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MÃO DE RELOJOEIRO
O ofício de escrever segundo Autran Dourado
TEXTO FLORA SÜSSEKIND
O título -"Breve Manual de Estilo e Romance"-
adotado por Autran Dourado para o seu livro mais recente é, sem dúvida, irônico. Não inteiramente, é claro.
Pois define, de imediato, a reflexão sobre o "ofício de escrever" que o orienta. E conecta à sua série metalingüística iniciada com "Uma Poética de Romance" (1973), na
qual se incluem, ainda, "Matéria de Carpintaria" (1974),
notas de aula de um curso de criação literária na Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ); o livro "O Meu
Mestre Imaginário" (1982); e "História de uma História", apêndice à edição da Francisco Alves de "Uma Vida em Segredo", no qual relata o processo de escrita do
romance a partir de um sonho e de uma antiga canastra
de couro que pertenceu ao seu bisavô materno.
Mas a simples idéia de um manual de estilo remete,
igualmente, às regras de bem escrever, aos purismos,
enobrecimentos estilísticos, ao "polir e capilhar acadêmicos", como diz Autran Dourado, recursos de hipercorreção todo-poderosos na retórica pré-modernista,
mas ainda determinantes, conforme assinalaria em
"Uma Poética de Romance", de uma "concepção de estilo" arraigada e "prejudicial ao trabalho criativo do escritor brasileiro". Não deixando de ser curioso que evoque diretamente, com esse novo título, o "Manual da
Composição e do Estilo", do Padre Antônio da Cruz,
tão criticado por ele, livro que, adotado no curso de humanidades do Colégio do Caraça e "muito em voga nos
colégios mineiros", teria orientado "toda uma geração
de elegantes prosadores", segundo conta, e cuja disciplina "descarnante", "férrea", parecia ficar-lhes pesando
"na alma", "imobilizando-lhes a mão". "Rígida disciplina estilística" ficcionalizada indiretamente na linguagem castiça, na glosa dessa "castigação do estilo", adotada pelo escritor na seção "Nas Vascas da Morte" de "O
Risco do Bordado" (1970). E que funcionaria aí, à maneira de uma ""ars" poética às avessas", como satirização dessa pressão no sentido da expressão clássica, da
homogeneidade de tom, do estilismo de manual, antagonizada pela própria estrutura "vertical e múltipla",
pelos deslocamentos focais e desmontagens que organizam a narrativa autraniana.
UMA POÉTICA
Daí, ao usar o nome "poética" para a sua primeira compilação de escritos sobre o romance, o cuidado em restringir, por meio do artigo ("uma
poética"), o alcance de suas observações, distinguindo-as, desse modo, das generalizações normativas características aos manuais. Restrição que, na sua coletânea
mais recente, o leva, de um lado, a adotar o título de
"manual de estilo" e, de outro, a classificá-lo como um
"livro híbrido", misto de "memórias de aprendizado" e
"manual de serviço", cujas instruções estariam ligadas,
porém, fundamentalmente à sua prática narrativa particular, à sua experiência pessoal. E, nesse sentido, o
"Breve Manual", como os demais livros da sua série metalingüística, traz indicações importantes para o estudo
de seus romances. Como a relação, sublinhada mais
uma vez por ele, entre "A Barca dos Homens" e a "História Trágico-Marítima". Como a importância do vocabulário de época e da consulta ao "Dicionário Moraes"
(de 1813) no processo de escrita de "Os Sinos da Agonia". Ou do seu hábito, por muitos anos, de ler um poema -"de qualquer grande poeta da língua"- antes de
começar a trabalhar na sua prosa. Como a referência
autobiográfica explícita (às figuras justapostas da mãe e
de um amor de juventude) para o camafeu de "Confissões de Narciso". Ou como a
rapidez invulgar da composição do conto "Três Coroas", ligada à leitura, então
em processo, de "Morte em Veneza", e a um medo intensificado da morte durante uma viagem difícil de
avião.
A conjugação entre experiência literária, memorialismo e transmissão de um saber prático, por meio da qual
o escritor explica o seu "manual", não é, no entanto, recente em sua obra. E remonta, não é difícil perceber, ao
personagem Elias do conto "A Glória do Ofício", incluído em "Nove Histórias em Grupos de Três" (1957). Aí, o
narrador, menino de "mãos inquietas", sempre fazendo e desfazendo caixas e brinquedos e com uma "predisposição inata para o lado factual das coisas", acabaria se tornando relojoeiro, depois revisor de textos, depois tratador de pássaros. Mas chegaria a imaginar-se, a
certa altura, um escritor potencial. Não de livros de poesia ou ficção. Pois, tendo em vista sua capacidade prática, o modelo mais provável, a seu ver, seria o dos manuais técnicos. Para os quais inventa títulos como "How
to Read", "How to Write", "The Art of Fiction" e "How
to Make Verses".
MEMÓRIA DE APRENDIZADO
A menção auto-irônica a métodos rápidos de aprendizado da técnica literária mistura-se, no entanto, nesses títulos a contra-referências nada desqualificadoras, pois evocam, de
imediato, o "ABC da Leitura", de Pound, a coletânea de
prefácios críticos de Henry James ("A Arte do Romance") e o misto de poética e reflexão de Vladimir Maiakóvski sobre a poesia que é o seu "Como Fazer Versos".
Referências que parecem indicar funções não tão pragmáticas para os escritos hipotéticos do relojoeiro. A de
servirem de memória de aprendizado e, como nos escritores evocados, de registro-síntese de experiências literárias concretas. E, nessa duplicidade referencial, sublinham a dimensão auto-reflexiva do conto, que funciona, nesse momento, como uma espécie de manual e
sistematização ficcional da poética narrativa de Autran
Dourado.
Pois, segundo a autodescrição do narrrador-artesão
de "A Glória do Ofício", é sob uma perspectiva tripla (a
da memória, do manual e da montagem) que se figura
aí a narração. De um lado, uma "memória sobre sua
modesta pessoa". De outro, um relato detalhado (quase
de manual) do aprendizado de seus ofícios. E, de outro,
ainda, o seu exercício continuado de apropriação e colagem que resultaria, invariavelmente, no abandono de
todas as atividades, depois de tentativas de invenção de
novos maquinismos, textos e criaturas, a partir de peças
retiradas e depois remontadas de outros. "Escrever é
um ato de apropriação e astúcia", diria Autran no "Breve Manual" de 2003, ecoando não apenas a composição
em blocos, a "forma desmontável" de romance, que
descreve em "Uma Poética de Romance", mas também
essas montagens e desmontagens realizadas pelo relojoeiro Elias. E apropriação, acrescentaria o escritor, não
dos "gênios e gigantes", mas, sobretudo, dos "escritores
que foram bons artesãos". No que ecoa, mais uma vez, a
analogia, estrutural ao conto, entre escrita e artesanato,
habilidade e aprendizado com um mestre no ofício, trabalho manual e narração.
E o auto-retrato do narrador como menino buliçoso,
desfazendo caixas e brinquedos e, depois, como aprendiz de diversos ofícios, se faria acompanhar, ao longo da
obra ficcional e crítica de Autran Dourado, de uma série
de imagens de atividades artesanais, trabalhos manuais
e saberes práticos variados que, por vezes, marcam o
andamento das histórias ou definem um personagem,
por vezes figuram o exercício narrativo ou simplesmente apontam, no interior dos relatos e de suas discussões
sobre a prática romanesca, para um outro modo de experiência. Para a sugestão de uma ordem narrativa "outra", sub-reptícia, que parece vinculá-los não aos deslocamentos e fragmentações característicos ao processo
de trabalho na sociedade moderna, não às distâncias,
dissoluções subjetivas e à "dificuldade de contar", próprias da prosa contemporânea, mas aos vestígios imaginários de uma forma de vida familiar, articulada, plena
de sentido, marcada pela formação artesanal, pela lembrança, pelo contato pessoal, pelo narrar tradicional.
Rastro figurado, porém, com freqüência e precisão inversamente proporcionais a uma espécie de consciência surda da impossibilidade estrutural de se operarem
de fato, via mimese artesanal, uma imbricação entre escrita e memória e um processo efetivo de restauração
épico-identitária da narração.
TEMAS IDÊNTICOS
Daí a conjugação, na obra autraniana, de memorialismo e reinvenção explícita da
lembrança tender, tantas vezes, ao seu oposto. A uma
reafirmação de diferenciação, a um desdobramento em
duplicatas aparentes, em obras memorialistas e ficcionais nas quais se revisitam temas a rigor idênticos. Mas
cuja repetição metódica em duplo registro, em vez de
apenas sublinhá-los, parece, ao contrário, instabilizar
os mecanismos da rememoração e a idéia mesma de
uma restauração literária plena da memória pessoal.
Lembrem-se, nessa linha, o "Apêndice" do "Breve
Manual" e sua função de complementação a um livro
como "Um Artista Aprendiz", expondo os modelos
biográficos (Godofredo Rangel, Artur Versiani Veloso,
Autran Dourado) dos seus personagens principais (Sílvio Sousa, Sinval de Sousa, e João da Fonseca Nogueira); ou "Gaiola Aberta" (2000), o registro autobiográfico sobre o período no qual o escritor assessorou o presidente Juscelino Kubitschek, obra que refigura, noutro
registro, a versão satírico-romanesca da relação entre
intelectual-funcionário e Estado exposta no livro "A
Serviço del" Rei", de 1984. Lembre-se, ainda, nesse sentido, o final exemplar do conto "Inventário do Primeiro
Dia", quando o menino João, de noite, pensando no seu
dia no internato, percebe que, ao inventariá-lo, "porque
a memória não é estanque", já não estaria mais se lembrando, "mas contando a alguém", inventando.
Ao mesmo tempo, portanto, em que o enlace entre
narração, memória e exposição artesanal se afigura metódico no projeto literário de Autran Dourado, se torna,
igualmente, determinante uma pressão disjuntora, que
desdobra narração e comentário auto-expositivo (como no caso de "O Risco do Bordado" e "Uma Poética de
Romance"), memória e ficcionalização. E que tensionaria, de um lado, a evocação artesanal todo-poderosa, a
naturalidade e quase inconsciência de certos trabalhos
manuais representados em sua prosa e, de outro, a
preocupação simultânea com a explicitação de uma
poética, a intensificação de um movimento auto-reflexivo, os processos auto-analíticos presentes no interior
das narrativas e nos exercícios crítico-metalingüísticos
realizados por ele.
Autoconsciência e preocupação construtiva que, se
aparentemente modeladas em práticas coletivo-artesanais, reindividualizam o exercício narrativo e sublinham, no interior de sua obra, a distância histórica que
dimensiona essas representações de ofícios manuais, de
mestres artesãos e aprendizes, de saberes compartilhados e de continuidades da tradição.
Pois, ao lado da referência constante ao exercício manual, aos traçados, bordados, à "costura de aranha tecedeira", aos "livres oficiais que se dedicavam à nobre arte
de desbastar e trabalhar a madeira com o simples canivete", aos peritos na "arte dos caracóis", nos "mínimos
carapinas do nada", ao Vovô Tomé "enrolando a palha", à prima Biela "pilando o milho", "empilhando
moeda" e a Rosalina, da "Ópera dos Mortos", fabricando suas flores de pano, privilegiam-se, com freqüência,
nesse universo as ações gratuitas ("de tal maneira que
cada dia se tenha diante de si o puro nada"), disfuncionais (como os maquinismos de Elias), e os "ruídos"
("dos meus martelos, serras, formões e cepilhos") embutidos no trabalho narrativo em processo.
Ruídos e nadas, técnicas e disfuncionalidades, elementos que figuram contrastivamente a consciência artesanal do escritor e a conectam, ao mesmo tempo, à experiência, comum aos intelectuais brasileiros dos anos
1940, de reelaboração dos meios expressivos e de redefinição do seu campo de atuação, em meio a uma "crescente divisão do trabalho intelectual", a uma especialização dos domínios culturais. Período caracterizado
por Antonio Candido, em "Literatura e Cultura de 1900
a 1945", como também de crise da "literatura literária" e
das "formas escritas" em geral, diante da concorrência
de novos veículos de comunicação, da popularização
do rádio, do cinema, das histórias em quadrinhos.
É nesse contexto que, em 1947, Autran Dourado inicia
sua trajetória literária com a novela "Teia". E é em diálogo com essas transformações nas condições de produção cultural que se intensificam, em sua obra, a auto-reflexividade e a preocupação com o aprendizado e a representação artesanal do ofício de escritor. Movimento
que, sobretudo desde "Uma Poética de Romance", passaria do comentário auto-analítico interno ao seu desdobramento suplementar em memórias, manuais e
poéticas, por meio dos quais a forma seccionada e a "conectividade vertical" de alguns dos seus romances parecem se estender ao conjunto da obra. E refigurar, com
"mão de relojoeiro", mas estrutura desmontável ou duplicável, a relação contemporânea entre experiência
narrativa e tradição artesanal.
FLORA SÜSSEKIND é pesquisadora da Fundação Casa de Rui
Barbosa (RJ) e autora de "O Brasil não é Longe Daqui" (Cia. das Letras).
Breve Manual de Estilo e Romance Autran Dourado
UFMG (Tel. 0/xx/31/3499-4642)
75 págs. R$ 12,00
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