesses, daí necessitarem de sociólogos para fazê-lo. O autor então acreditava na tese lukacsiana de "consciência possível" e explica que, das classes subordinadas, só ao proletariado seria dado entender seus próprios interesses e traçar seu próprio destino.
O conceito de alienação é acionado para arrematar a análise. O que historicamente produz a alienação do escravo é seu embrutecimento à base de uma "socialização parcial", feita para treiná-lo na ponta do chicote apenas para servir, para tocar a produção senhorial. O resultado seria um escravo infantilizado, espécie de zumbi, mas não no sentido palmarino do termo. Esse escravo aparentemente não teria laços de parentesco, redes sociais e práticas culturais próprios, enfim nada seu de significativo para contrapor àquele processo de socialização alienante imposto pelo domínio senhor. Ele não é reconhecido pelo senhor, nem se reconhece como pessoa: lemos isso ao longo do livro.

Rebeldia escrava
Quando o leitor já está quase convencido da autenticidade desse quadro assombroso, Cardoso o reanima com páginas dedicadas à rebeldia escrava, agora afirmando que a coisificação antes pintada afinal não passava de aparência das coisas. Em suas palavras, "a resignação do escravo à [sua] situação era aparente". Isso valia sobretudo para escravos situados em posições menos convencionais na estrutura escravista -artesãos, domésticos, trabalhadores urbanos-, de onde podiam enxergar mais longe do que os escravos rurais. Uns mais que outros, contudo, todos fugiam, roubavam, desobedeciam aos senhores e ativavam outras formas de transgressão que, segundo Cardoso, devolviam-lhes a humanidade.
Mas o alívio do leitor dura pouco, porque a rebeldia escrava termina ela também virando um jogo de aparências, apenas refletindo a "mera necessidade subjetiva de afirmação, que não encontrava condições para realizar-se concretamente". Ou seja, de nada adiantou a liberdade subjetiva de repente adquirida pelo escravo de Cardoso, porque ele não fazia com ela o que devia fazer. A coerção brutal e o rígido controle senhoriais o teriam incapacitado de "reação coordenada e de perceber criticamente sua posição", e de tal forma que sua revolta não passaria de negação pura, sem um sentido de construção de futuro, limitando-se no "melhor dos casos" à formação de quilombos, que não passariam de uma "tentativa de retorno à situação tribal". Dá-se então que, no máximo, a rebeldia levava o escravo a um movimento de involução histórica.
No horizonte da análise cardosiana está sempre a destruição do sistema, algo que nem sempre estava no horizonte do escravo, daí suas ações emergirem como insuficiências da pena do sociólogo. O raciocínio é meio circular: o escravo é um ser alienado porque não consegue entender seu lugar na estrutura social, e não conseguirá destruir a estrutura social sem entendê-la. É também raciocínio evolucionista, porque a mudança desejável, que não é pequena, se dirige numa direção previamente estabelecida: do trabalho escravo para o trabalho assalariado, da sociedade de castas para uma de classes, do escravismo para o capitalismo pleno.
Como o estudo de Cardoso tem por objetivo entender esse conjunto de transições, como aliás sugere o seu título, o problema da abolição e de quem se responsabiliza pelo feito se torna impositivo. É daí precisamente que surge a insuficiência da ação coletiva escrava, que nunca alcança o patamar de uma ação revolucionária, no caso abolicionista, nos termos definidos pelo modelo desenhado por esse tipo de marxismo.

Jornal negro
Esse esquema é em grande parte projetado para interpretar o que se passou com o negro gaúcho no período pós-abolição, definido como o momento de sua integração a uma sociedade de classes. Esse negro, porém, não é o trabalhador rural descendente do escravo reificado das charqueadas, mas aquele que circula pelo ambiente urbano, se organiza e escreve jornais, deixando fontes históricas na superfície dos arquivos. Mesmo assim ele não se liberta das amarras ideológicas produzidas pelo branco, que impõe o seu modo de ser. Agora livre, mas pressionado por uma ideologia racista, aliás bem caracterizada por Cardoso, que barra sua ascensão social, o negro vai se esforçar para imitar o branco em modos de falar, de vestir, de se comportar. Fica faltando a informação sobre quais seriam os modos genuinamente negros de fazer essas coisas, ou se eles teriam de ser inventados. Mas, apesar de uma leitura às vezes superficial do jornal negro "O Exemplo", sua principal fonte para discutir a "consciência negra" nesse período, Cardoso apresenta um bom mapa das discussões feitas por e entre negros sobre sua luta no mundo dos brancos.
Muitas das conclusões de Cardoso decorrem de uma leitura passiva de suas fontes. O viajante Saint-Hilaire, por exemplo, lhe serve de guia para conclusões relativas à negação social supostamente introjetada pelo escravo. Saint-Hilaire escreve que o escravo se compara aos animais para se sentir humano, e Cardoso acredita. Saint-Hilaire escreve que um escravo demonstrou ter um raciocínio infantil por se recusar a penetrar a floresta, alegando que os "tigres" preferem a carne negra, e Cardoso acredita. Como sugere Sidney Chalhoub em "Visões da Liberdade", neste último caso não ocorre a Cardoso fazer uma leitura na contramão do europeu e perceber que o escravo estava apenas tentando se safar do trabalho pesado. Ou seja, estava sendo inteligente.
É interessante que, percorrendo caminho teórico diferente, mais próximo de um funcionalismo bem regado a psicologia, o historiador norte-americano Stanley Elkins chegasse a conclusões semelhantes em um polêmico livro publicado em 1959, às vésperas de Cardoso iniciar a redação de sua tese. Segundo Elkins, a natureza selvagemente capitalista da escravidão no sul dos Estados Unidos, ao contrário do que aconteceria em países como o Brasil, teria levado o sistema a um tal nível de brutalidade e desumanização do trabalhador escravizado que as unidades produtivas escravistas seriam comparáveis a campos de concentração. Como resultado, os escravos desenvolveram personalidades infantilizadas semelhantes às vítimas daquelas instituições nazistas.
Elkins era um intelectual progressista que assim buscava radicalizar, retrospectivamente, a denúncia à escravidão norte-americana para esclarecer a origem histórica da situação do negro e do racismo em seu país. A comparação com o projeto intelectual de Cardoso é tentadora. A ironia é que Elkins, inspirado em Freyre, usou o Brasil como um exemplo de escravidão que não brutalizou, não negou ao escravo o estatuto de pessoa.
O trabalho de Elkins criou uma reação em cadeia que, inspirada no ativismo negro da década de 60, resultaria numa renovação da historiografia da escravidão nos Estados Unidos, escravidão agora interpretada também do ponto de vista do escravo. Um historiador negro, John Blassingame, publicou um livro em 1972, explicitamente dedicado a replicar Elkins, cujo título, "Slave Community" ("Comunidade Escrava"), refletia bem seu objetivo: estabelecer que não se encaixam na imagem para eles criada por Elkins os escravos que constituíram família, ritualizaram casamento, nascimento e morte através de tradições culturais significativas, além de apresentarem outros elementos comuns a coletividades humanas. Depois de Blassingame, e mesmo antes dele, vários pesquisadores apontaram na mesma direção. Algo semelhante aconteceria com a historiografia brasileira da escravidão ao longo dos últimos 20 anos, que reagiu a interpretações tipicamente representadas por esta obra de Cardoso.

Os "incentivos"
Que a força constituiu aspecto fundamental da escravidão, a historiografia recente, inclusive aquela escrita sobre o Rio Grande do Sul, concorda inteiramente. A discordância ocorre quanto à tese de que só a força explicaria a sua existência e dinamismo e, sobretudo, que o escravo tivesse sucumbido tão completamente ao domínio senhorial. Nenhum sistema social resiste a isso por muito tempo, tampouco este, que durou quase quatro séculos.
Os novos estudos na sua maioria têm mostrado que na escravidão o chicote foi combinado a diversos tipos de "incentivo" não violento, como o acesso a roças de subsistência e ao mercado para venda de eventuais excedentes de produção, arranjos de meação em muitos casos, reconhecimento do pecúlio escravo e aceitação de seu uso para a compra de alforrias, permissão a uma vida familiar, ao lazer autônomo e à participação em instituições religiosas, nem sempre católicas. Essas concessões, vistas pelo ângulo do escravo, faziam parte do repertório de suas conquistas. Os escravos, além disso, transformaram muitos desses ganhos em direitos costumeiros que, ninguém duvida, eram frequentemente tolhidos pelo senhor, o que resultava, também frequentemente, em rebeldia.
Essas coisas não se passavam apenas nas grandes propriedades. Pequenos escravistas também concediam, talvez mais do que os grandes patriarcas, porque não tinham a capacidade de vigilância e violência que estes tinham. Pelo ângulo estritamente econômico, os pequenos senhores podiam suportar menos a rebeldia escrava. A fuga individual, por exemplo, uma rotina da escravidão, prejudicava mais a um proprietário de dois escravos do que a um de 200.
O escravo, enfim, era uma propriedade que trabalhava muito, mas que também dava muito trabalho. Ele não permitiu que a escravidão fosse perfeita, como prevalece na obra de Cardoso, exatamente porque não permitiu que sua vontade apenas refletisse a vontade do senhor. Pelo contrário, a vontade do escravo amiúde parecia ao senhor como sua própria vontade. Artimanhas de escravo.
No prefácio escrito para esta edição, Cardoso demonstra desconforto em relação ao que escreveu sobre o escravo, inspirado em Lukács, mas como também garante que sua tese "pára em pé", achei por bem concentrar meus comentários sobre este aspecto central de sua tese. Outros são menos problemáticos, embora careçam de maior fundamentação empírica -como a comparação entre as charqueadas riograndenses e os saladeiros dos países platinos-, e alguns de enorme valor ainda hoje, como sua análise da ideologia racial no Brasil pós-escravista. É assim muito positiva a publicação dessa nova edição de "Capitalismo e Escravidão".


João José Reis é historiador, professor na Universidade Federal da Bahia e autor de "Rebelião Escrava no Brasil" (Cia. das Letras).


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