São Paulo, Sábado, 13 de Novembro de 1999
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Octavio Paz trata da vida e obra de Juana Inês de la Cruz
Sor Juana sou eu

TEREZA BARRETO

A publicação de "Sor Juana Inés de la Cruz o Las Trampas de la Fe" (1982) foi o belo remate de um envolvimento que Octavio Paz iniciou, ainda na década de 30, com a obra dessa freira mexicana do século 17.
Paz escreveu seu primeiro ensaio sobre ela no início dos anos 50, para a revista "Sur". Vinte anos depois, convidado a ensinar em Harvard, tomou a escritora como tema de um curso. De 1970 a 1980, decidiu revisar as notas das aulas e, a partir delas, compor um livro que fosse, ao mesmo tempo, "história, biografia e crítica literária".

Ensaio literário
Para sorte e deleite de seus leitores, o livro é ainda mais do que a promessa. Trata-se não apenas de um rigoroso estudo da vida e obra do maior nome do barroco latino-americano e da história da Nova Espanha, mas de um ensaio cuja construção se apresenta como objeto literário desdobrado a partir da figura de Sóror Juana. A esse respeito, afirma o próprio Paz: "Não tenho intenção de revelar os desvãos da intimidade de Sóror Juana; quero simplesmente me aproximar de sua vida e obra com a esperança de compreendê-las em sua contraditória complexidade. Acrescento que essa compreensão só pode ser uma aproximação, um vislumbre. O objeto da biografia é transformar o personagem longínquo num amigo mais ou menos íntimo".
Octavio Paz lança mão de passagens da obra poética e dramática de Sóror Juana e dá por assentado que algumas delas -não todas- são testemunhos autobiográficos. De posse desses supostos fragmentos da vida da freira, que apenas sua apreciação decidirá se são de natureza documental ou retórica, Paz urde um texto coerente e verossímil, que dará conta da extrema ambivalência dessa mulher para nós enigmática.

As confissões de Juana
Mas, diante de sua própria impotência frente à inexistência de documentos, ele não responde, afinal, à pergunta: como asseverar, efetivamente, que são autobiográficas aquelas passagens? É curioso notar como, ao mesmo tempo em que critica certos ensaístas por tomarem por história o que ele demonstra ser mera codificação de uma tradição literária -caso de muitos dos poemas amorosos de Sóror Juana-, o próprio Paz percebe, em outros poemas, "destaques que parecem chegar perto de uma confissão". No entanto, movendo-se nesse perigoso limiar cujos riscos ele mesmo aponta, erige de letras, pelas letras e para as letras uma mulher que é imagem do desejo de ambos, autor e personagem. Octavio Paz torna concreta a frase "seu destino eram as letras" e deixa claro, em várias situações, que "Sóror Juana nem sempre falou a verdade".
Dentro de tal "modus operandi", a imponência do livro reside, exatamente, nessa fronteira em que se instala. A "contraditória complexidade" que Paz identifica na vida e na obra de Sóror Juana é o grande risco que ele se impõe na realização do livro, mas é, ao mesmo tempo, fonte de sua grandeza. Durante todo o tempo, seu campo de ação são hipóteses e suposições sustentadas apenas por aspectos eminentemente literários, que já mencionei: a coerência e a verossimilhança.
Sóror Juana, mulher de letras, vai tomando corpo na obra de Paz como um palimpsesto. Ela se delineia como uma sucessão de leituras superpostas, até que Octavio Paz nos brinda com a sua própria leitura -a sua própria Sóror Juana. Assim, da mesma forma como ocorre ao seu mais importante escrito em prosa, a "Resposta a Sor Filotea", Sóror Juana vai oferecendo-se a diferentes leituras conforme a época em que estas são realizadas, até que esse Flaubert do México contemporâneo a transforme em sua personagem: "Sor Juana soy yo".


Sóror Juana Inês de la Cruz - As Armadilhas da Fé
Octavio Paz Tradução: Wladir Dupont Mandarim (Tel. 0/xx/11/839-5500) 712 págs., R$ 56,00




Reflexões e adágios
Enquanto oferece um "vislumbre" dessa mulher que desafiou as normas vigentes na Nova Espanha do século 17 -fossem elas de caráter familiar, social ou mesmo religioso, a fim de poder realizar um projeto de vida totalmente voltado para a palavra em seu sentido mais profundo, o "logos", e em suas mais profundas implicações históricas, políticas, culturais, éticas, científicas, filosóficas-, "As Armadilhas da Fé" vai iluminando, pouco a pouco e de maneira enviesada, outra figura: seu autor.
Mediante frases bem-humoradas e às vezes mordazes, Octavio Paz comenta seu próprio tempo e, nesse delicado bordado em que o presente vai sendo desenhado sobre o passado mexicano, deixa emergir, do tecido no qual urde o perfil de Sóror Juana, sua própria figura de intelectual combativo. Isso confere outros tons ao livro, nem sempre previsíveis, mas indiscutivelmente provocativos.
A publicação de "As Armadilhas da Fé" merece ser saudada com loas. Contudo a edição brasileira mereceria maior cuidado. É uma pena que toda a iconografia original da obra tenha se perdido, principalmente os retratos de Sóror Juana: o leitor fica sem conhecer a imagem da freira e, com isso, perde o contexto intelectual que os pintores da época imprimiram em suas telas. A visão do luxo, as edições encadernadas em couro, as jóias valiosíssimas -que chegaram a ser usurpadas por governantes mexicanos-, a elegância, o porte, o donaire da freira desaparecem da edição brasileira.

Perdas e ganhos
Mas há prejuízos bem mais graves. Refiro-me às sutilezas e elegâncias de um estilo extremamente depurado e poético, mas de aparente execução simples, marcas do texto de Paz nem sempre recuperadas em português. Embora no "Prólogo" o tradutor mostre ter compreendido com clareza o livro e seu autor, que ele chama de "requintado prosador poético", o resultado final da tradução apresenta mais perdas do que ganhos.
Em certo caso, a tradução fez desaparecer um significado que Paz outorgou a Sóror Juana sem, contudo, dizê-lo. Ao longo do livro, Paz compara a figura de Sóror Juana a figuras mitológicas -Ísis, Faetonte e Diana- que, combinadas, expressam o caráter da freira. Ao mencionar as razões que a levaram a abraçar a religião, diz: "A Antiguidade nos deixou dois arquétipos femininos, Vênus e Diana. É claro que a personalidade de Juana Inés estava mais próxima da segunda que da primeira -Diana não é a deusa do casamento, mas da vida casta e solitária dos caçadores".
No entanto, apesar de iluminar Diana nesse fragmento, Octavio Paz sugere, com extrema delicadeza, uma figura a mais na composição de seu perfil. No capítulo "Concilio de Luceros", trata dos supostos amoricos vividos pela mocinha Juana ainda em seus tempos de corte. Aí, sem uma única menção, Vênus -que é deliberadamente escamoteada- só pode ser vislumbrada quando o texto é "bien mirado", conforme ensinava Sóror Juana. "Lucero", em espanhol, tanto significa "lustre", "esplendor", como "astro de brilho intenso". Mas o idioma oferece ainda outro significado: "Vênus". Em português, isso tudo se perde na generalidade de "Concílio de Estrelas".
Como se viu, Octavio Paz preocupou-se em deixar escamoteado, no título de um capítulo, importante significado que manipulou com extrema elegância. Isso confere tanto a esse como aos demais títulos riqueza poética inquestionável, ecos que são da obra da freira. No entanto, tamanho cuidado nem sempre resiste à tradução. Por exemplo, "La Celda y Sus Celadas" vê desdenhada a sonoridade que o português, como o espanhol, nos brinda ("A Cela e Suas Ciladas") e aparece como "A Cela e Suas Armadilhas", que recupera, sem necessidade, o título da obra.
Já "Los Empeños de Juana Inés", que se manteria praticamente inalterado em português, com a vantagem de ainda ressoar o título de sua comédia "Los Empeños de una Casa", se entristece em "Os Sacrifícios de Juana Inês". A leitura do capítulo, entretanto, contradiz essa natureza adjudicada ao título.
Por todas as razões apontadas, é de se lamentar que uma obra definitiva sobre um dos maiores legados das letras latino-americanas receba, em sua edição brasileira tratamento tão pouco acurado, apesar de tantos anos de atraso em sua publicação. Mas deve-se, sem qualquer hesitação, saudar a coragem da Mandarim em publicar um volume de mais de 700 páginas, de custo considerável, num país que enfrenta sérias dificuldades econômicas.


Teresa Cristófani Barreto é professora de literatura hispano-americana da USP, organizadora e tradutora do volume "Letras Sobre o Espelho" (Iluminuras).

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