São Paulo, Sábado, 14 de Agosto de 1999 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Quentin Skinner estuda relações do filósofo inglês com a tradição do Renascimento Retórica de Hobbes
NEWTON BIGNOTTO
A arma do riso Um outro ponto de destaque é a exposição da importância atribuída ao riso pelos estudiosos da retórica. O riso é abordado no contexto maior das técnicas de persuasão que visam "cativar" o auditor, transformando-o em espectador de uma cena, mostrada a partir de imagens criadas habilmente pelo expositor. Sendo o riso uma arma dirigida contra alguém, pois, como observa Cícero, em geral rimos de pessoas, os retóricos ingleses enxergaram no uso de técnicas como a da ironia uma ferramenta poderosa para aqueles que deviam participar da vida pública. Na segunda parte, Skinner se serve de todo o arsenal acumulado em suas análises iniciais para propor uma leitura de Hobbes que, situando-o no contexto geral de sua época, altera muitos dos lugares-comuns que povoam a leitura de suas obras. Dentre eles, o de que sua concepção política é inteiramente devedora dos ideais da ciência nascente e não guardaria senão laços episódicos com a maneira de se pensar o mundo público do período que o antecedeu. O intérprete passa, então, em revista as várias fases da vida e das obras de Hobbes. Num primeiro momento, trata-se de estudar suas relações com os meios intelectuais ingleses e o fato de que sua carreira se desenvolveu como a de um humanista do tempo, ocupado com a educação de jovens nobres e a pesquisa de temas da cultura clássica. As primeiras obras de Hobbes, como a tradução de Tucídides, refletiriam sua dedicação aos ideais da retórica e fariam dele um continuador da tradição na qual foi formado. Chama a atenção nessas análises o fato de Skinner não se preocupar em traçar paralelos com a cultura humanista italiana, que estudou em seu trabalho já referido. Essa referência teria sido importante, não só por permitir entender como certos temas vieram a povoar o universo cultural e político do Renascimento, mas como os autores ingleses, ao se apropriarem de tópicos importantes do pensamento romano e terem adotado comportamentos profissionais muito parecidos com o de seus antecessores italianos, acabaram por defender concepções políticas muito diferentes daquelas marcadamente republicanas de humanistas e amantes da retórica, como Bruni e Salutati no começo do século 15. Hobbes e o humanismo No tocante às obras de Hobbes, o núcleo das teses de Skinner se concentra no estudo comparativo da relação entre o discurso vigorosamente cientificista do "Do Cidadão" e a estrutura argumentativa do "Leviatã". De maneira geral, acredita-se que a virada em direção ao discurso científico, operada por Hobbes ao publicar em 1642 sua primeira obra de impacto no pensamento político da época, teria marcado definitivamente o abandono das tópicas anteriores, derivadas do contato com a tradição retórica. A originalidade do livro de Skinner está em mostrar que um estudo do "Leviatã", à luz dos temas analisados na primeira parte do livro, demonstra que o filósofo inglês, depois de um período de abandono total da retórica, voltaria a associar ao discurso da razão os diversos procedimentos de persuasão, que parecia ter desprezado ao formular o ideal de uma nova ciência da política. Com isso o leitor ganha uma ferramenta para compreender muitos passos da obra, que de outra maneira ficariam inteiramente obscuros, assim como o sentido mais amplo da relação do filósofo com o mundo da política de seu tempo. É inegável que o trabalho de Skinner trouxe uma contribuição importante não só para a compreensão das articulações centrais da obra de Hobbes, mas também para a elucidação dos caminhos da formação do pensamento político moderno. Seus estudos permitem mostrar como os debates, que se seguiram à guerra civil e que buscaram encontrar soluções para o problema da organização do Estado, ancoravam-se não apenas em tradições ligadas ao passado medieval da Inglaterra, mas também no pensamento dos humanistas, que portavam uma concepção diferente da vida pública. No entanto, a expansão das possibilidades de compreensão da obra de Hobbes, a partir da análise de suas relações com a retórica clássica e seus sucedâneos contemporâneos, não devem ser vistas pelo leitor como uma leitura definitiva do pensador. De um lado, é possível abordar o filósofo e seus vínculos com o contexto no qual escreveu levando em conta outros aspectos de sua formação e de suas ambições políticas que não aqueles considerados por Skinner. Com isso chegaríamos a resultados diferentes, como já fez entre nós Renato Janine Ribeiro em seu "Ao Leitor sem Medo", no qual destaca a estratégia hobbesiana de combate à Igreja e a importância da idéia de esperança em seu pensamento. Por outro lado, é preciso lembrar que o recurso à erudição nem sempre é suficiente para deslindar os problemas suscitados pela análise dos argumentos centrais de um texto. Como muitos intérpretes já mostraram, a leitura dos escritos principais de Hobbes nos conduz a identificar dificuldades e conexões que não podem ser inteiramente compreendidas pelo apelo à sua relação com as tradições que o formaram. Newton Bignotto é professor do departamento de filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais e autor, dentre outros, de "O Tirano e a Cidade" (Discurso Editorial). Texto Anterior: Jorge Coli: Abracadabra do horror Próximo Texto: Amélia Cohn: O mundo pelo avesso Índice |
|