São Paulo, sábado, 14 de fevereiro de 2004

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A ÁLGEBRA DA REVOLUÇÃO

Um clássico do pensamento marxista

TEXTO RICARDO MUSSE

Intelectual relativamente consagrado e reconhecido por seus pares, como Thomas Mann e Max Weber, Georg Lukács, formado no âmago da cultura burguesa, após o fim da Primeira Guerra, aderiu, para surpresa de todos, ao marxismo. Um das justificativas dessa "conversão" -destacada por ele próprio no "Prefácio" de "História e Consciência de Classe"- deve-se à fecundidade da explicação marxista do presente histórico, em especial da tríade "guerra, crise e revolução". Para reforçar a capacidade marxista em atingir sua meta principal, "o conhecimento do presente", "História e Consciência de Classe" propõe-se a recuperar a capacidade auto-reflexiva que essa linhagem havia perdido nos anos de predomínio político e intelectual da Segunda Internacional. A preocupação em esclarecer "a essência do método de Marx" não deixou de ser a fonte de inspiração do predomínio metodológico, tão característico do "marxismo ocidental". Mas, de modo geral, Lukács estabeleceu os novos parâmetros de aferição de qualquer teoria que se queira herdeira do legado de Marx com a exigência de uma interpretação que explique, simultaneamente, três objetos distintos: o mundo atual, a história do marxismo e a coerência -lógica ou histórica- da doutrina de Marx. O alvo maior de "História e Consciência de Classe" é a codificação da dialética apresentada pelo último Engels, premissa dos equívocos políticos desenvolvidos pela geração subseqüente no âmbito da Segunda Internacional. Não se trata apenas do fato de Engels, seguindo o panlogicismo de Hegel, estender a atuação da dialética ao reino da natureza, adotando as ciências naturais como regra e modelo. A principal crítica de Lukács refere-se à desatenção ante o vínculo entre método e transformação do mundo, ignorando o papel da dialética como "álgebra da revolução". As circunstâncias históricas, a sucessão de insurreições operárias que só foram derrotadas definitivamente no outono de 1923, alguns meses depois da publicação do livro, levaram Lukács a vivenciar a mesma situação de irrupção que possibilitou ao jovem Marx expor sua teoria como "expressão pensada do próprio processo revolucionário". Entretanto o que permitiu uma concepção que articulasse de forma coerente o conhecimento do presente com a história do marxismo e com uma nova interpretação da obra de Marx foi a primazia, concedida por Lukács, ao conceito de totalidade.

A REIFICAÇÃO
Em "História e Consciência de Classe", "totalidade" indica mais que a preocupação com as mediações, isto é, com a consideração dos fenômenos sociais como momentos do todo ou mesmo a superação da dispersão do conhecimento em esferas autônomas pela unificação do saber em uma "ciência histórico-dialética, única e unitária". O significado decisivo do conceito de totalidade é a transição do ponto de vista do indivíduo para a perspectiva das classes sociais. O proletariado assume, assim, uma função crucial no âmbito do conhecimento, concomitante à sua elevação à condição de sujeito e objeto do processo histórico. Esse modo de conceber o proletariado abriu caminho, por um lado, para a incorporação do arsenal teórico desenvolvido por Hegel, sobretudo na "Fenomenologia do Espírito". Por essa via o método de Marx torna-se um mero prolongamento da dialética hegeliana e o marxismo -à medida que promove a unidade entre lógica e história, teoria e prática, história da filosofia e filosofia da história- apresenta-se como a realização do programa do idealismo alemão. A determinação do ponto de vista do proletariado, porém, também está na origem da teoria central de "História e Consciência de Classe": a compreensão do fenômeno da reificação. Para explicar a "missão" do proletariado na história, Lukács desenvolveu uma intrincada concepção acerca de sua "consciência de classe", cuja baliza principal é a noção de reificação. Da revitalização desse conceito, ignorado por décadas no âmbito da tradição marxista (e preservado com sinal trocado na sociologia alemã), emergiu a interpretação de "O Capital", que adota o tema do fetichismo da mercadoria como feixe estruturante e princípio explicativo da obra de Marx. Mais que isso, tornou possível uma nova e original consideração do presente histórico. "História e Consciência de Classe", em oposição à sociologia alemã, concebe o "enigma da estrutura da mercadoria" como o "protótipo de todas as formas de objetividade e de todas as suas formas correspondentes de subjetividade na sociedade burguesa". A mesma reificação (concebida como uma fusão peculiar do princípio marxista de "abstração" com o conceito weberiano de "racionalização") à qual o trabalhador está submetido no interior da fábrica, se encontra disseminada na sociedade: nas relações econômicas, no direito e no Estado, mas também na ciência, na arte e na filosofia. Não se trata, entretanto, da descrição de um universo fechado. A organização do proletariado como classe, a prática revolucionária apresentam-se como modalidades de ação que suplantam a "atitude contemplativa", generalizada na sociedade pela reificação. Os sucessores de "História e Consciência de Classe", em especial os frankfurtianos, mantiveram a expansão da reificação como critério, índice, agora, da integração do proletariado. Na ausência de uma situação revolucionária, não cessaram, no entanto, de identificar atividades que apontem para a reversão da reificação, modificando, ao longo do tempo, o veredicto acerca da ciência, da arte e da filosofia. Essa tradução, a primeira feita no Brasil, não discrepa muito da tradução portuguesa que há décadas circula entre nós. Mas, além de algumas importantes correções conceituais, tem o mérito de ter deixado o texto um pouco menos ininteligível.


RICARDO MUSSE é doutor em filosofia e professor de sociologia na USP.

História e Consciência de Classe - Estudos sobre a Dialética Marxista Georg Lukács Tradução Rodnei Nascimento e Karina Jannini Martins Fontes (Tel. 0/xx/11/3241-3677) 598 págs. R$ 58,50



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