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Entre o céu e a terra
Arte e Arquitetura Flamenga 1585 - 1700
Hans Vlieghe
Tradução: Cláudio Marcondes
Cosac & Naify
(Tel. 0/xx/11/3218-1444)
340 págs., R$ 116,00
VICTOR KNOLL
A retomada de Antuérpia pelos
espanhóis em 1585, que levou à
divisão entre o norte e o sul dos
Países Baixos, teve duas consequências para a região meridional. Grande parte dos artistas
comprometidos com o protestantismo iniciou uma onde migratória para a Holanda. Por outro lado, a nova ordem política e religiosa instaurada pela Contra-Reforma fez com que a pintura histórica monumental, de conteúdo
religioso, encontrasse extraordinário alento. Novas igrejas, mosteiros e abadias foram edificados
como também os já existentes foram reformados: todos necessitavam de imagens para os seus altares, paredes e tetos que glorificassem os dogmas católicos contestados pelos protestantes.
Entretanto os artistas atuantes
nos Países Baixos do Sul, entre
1585 e 1700, apenas em parte se
sentiam ligados a uma tradição
diversa à da região setentrional:
uma cultura enraizada na mesma
tradição do século 16, a mobilidade de muitos artistas que trabalharam nas duas regiões, o caráter
burguês. No entanto costuma-se
estabelecer um parâmetro territorial que define o que a historiografia chama por "arte flamenga".
Para o interesse artístico, a arte do
país meridional encontra-se em
Brabante e Luxemburgo e apresenta algum interesse em Flandres. De qualquer modo, o coração da atividade artística foi Antuérpia.
Quanto ao decurso temporal, o
livro trabalha com o período de
1585 a 1700 -do momento em
que se deu a divisão das duas regiões dos Países Baixos até a morte do rei espanhol Carlos 2º, que
por não deixar herdeiros determinou o fim do domínio dos Habsburgos e assim as terras meridionais reverteram para a Áustria em
1713 com o Tratado de Utrecht.
De fins do século 16 até 1625
quadruplicou o número de artistas que se vincularam à Guilda de
São Lucas em Antuérpia, por força das encomendas derivadas da
ação da Contra-Reforma. Até
mesmo artistas setentrionais em
início de carreira mudaram-se
para Antuérpia.
De modo mais amplo, a arte flamenga foi marcada pelo poder do
clero ao orientar o conteúdo da
produção pictórica e escultural,
uma vez que "os aspectos da doutrina católica rejeitados pelo protestantismo, como a veneração da
Virgem Maria, os santos e os sacramentos, devem ser bastante
enfatizados e retratados". Entretanto é certo que temos aqui apenas um lado da atividade artística
flamenga, pois há que levar em
conta, por exemplo, a pintura histórica laica, o retrato, as pinturas
da vida cotidiana, as paisagens e
as naturezas-mortas. Na arte flamenga -e aqui temos um ponto
que a diferencia da atividade artística setentrional-, o céu e a
terra estão contemplados.
Mas, também é certo que os gêneros terrestres mantiveram um
compromisso com a arte eclesiástica. O retrato e as Madonas, a
pintura de paisagem como fundo
das cenas bíblicas.
A pintura histórica de cunho religioso ganhou caráter didático e
de propaganda. As novas igrejas
edificadas procuravam marcar a
importância de seus santos padroeiros por meio da pintura e da
escultura. Daí cenas de seus milagres e de suas vidas.
Embora a Igreja fosse responsável por parte respeitável das encomendas, havia também o patrocínio da rica burguesia e da aristocracia. A decoração das residências com pinturas era sinal de ascensão social ou de refinamento,
que alojava o burguês ao lado do
aristocrata ou afirmava o aristocrata como alguém que "não chegou agora".
Hans Vlieghe faz uma importante distinção em relação à produção e ao consumo da arte religiosa: ao lado das encomendas da
Igreja, havia também as pinturas
bíblicas de uso privado. A decoração do interior das casas tinha por
fim marcar o sentido da família
segundo a ética católica. A Contra-Reforma tratou de divulgar ao
máximo as "imagens da Madona
e as representações da Sagrada
Família, temas que, como os tão
frequentes "nascimento de Cristo"
e "adoração dos Magos", proporcionavam um exemplo da família
nuclear cristã".
O pano de fundo era realista e
doméstico e isso estimulava a
identificação com os valores morais do catolicismo expressos nas
telas ou nas esculturas.
Ainda outra distinção o livro
nos apresenta: a pintura histórica
laica. É certo que as cenas da mitologia grega e da história romana
não desfrutavam o mesmo lugar
da arte religiosa, mas tais temas
eram executados por encomenda
para fora dos Países Baixos espanhóis. Basta lembrar a obra de
Rubens voltada para essa temática e encomendada, por exemplo,
por Maria de Medice.
De resto, a pintura histórica laica teve sua presença na decoração
das sedes de municipalidades ou
de corporações de ofícios. Aqui
dá-se um ponto de encontro entre
os Países Baixos do Norte e do Sul.
Pinturas similares, cujos temas
eram extraídos dos autores gregos e latinos, decoravam as paredes dos edifícios públicos de ambas as regiões.
Quanto ao uso privado das pintura, temos também a convergência de dois lados: não só a aristocracia e o clero mas também os
comerciantes e os altos funcionários, além de se voltarem para os
estudos filosóficos, tinham bem
claro que ostentar obras de arte
certificava cultura, prosperidade
financeira e ascensão social.
Assim, em ambas as regiões dos
Países Baixos teve grande impulso "o interesse pelas pinturas históricas eruditas de acentuado
conteúdo alegórico".
Cabe aqui observar que o principal traço da vida intelectual nos
Países Baixos do Sul "foi o florescimento de um humanismo católico, no qual as doutrinas da fé romana reconciliavam-se com uma
ética baseada na filosofia estóica
clássica".
Por outro lado, há que lembrar
que as pinturas eram adquiridas
também por motivos prosaicos.
"Caberia menção aqui à Guilda
dos Peixeiros, que com frequência encomendava cenas bíblicas
como a "pescaria miraculosa" para
a decoração da sede ou do altar da
corporação."
Mas, particularmente no âmbito laico, os quadros passaram a
ser comprados cada vez mais em
razão de seu caráter estético. A
admiração pela forma com que o
pintor representava os sentimentos ganhava vulto; o artista passou
a ser valorizado na região meridional por sua capacidade de produzir efeitos retóricos, de caráter
teatral. Assim, o virtuosismo e o
estilo do artista pouco a pouco
passaram a ter mais importância
do que o tema representado. "Obviamente, isso refletia o crescimento, em ambas as regiões dos
Países Baixos, das atividades de
colecionadores e connoisseurs."
No prefácio da obra, observa o
autor que os estudos históricos
sobre a pintura flamenga via de
regra apresentam uma organização dicotômica: o assunto é divido em duas partes, de modo que a
primeira é dedicada a Rubens,
Van Dyck e Jordaens e a segunda
trata de pintores secundários ou
artistas especializados em um determinado gênero de pintura. Tal
distribuição das matérias, ao tratar da arte meridional dos Países
Baixos, julga o autor, toma como
fundamento o conceito de gênio
cristalizado no romantismo tardio do século 19.
Esta estratégia não lhe parece
adequada para esclarecer o jogo
de filiações e influências recíprocas que se deram ao longo do século 17 na Holanda espanhola. A
obra está dividida segundo as categorias de pintura. Assim, Hans
Vlieghe dedica capítulos específicos para tratar do retrato, da pintura de gênero, da paisagem, da
natureza-morta bem como da arte religiosa e ainda comenta a escultura e a arquitetura praticadas
nos Países Baixos do Sul ao longo
do século 17 ampliado, de 1585 a
1700.
Victor Knoll é professor de estética na
USP.
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