São Paulo, sábado, 13 de outubro de 2001

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Entre o céu e a terra

Arte e Arquitetura Flamenga 1585 - 1700
Hans Vlieghe
Tradução: Cláudio Marcondes
Cosac & Naify (Tel. 0/xx/11/3218-1444)
340 págs., R$ 116,00

VICTOR KNOLL

A retomada de Antuérpia pelos espanhóis em 1585, que levou à divisão entre o norte e o sul dos Países Baixos, teve duas consequências para a região meridional. Grande parte dos artistas comprometidos com o protestantismo iniciou uma onde migratória para a Holanda. Por outro lado, a nova ordem política e religiosa instaurada pela Contra-Reforma fez com que a pintura histórica monumental, de conteúdo religioso, encontrasse extraordinário alento. Novas igrejas, mosteiros e abadias foram edificados como também os já existentes foram reformados: todos necessitavam de imagens para os seus altares, paredes e tetos que glorificassem os dogmas católicos contestados pelos protestantes.
Entretanto os artistas atuantes nos Países Baixos do Sul, entre 1585 e 1700, apenas em parte se sentiam ligados a uma tradição diversa à da região setentrional: uma cultura enraizada na mesma tradição do século 16, a mobilidade de muitos artistas que trabalharam nas duas regiões, o caráter burguês. No entanto costuma-se estabelecer um parâmetro territorial que define o que a historiografia chama por "arte flamenga". Para o interesse artístico, a arte do país meridional encontra-se em Brabante e Luxemburgo e apresenta algum interesse em Flandres. De qualquer modo, o coração da atividade artística foi Antuérpia.
Quanto ao decurso temporal, o livro trabalha com o período de 1585 a 1700 -do momento em que se deu a divisão das duas regiões dos Países Baixos até a morte do rei espanhol Carlos 2º, que por não deixar herdeiros determinou o fim do domínio dos Habsburgos e assim as terras meridionais reverteram para a Áustria em 1713 com o Tratado de Utrecht.
De fins do século 16 até 1625 quadruplicou o número de artistas que se vincularam à Guilda de São Lucas em Antuérpia, por força das encomendas derivadas da ação da Contra-Reforma. Até mesmo artistas setentrionais em início de carreira mudaram-se para Antuérpia.
De modo mais amplo, a arte flamenga foi marcada pelo poder do clero ao orientar o conteúdo da produção pictórica e escultural, uma vez que "os aspectos da doutrina católica rejeitados pelo protestantismo, como a veneração da Virgem Maria, os santos e os sacramentos, devem ser bastante enfatizados e retratados". Entretanto é certo que temos aqui apenas um lado da atividade artística flamenga, pois há que levar em conta, por exemplo, a pintura histórica laica, o retrato, as pinturas da vida cotidiana, as paisagens e as naturezas-mortas. Na arte flamenga -e aqui temos um ponto que a diferencia da atividade artística setentrional-, o céu e a terra estão contemplados.
Mas, também é certo que os gêneros terrestres mantiveram um compromisso com a arte eclesiástica. O retrato e as Madonas, a pintura de paisagem como fundo das cenas bíblicas.
A pintura histórica de cunho religioso ganhou caráter didático e de propaganda. As novas igrejas edificadas procuravam marcar a importância de seus santos padroeiros por meio da pintura e da escultura. Daí cenas de seus milagres e de suas vidas.
Embora a Igreja fosse responsável por parte respeitável das encomendas, havia também o patrocínio da rica burguesia e da aristocracia. A decoração das residências com pinturas era sinal de ascensão social ou de refinamento, que alojava o burguês ao lado do aristocrata ou afirmava o aristocrata como alguém que "não chegou agora".
Hans Vlieghe faz uma importante distinção em relação à produção e ao consumo da arte religiosa: ao lado das encomendas da Igreja, havia também as pinturas bíblicas de uso privado. A decoração do interior das casas tinha por fim marcar o sentido da família segundo a ética católica. A Contra-Reforma tratou de divulgar ao máximo as "imagens da Madona e as representações da Sagrada Família, temas que, como os tão frequentes "nascimento de Cristo" e "adoração dos Magos", proporcionavam um exemplo da família nuclear cristã".
O pano de fundo era realista e doméstico e isso estimulava a identificação com os valores morais do catolicismo expressos nas telas ou nas esculturas.
Ainda outra distinção o livro nos apresenta: a pintura histórica laica. É certo que as cenas da mitologia grega e da história romana não desfrutavam o mesmo lugar da arte religiosa, mas tais temas eram executados por encomenda para fora dos Países Baixos espanhóis. Basta lembrar a obra de Rubens voltada para essa temática e encomendada, por exemplo, por Maria de Medice.
De resto, a pintura histórica laica teve sua presença na decoração das sedes de municipalidades ou de corporações de ofícios. Aqui dá-se um ponto de encontro entre os Países Baixos do Norte e do Sul. Pinturas similares, cujos temas eram extraídos dos autores gregos e latinos, decoravam as paredes dos edifícios públicos de ambas as regiões.
Quanto ao uso privado das pintura, temos também a convergência de dois lados: não só a aristocracia e o clero mas também os comerciantes e os altos funcionários, além de se voltarem para os estudos filosóficos, tinham bem claro que ostentar obras de arte certificava cultura, prosperidade financeira e ascensão social.
Assim, em ambas as regiões dos Países Baixos teve grande impulso "o interesse pelas pinturas históricas eruditas de acentuado conteúdo alegórico".
Cabe aqui observar que o principal traço da vida intelectual nos Países Baixos do Sul "foi o florescimento de um humanismo católico, no qual as doutrinas da fé romana reconciliavam-se com uma ética baseada na filosofia estóica clássica".
Por outro lado, há que lembrar que as pinturas eram adquiridas também por motivos prosaicos. "Caberia menção aqui à Guilda dos Peixeiros, que com frequência encomendava cenas bíblicas como a "pescaria miraculosa" para a decoração da sede ou do altar da corporação."
Mas, particularmente no âmbito laico, os quadros passaram a ser comprados cada vez mais em razão de seu caráter estético. A admiração pela forma com que o pintor representava os sentimentos ganhava vulto; o artista passou a ser valorizado na região meridional por sua capacidade de produzir efeitos retóricos, de caráter teatral. Assim, o virtuosismo e o estilo do artista pouco a pouco passaram a ter mais importância do que o tema representado. "Obviamente, isso refletia o crescimento, em ambas as regiões dos Países Baixos, das atividades de colecionadores e connoisseurs."
No prefácio da obra, observa o autor que os estudos históricos sobre a pintura flamenga via de regra apresentam uma organização dicotômica: o assunto é divido em duas partes, de modo que a primeira é dedicada a Rubens, Van Dyck e Jordaens e a segunda trata de pintores secundários ou artistas especializados em um determinado gênero de pintura. Tal distribuição das matérias, ao tratar da arte meridional dos Países Baixos, julga o autor, toma como fundamento o conceito de gênio cristalizado no romantismo tardio do século 19.
Esta estratégia não lhe parece adequada para esclarecer o jogo de filiações e influências recíprocas que se deram ao longo do século 17 na Holanda espanhola. A obra está dividida segundo as categorias de pintura. Assim, Hans Vlieghe dedica capítulos específicos para tratar do retrato, da pintura de gênero, da paisagem, da natureza-morta bem como da arte religiosa e ainda comenta a escultura e a arquitetura praticadas nos Países Baixos do Sul ao longo do século 17 ampliado, de 1585 a 1700.


Victor Knoll é professor de estética na USP.


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