São Paulo, sábado, 13 de outubro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Dupla identidade

Os vínculos da psicanálise com o judaísmo

Freud e a Judeidade - A Vocação do Exílio
Betty B. Fuks
Jorge Zahar Editor
(Tel. 0/xx/21/2240-0226)
178 págs., R$ 24,00

SERGIO PAULO ROUANET

Não são novas as tentativas de explorar a relação entre psicanálise e judaísmo. Mas em geral elas procuram fazer duas coisas inaceitáveis: psicanalisar o judaísmo ou judeizar a psicanálise. O primeiro procedimento implica o uso de categorias psicanalíticas para desvendar a natureza do judaísmo do próprio Freud. Busca-se psicanalisar o fundador da psicanálise. O outro tenta mostrar a presença de elementos judaicos na psicanálise. Mas essa presença é buscada a partir do que se considera ser a condição judaica. Ora, acontece que a condição judaica é definida via de regra em termos identitários, baseados no sangue e na religião. Por esse critério ou não pode existir judaísmo nenhum no pensamento de Freud, pois ele era declaradamente ateu, ou existe, sim, certo judaísmo, mas em estado latente, que cabe ao intérprete trazer à luz do dia.
Betty Fuks rejeita a validade do primeiro procedimento, que para ela equivale a uma psicanálise selvagem de Freud, arbitrária e amadorística. E recusa o segundo, contestando sua premissa: judaísmo não é sinônimo de religião judaica e não se pode fundar na religião a eventual ocorrência de traços judaicos na psicanálise.
Sua proposta é outra. A originalidade da sua abordagem é que ela não pensa o vínculo com o judaísmo por meio do conceito de condição judaica, e sim de uma categoria nova, a de judeidade. Enquanto a condição judaica designa uma situação estática, definida pela filiação e pelo culto, a judeidade é um projeto subjetivo que tem o futuro como horizonte, transgride os modelos do passado e escapa às contingências do mero nascimento.
A condição judaica é um estatuto, um enraizamento comunitário, uma origem. A judeidade, pelo contrário, não está na origem, mas no fim. Não é uma identidade herdada, é uma construção permanente, a recusa de toda identidade fixa, a eterna busca do não-idêntico. A judeidade é o exílio, a errância, a travessia do deserto, a experiência de uma inelutável estrangeiridade. É o que Betty Fuks passa a demonstrar.

O estrangeiro
O povo judeu é migrante por excelência, o povo do nomadismo. Tudo começa com Abraão deixando sua pátria, Ur. O desterro, para ele, não foi uma punição, mas a condição da aliança com Deus. Só depois de exilado é que ele se tornou digno de celebrar o pacto. Como o patriarca, o povo judeu é sempre o estrangeiro. Estrangeiro em Canaã, porque a terra não lhe pertencia originariamente. E estrangeiro em cada um dos seus lugares de banimento: primeiro no Egito, em seguida na Babilônia, enfim no mundo onde foi lançado depois da destruição de Jerusalém. No judaísmo da diáspora, essa condição de estrangeiro persiste.
O Deus desse povo estrangeiro também é estrangeiro. Ele é Kadosh, palavra hebraica que significa santo e separado, a presença inacessível de um sagrado que se define pela ausência. Deus é irrepresentável, inomeável, invisível, quase o puro nada. Daí a tentação do ateísmo, que longe de ser a negação do judaísmo constitui uma de suas virtualidades. Atribuir a Deus uma realidade análoga à do mundo das coisas existentes é quase sucumbir a uma atitude idolátrica, como a que levou o povo hebreu a construir no Sinai um bezerro de ouro. Esse Deus ausente só pode se comunicar com os homens mediante a palavra. Mas por isso mesmo é preciso valorizá-la até os últimos limites, impedindo que seja deturpada pelo dogmatismo.
A estrangeiridade de Deus reflete-se em sua relação com o tempo. O espaço de separação entre Deus e o homem é o tempo futuro, cujo paradigma é dado pelo episódio da sarça ardente, no Êxodo, em que Deus diz a Moisés que lhe pergunta seu nome: "Eu serei o que serei". Pois o verbo ser, em hebraico, não se conjuga no presente, somente no passado e no futuro.
Mas, além das idiossincrasias gramaticais, o que essa passagem assinala é de novo a idéia da separação, da não-contemporaneidade de Deus a seu povo, ao mesmo tempo em que impõe a exigência de que também esse povo passe a existir na perspectiva do devir, do tornar-se outro ao longo do tempo. Isso funda para o povo judeu uma relação especial com o futuro. Ele está sob o signo do devir, da construção de uma identidade sempre inacabada, na perspectiva de um futuro infinitamente aberto.
É a judeidade, definida por esses elementos, que estabelece o vínculo entre judaísmo e psicanálise. Qual sua natureza? É um vínculo de fundação, em que a judeidade funciona como uma espécie de alicerce da psicanálise, se tomarmos ao pé da letra uma das formulações da autora que diz que "o devir outro na constituição da judeidade de Freud subjaz à construção da psicanálise enquanto uma prática e uma teoria do não-idêntico". Mas em outras passagens ela prefere dizer que é um vínculo de homologia, de paralelismo, de articulação, de concomitância. Segundo essa interpretação, Freud construiu sua judeidade "pari passu" com a construção da psicanálise. Ele construiu sua judeidade na medida em que aceitou a marginalidade, a posição minoritária e o exílio: exílio dentro da própria comunidade judaica, por não praticar a religião dos seus pais, e com relação à maioria, cujo anti-semitismo se tornava cada vez mais estridente. E construiu a psicanálise contra a ciência oficial que rejeitava a existência do inconsciente. Pôs-se na posição de exilado dentro da comunidade científica.

Ateísmo e judaísmo
A judeidade, porém, não está apenas no exterior da psicanálise, e sim dentro dela. Reencontramos no âmago do pensamento de Freud todas as figuras do exílio, da ausência, do ser e tornar-se outro -as figuras da estrangeiridade. Ausência de Deus, porque é um pensamento ateu, mas sabemos agora que o ateísmo é uma das virtualidades do judaísmo: o ateísmo da escrita, da palavra livre e da escuta flutuante, sem dogmas e idéias preconcebidas, forma de enunciação cujo paradigma é justamente a palavra analítica. Ausência de fronteiras, própria da condição nômade, e isso no duplo sentido de que o pensamento freudiano é avesso a todas as identidades fixas, inclusive a judaica, e de que transgride todas as barreiras disciplinares, estendendo-se a todas as produções do espírito e a todas as atividades humanas. Exílio, destino histórico do povo judeu, e também forma de exclusão psíquica, pela qual uma parte de nós mesmos fica desterrada no que Freud chamava "território estrangeiro interno", o inconsciente.
Exílio, também, na própria experiência analítica, em que o sujeito se desterra de toda uma região de si mesmo, do seu eu narcísico e do seu superego autoritário, em direção ao país do Outro. Nomadismo da linguagem, a linguagem dos processos primários, reino da energia livre, nos quais, à semelhança do idioma hebraico, todos os contrários podem coexistir, pois o processo de deslocamento faz com que as intensidades psíquicas possam circular livremente de uma representação para outra. Nomadismo, enfim, na ordem do tempo, graças ao qual tanto o judaísmo quanto a psicanálise rompem a sequência linear e irreversível da cronologia ocidental.
O que dizer do livro de Betty Fuks, depois de dizer o óbvio -que é um dos livros mais brilhantes sobre o tema da relação entre a psicanálise e o judaísmo? Prefiro ir além do óbvio, acrescentando algo que não é bem uma reserva, e sim um pedido, que talvez a autora possa satisfazer em trabalhos futuros.
Ficaríamos gratos se ela pudesse explicitar melhor a influência da outra cultura, a ocidental, em sua relação com a cultura judaica. Ela conhece perfeitamente a importância dessa polaridade. Sem dúvida, seu tema era o judaísmo, e não a totalidade das influências culturais que agiram sobre Freud. Mas é esse, justamente, o cerne da questão. É possível compreender o elemento judaico da psicanálise isolando-o do não-judaico?
Creio que não. O judaico e o não-judaico são dois termos relacionais que só se tornam inteligíveis em sua interação. A psicanálise não surgiu da cultura judaica nem da iluminista, mas da relação antagonística entre as duas. Ela incorpora a cultura ocidental, mas a nega, incorpora a judaica, mas a nega. É o produto dessa dupla recusa, dessa dupla desidentificação, em que cada cultura funciona como crítica e denegação da outra.
Assim, usando as categorias da judeidade para criticar a cultura ocidental e vice-versa, Freud construiu um saber que não é nem o logos ocidental nem a razão judaica, segundo critérios que não satisfazem nem as exigências de cientificidade da Europa nem as de ortodoxia do judaísmo, num caminhar que não respeita nem a definição ocidental de limite, porque ultrapassa todas as fronteiras, nem concebe a desterritorialização como exílio ontológico, mas como correlato da universalidade da ciência.
A psicanálise é atópica por ser um saber da Diáspora, mas a Diáspora, cuja importância para a constituição da psicanálise Betty Fuks reconhece com toda clareza, significa justamente uma interação com a cultura do país de exílio, e foi essa interação, esse "entre-dois", nas palavras da autora, que fez da psicanálise um saber sem lugar, uma ciência do intervalo, do interstício, do não-estar em lugar nenhum.
Não é o judaísmo que força a psicanálise a ser uma ciência do não-lugar, e sim o confronto polêmico entre o judaísmo e a outra cultura, pelo qual a psicanálise se exila de ambos. Sem dúvida é um progresso enorme construir o judaísmo em termos de judeidade, isto é, de devir, e não em termos de condição judaica, ou seja, de identidade fixa. Nisso Betty Fuks dá um exemplo admirável de imaginação política, que deveria ser meditado por todos os movimentos sociais que partem de uma definição essencialista da identidade feminina ou afro-brasileira.

Princípio complementar
Mas a dificuldade de base persiste. Não há em seu livro um monismo identitário, mas há um princípio monista. Por que não admitir, em vez disso, a existência de outro princípio diretor, lado a lado com o primeiro, opondo-se a ele, circunstancialmente complementando-o, algo como a europeidade, por exemplo, a vontade de vir a ser, tendencialmente, um homem de cultura européia ou cosmopolita? Sim, Goethe tem razão quando diz que podemos tornar verdadeiramente nosso aquilo que herdamos, desde que nos esforcemos por adquiri-lo. Mas por que privilegiar, como objeto de nosso trabalho de autoformação, somente aquilo que herdamos, em vez de fazer uso da prerrogativa máxima da razão iluminista, a de escolher livremente, além de todas as vicissitudes do registro civil, aquilo que desejamos vir a ser?
A resposta óbvia para todas essas dúvidas é que, embora seja possível um processo de autoformação a partir do que não herdamos, não foi essa, simplesmente, a opção de Freud, que escolheu sem nenhuma dúvida a judeidade como principal coordenada do seu percurso pessoal e intelectual. Mas, se é verdade que no final de sua vida, indignado com o anti-semitismo nazista, Freud afirmou seu judaísmo muito mais apaixonadamente que no passado, é também verdade que em nenhum momento ele se demitiu da outra cultura, porque isso seria rejeitar a grande tradição do humanismo clássico no qual tinha ido buscar o mito fundador da psicanálise, Édipo.
Termino esta resenha com a impressão de ter feito muito barulho por nada, porque me limitei a deixar explícito o que para Betty Fuks tinha ficado subentendido. Ela nunca disse que só a cultura judaica desempenhara um papel na gênese da psicanálise e afirmou que seu estatuto de ciência sem lugar vinha do fato de que o freudismo é um pensamento da Diáspora, ao mesmo tempo dentro e fora da cultura local.
Pior: pergunto-me se nesse "plaidoyer" enfático a favor do biculturalismo eu não estaria falando "pro domo mea", reservando-me o direito de escolher o judaísmo, sem deixar de ser cristão. Ou, quem sabe, se não é por ciúme que estou relativizando o judaísmo de Freud, para que, se tornando menos judeu, esse terrível pai primordial possa amar-me tanto quanto ama os seus filhos judeus? Digo para meus botões que minha culpa não seria assim tão grande. Afinal, com essa cassação parcial da condição judaica de Freud eu não estaria imitando o próprio Freud, quando privou Moisés de sua condição de filho de Israel?
Mas estamos na esfera pública, e não na intimidade de um consultório. Redundante ou tendenciosa, esta resenha se terá justificado se contribuir para que o importantíssimo livro de Betty Fuks seja lido pelo grande público. Esperemos que ele possa devolver a psicanálise à sua vocação de pensamento da diferença, do não-idêntico, do exílio. E que possa ajudar-nos, judeus e não-judeus, a refazer a experiência da dupla identidade, sem a qual a psicanálise não teria podido surgir, e sem a qual perderíamos a capacidade de comunicar-nos com o Outro fora de nós, o estrangeiro, e com o Outro dentro de nós, o inconsciente.


Sergio Paulo Rouanet é autor, entre outros livros, de "Mal-Estar na Modernidade" (Cia. das Letras).


Texto Anterior: Yanet Aguilera: O clown branco e o palhaço pobre
Próximo Texto: Jorge de Almeida: O caráter russo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.