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Dupla identidade
Os vínculos da psicanálise com o judaísmo
Freud e a Judeidade - A Vocação do Exílio
Betty B. Fuks
Jorge Zahar Editor
(Tel. 0/xx/21/2240-0226)
178 págs., R$ 24,00
SERGIO PAULO ROUANET
Não são novas as tentativas de explorar
a relação entre psicanálise e judaísmo.
Mas em geral elas procuram fazer duas
coisas inaceitáveis: psicanalisar o judaísmo ou judeizar a psicanálise. O primeiro
procedimento implica o uso de categorias psicanalíticas para desvendar a natureza do judaísmo do próprio Freud. Busca-se psicanalisar o fundador da psicanálise. O outro tenta mostrar a presença de
elementos judaicos na psicanálise. Mas
essa presença é buscada a partir do que se
considera ser a condição judaica. Ora,
acontece que a condição judaica é definida via de regra em termos identitários,
baseados no sangue e na religião. Por esse
critério ou não pode existir judaísmo nenhum no pensamento de Freud, pois ele
era declaradamente ateu, ou existe, sim,
certo judaísmo, mas em estado latente,
que cabe ao intérprete trazer à luz do dia.
Betty Fuks rejeita a validade do primeiro procedimento, que para ela equivale a
uma psicanálise selvagem de Freud, arbitrária e amadorística. E recusa o segundo,
contestando sua premissa: judaísmo não
é sinônimo de religião judaica e não se
pode fundar na religião a eventual ocorrência de traços judaicos na psicanálise.
Sua proposta é outra. A originalidade
da sua abordagem é que ela não pensa o
vínculo com o judaísmo por meio do
conceito de condição judaica, e sim de
uma categoria nova, a de judeidade. Enquanto a condição judaica designa uma
situação estática, definida pela filiação e
pelo culto, a judeidade é um projeto subjetivo que tem o futuro como horizonte,
transgride os modelos do passado e escapa às contingências do mero nascimento.
A condição judaica é um estatuto, um
enraizamento comunitário, uma origem.
A judeidade, pelo contrário, não está na
origem, mas no fim. Não é uma identidade herdada, é uma construção permanente, a recusa de toda identidade fixa, a
eterna busca do não-idêntico. A judeidade é o exílio, a errância, a travessia do deserto, a experiência de uma inelutável estrangeiridade. É o que Betty Fuks passa a
demonstrar.
O estrangeiro
O povo judeu é migrante por excelência, o povo do nomadismo. Tudo começa
com Abraão deixando sua pátria, Ur. O
desterro, para ele, não foi uma punição,
mas a condição da aliança com Deus. Só
depois de exilado é que ele se tornou digno de celebrar o pacto. Como o patriarca,
o povo judeu é sempre o estrangeiro. Estrangeiro em Canaã, porque a terra não
lhe pertencia originariamente. E estrangeiro em cada um dos seus lugares de banimento: primeiro no Egito, em seguida
na Babilônia, enfim no mundo onde foi
lançado depois da destruição de Jerusalém. No judaísmo da diáspora, essa condição de estrangeiro persiste.
O Deus desse povo estrangeiro também
é estrangeiro. Ele é Kadosh, palavra hebraica que significa santo e separado, a
presença inacessível de um sagrado que
se define pela ausência. Deus é irrepresentável, inomeável, invisível, quase o
puro nada. Daí a tentação do ateísmo,
que longe de ser a negação do judaísmo
constitui uma de suas virtualidades. Atribuir a Deus uma realidade análoga à do
mundo das coisas existentes é quase sucumbir a uma atitude idolátrica, como a
que levou o povo hebreu a construir no
Sinai um bezerro de ouro. Esse Deus ausente só pode se comunicar com os homens mediante a palavra. Mas por isso
mesmo é preciso valorizá-la até os últimos limites, impedindo que seja deturpada pelo dogmatismo.
A estrangeiridade de Deus reflete-se em
sua relação com o tempo. O espaço de separação entre Deus e o homem é o tempo
futuro, cujo paradigma é dado pelo episódio da sarça ardente, no Êxodo, em que
Deus diz a Moisés que lhe pergunta seu
nome: "Eu serei o que serei". Pois o verbo
ser, em hebraico, não se conjuga no presente, somente no passado e no futuro.
Mas, além das idiossincrasias gramaticais, o que essa passagem assinala é de
novo a idéia da separação, da não-contemporaneidade de Deus a seu povo, ao
mesmo tempo em que impõe a exigência
de que também esse povo passe a existir
na perspectiva do devir, do tornar-se outro ao longo do tempo. Isso funda para o
povo judeu uma relação especial com o
futuro. Ele está sob o signo do devir, da
construção de uma identidade sempre
inacabada, na perspectiva de um futuro
infinitamente aberto.
É a judeidade, definida por esses elementos, que estabelece o vínculo entre
judaísmo e psicanálise. Qual sua natureza? É um vínculo de fundação, em que a
judeidade funciona como uma espécie de
alicerce da psicanálise, se tomarmos ao
pé da letra uma das formulações da autora que diz que "o devir outro na constituição da judeidade de Freud subjaz à construção da psicanálise enquanto uma prática e uma teoria do não-idêntico". Mas
em outras passagens ela prefere dizer que
é um vínculo de homologia, de paralelismo, de articulação, de concomitância. Segundo essa interpretação, Freud construiu sua judeidade "pari passu" com a
construção da psicanálise. Ele construiu
sua judeidade na medida em que aceitou
a marginalidade, a posição minoritária e
o exílio: exílio dentro da própria comunidade judaica, por não praticar a religião
dos seus pais, e com relação à maioria,
cujo anti-semitismo se tornava cada vez
mais estridente. E construiu a psicanálise
contra a ciência oficial que rejeitava a
existência do inconsciente. Pôs-se na posição de exilado dentro da comunidade
científica.
Ateísmo e judaísmo
A judeidade, porém, não está apenas no
exterior da psicanálise, e sim dentro dela.
Reencontramos no âmago do pensamento de Freud todas as figuras do exílio, da
ausência, do ser e tornar-se outro -as figuras da estrangeiridade. Ausência de
Deus, porque é um pensamento ateu,
mas sabemos agora que o ateísmo é uma
das virtualidades do judaísmo: o ateísmo
da escrita, da palavra livre e da escuta flutuante, sem dogmas e idéias preconcebidas, forma de enunciação cujo paradigma é justamente a palavra analítica. Ausência de fronteiras, própria da condição
nômade, e isso no duplo sentido de que o
pensamento freudiano é avesso a todas as
identidades fixas, inclusive a judaica, e de
que transgride todas as barreiras disciplinares, estendendo-se a todas as produções do espírito e a todas as atividades
humanas. Exílio, destino histórico do povo judeu, e também forma de exclusão
psíquica, pela qual uma parte de nós mesmos fica desterrada no que Freud chamava "território estrangeiro interno", o inconsciente.
Exílio, também, na própria experiência
analítica, em que o sujeito se desterra de
toda uma região de si mesmo, do seu eu
narcísico e do seu superego autoritário,
em direção ao país do Outro. Nomadismo da linguagem, a linguagem dos processos primários, reino da energia livre,
nos quais, à semelhança do idioma hebraico, todos os contrários podem coexistir, pois o processo de deslocamento
faz com que as intensidades psíquicas
possam circular livremente de uma representação para outra. Nomadismo, enfim, na ordem do tempo, graças ao qual
tanto o judaísmo quanto a psicanálise
rompem a sequência linear e irreversível
da cronologia ocidental.
O que dizer do livro de Betty Fuks, depois de dizer o óbvio -que é um dos livros mais brilhantes sobre o tema da relação entre a psicanálise e o judaísmo? Prefiro ir além do óbvio, acrescentando algo
que não é bem uma reserva, e sim um pedido, que talvez a autora possa satisfazer
em trabalhos futuros.
Ficaríamos gratos se ela pudesse explicitar melhor a influência da outra cultura,
a ocidental, em sua relação com a cultura
judaica. Ela conhece perfeitamente a importância dessa polaridade. Sem dúvida,
seu tema era o judaísmo, e não a totalidade das influências culturais que agiram
sobre Freud. Mas é esse, justamente, o
cerne da questão. É possível compreender o elemento judaico da psicanálise isolando-o do não-judaico?
Creio que não. O judaico e o não-judaico são dois termos relacionais que só se
tornam inteligíveis em sua interação. A
psicanálise não surgiu da cultura judaica
nem da iluminista, mas da relação antagonística entre as duas. Ela incorpora a
cultura ocidental, mas a nega, incorpora
a judaica, mas a nega. É o produto dessa
dupla recusa, dessa dupla desidentificação, em que cada cultura funciona como
crítica e denegação da outra.
Assim, usando as categorias da judeidade para criticar a cultura ocidental e vice-versa, Freud construiu um saber que
não é nem o logos ocidental nem a razão
judaica, segundo critérios que não satisfazem nem as exigências de cientificidade
da Europa nem as de ortodoxia do judaísmo, num caminhar que não respeita
nem a definição ocidental de limite, porque ultrapassa todas as fronteiras, nem
concebe a desterritorialização como exílio ontológico, mas como correlato da
universalidade da ciência.
A psicanálise é atópica por ser um saber
da Diáspora, mas a Diáspora, cuja importância para a constituição da psicanálise
Betty Fuks reconhece com toda clareza,
significa justamente uma interação com a
cultura do país de exílio, e foi essa interação, esse "entre-dois", nas palavras da autora, que fez da psicanálise um saber sem
lugar, uma ciência do intervalo, do interstício, do não-estar em lugar nenhum.
Não é o judaísmo que força a psicanálise a ser uma ciência do não-lugar, e sim o
confronto polêmico entre o judaísmo e a
outra cultura, pelo qual a psicanálise se
exila de ambos. Sem dúvida é um progresso enorme construir o judaísmo em
termos de judeidade, isto é, de devir, e
não em termos de condição judaica, ou
seja, de identidade fixa. Nisso Betty Fuks
dá um exemplo admirável de imaginação
política, que deveria ser meditado por todos os movimentos sociais que partem de
uma definição essencialista da identidade
feminina ou afro-brasileira.
Princípio complementar
Mas a dificuldade de base persiste. Não
há em seu livro um monismo identitário,
mas há um princípio monista. Por que
não admitir, em vez disso, a existência de
outro princípio diretor, lado a lado com o
primeiro, opondo-se a ele, circunstancialmente complementando-o, algo como a europeidade, por exemplo, a vontade de vir a ser, tendencialmente, um homem de cultura européia ou cosmopolita? Sim, Goethe tem razão quando diz
que podemos tornar verdadeiramente
nosso aquilo que herdamos, desde que
nos esforcemos por adquiri-lo. Mas por
que privilegiar, como objeto de nosso trabalho de autoformação, somente aquilo
que herdamos, em vez de fazer uso da
prerrogativa máxima da razão iluminista, a de escolher livremente, além de todas as vicissitudes do registro civil, aquilo
que desejamos vir a ser?
A resposta óbvia para todas essas dúvidas é que, embora seja possível um processo de autoformação a partir do que
não herdamos, não foi essa, simplesmente, a opção de Freud, que escolheu sem
nenhuma dúvida a judeidade como principal coordenada do seu percurso pessoal
e intelectual. Mas, se é verdade que no final de sua vida, indignado com o anti-semitismo nazista, Freud afirmou seu judaísmo muito mais apaixonadamente
que no passado, é também verdade que
em nenhum momento ele se demitiu da
outra cultura, porque isso seria rejeitar a
grande tradição do humanismo clássico
no qual tinha ido buscar o mito fundador
da psicanálise, Édipo.
Termino esta resenha com a impressão
de ter feito muito barulho por nada, porque me limitei a deixar explícito o que para Betty Fuks tinha ficado subentendido.
Ela nunca disse que só a cultura judaica
desempenhara um papel na gênese da
psicanálise e afirmou que seu estatuto de
ciência sem lugar vinha do fato de que o
freudismo é um pensamento da Diáspora, ao mesmo tempo dentro e fora da cultura local.
Pior: pergunto-me se nesse "plaidoyer"
enfático a favor do biculturalismo eu não
estaria falando "pro domo mea", reservando-me o direito de escolher o judaísmo, sem deixar de ser cristão. Ou, quem
sabe, se não é por ciúme que estou relativizando o judaísmo de Freud, para que,
se tornando menos judeu, esse terrível
pai primordial possa amar-me tanto
quanto ama os seus filhos judeus? Digo
para meus botões que minha culpa não
seria assim tão grande. Afinal, com essa
cassação parcial da condição judaica de
Freud eu não estaria imitando o próprio
Freud, quando privou Moisés de sua condição de filho de Israel?
Mas estamos na esfera pública, e não na
intimidade de um consultório. Redundante ou tendenciosa, esta resenha se terá
justificado se contribuir para que o importantíssimo livro de Betty Fuks seja lido pelo grande público. Esperemos que
ele possa devolver a psicanálise à sua vocação de pensamento da diferença, do
não-idêntico, do exílio. E que possa ajudar-nos, judeus e não-judeus, a refazer a
experiência da dupla identidade, sem a
qual a psicanálise não teria podido surgir,
e sem a qual perderíamos a capacidade de
comunicar-nos com o Outro fora de nós,
o estrangeiro, e com o Outro dentro de
nós, o inconsciente.
Sergio Paulo Rouanet é autor, entre outros livros, de "Mal-Estar na Modernidade" (Cia. das Letras).
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