São Paulo, Sábado, 14 de Agosto de 1999
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Quentin Skinner estuda relações do filósofo inglês com a tradição do Renascimento
Retórica de Hobbes

NEWTON BIGNOTTO

Com a publicação da bem-cuidada tradução do livro de Quentin Skinner, o público brasileiro tem acesso a uma das mais instigantes leituras de Hobbes produzidas nos últimos anos. O filósofo inglês sempre foi alvo de reações variadas e apaixonadas. Descartes declarava achar suas máximas "muito ruins e muito perigosas", e Diderot o associava à defesa da tirania. Entre os intérpretes contemporâneos, Leo Strauss ("La Philosophie Politique de Hobbes", Berlim, 1991) destacou-se ao sugerir que, depois de ter se interessado pela história e a retórica, no começo de sua carreira, Hobbes teria se voltado inteiramente para a concepção de uma ciência da política que pudesse aspirar ao mesmo grau de certeza das outras ciências nascentes.
Um dos principais objetivos de Skinner é a revisão dessa tese, tornada clássica não só pelos seguidores de Strauss, mas por todos os que abordaram a filosofia de Hobbes como um dos marcos do nascimento do pensamento moderno. Skinner não é o primeiro a questionar a natureza da ciência da política proposta por Hobbes. Jean Hampton ("Hobbes and the Social Contract Tradition", Cambridge University Press, 1986) procurou analisar as proposições do filósofo inglês à luz das teorias contemporâneas da argumentação, destacando suas incongruências e dificuldades.
Já Sorell ("Hobbes", Routledge, 1986) buscou no estudo das relações com o passado e o método científico, desenvolvido por autores como Galileu, uma referência para pensar a natureza do que chamou de "sistema hobbesiano". O mérito do trabalho em questão está em buscar elucidar os vínculos da filosofia de Hobbes com uma tradição que boa parte dos intérpretes nem mesmo chega a considerar, a saber, a tradição retórica do Renascimento.

Hobbes e a retórica
Como observa o próprio autor, não se trata de deixar de lado trabalhos anteriores como o de David Johnston ("The Rhetoric of Leviathan", Princeton University Press, 1986) que tiveram por objeto a retórica do "Leviatã" entendida como sua estratégia literária, mas de tentar entender como Hobbes se relacionou com a retórica tal como ela era compreendida em seu tempo.
Skinner demonstra suas hipóteses seguindo o caminho que o distinguiu entre os historiadores da filosofia desde a publicação de "As Fundações do Pensamento Político Moderno" (Companhia das Letras, 1998). Para abordar a questão principal de saber como Hobbes se relacionou com a retórica, ele procura reconstituir como os estudantes ingleses do final do século 16, começo do século 17, tomavam contato com as regras da retórica clássica e o que entendiam por isso. Trata-se não apenas de analisar o sentido das proposições hobbesianas, mas estudá-las "como passos numa argumentação", que só se elucidam à luz do estudo do contexto linguístico no qual foram proferidas. Um dos desdobramentos dessa postura metodológica é o fato de que o intérprete dá uma importância muito grande à continuidade com as teses do passado e deixa de lado as hipóteses mais radicais de ruptura e descontinuidade.
Assim, na primeira parte, o leitor é confrontado não apenas com uma exposição das idéias de autores como Henry Peacham, Thomas Wilson, R. Sherry e outros, que se encarregaram de trazer para a Inglaterra as discussões sobre a retórica romana, mas com uma exposição sistemática dos principais tópicos das obras de Cícero e Quintiliano, que serviram de base para o estudo de seus seguidores.
Destacam-se nessas análises o uso que os humanistas ingleses fizeram do ideal ciceroniano do "vir civilis", o cidadão ativo da "polis" antiga. Para escritores como Ascham, preocupados com a propagação da fé protestante e a educação dos jovens, a denúncia dos perigos de uma educação centrada em temas muito difíceis e distantes dos interesses da cidade vinha se juntar de maneira harmônica ao papel que atribuíam a si mesmos na preparação dos futuros homens públicos e no aconselhamento dos governantes. Mesmo se o ideal antigo se referisse a uma realidade política totalmente diferente, os humanistas ingleses acreditavam ter encontrado em Cícero um guia perfeito para seu tempo.

Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes
Quentin Skinner Tradução: Vera Ribeiro Ed. da Unesp (Tel. 0/xx/11/232-7171) 320 págs., R$ 35,00




A arma do riso
Um outro ponto de destaque é a exposição da importância atribuída ao riso pelos estudiosos da retórica. O riso é abordado no contexto maior das técnicas de persuasão que visam "cativar" o auditor, transformando-o em espectador de uma cena, mostrada a partir de imagens criadas habilmente pelo expositor. Sendo o riso uma arma dirigida contra alguém, pois, como observa Cícero, em geral rimos de pessoas, os retóricos ingleses enxergaram no uso de técnicas como a da ironia uma ferramenta poderosa para aqueles que deviam participar da vida pública.
Na segunda parte, Skinner se serve de todo o arsenal acumulado em suas análises iniciais para propor uma leitura de Hobbes que, situando-o no contexto geral de sua época, altera muitos dos lugares-comuns que povoam a leitura de suas obras. Dentre eles, o de que sua concepção política é inteiramente devedora dos ideais da ciência nascente e não guardaria senão laços episódicos com a maneira de se pensar o mundo público do período que o antecedeu.
O intérprete passa, então, em revista as várias fases da vida e das obras de Hobbes. Num primeiro momento, trata-se de estudar suas relações com os meios intelectuais ingleses e o fato de que sua carreira se desenvolveu como a de um humanista do tempo, ocupado com a educação de jovens nobres e a pesquisa de temas da cultura clássica. As primeiras obras de Hobbes, como a tradução de Tucídides, refletiriam sua dedicação aos ideais da retórica e fariam dele um continuador da tradição na qual foi formado.
Chama a atenção nessas análises o fato de Skinner não se preocupar em traçar paralelos com a cultura humanista italiana, que estudou em seu trabalho já referido. Essa referência teria sido importante, não só por permitir entender como certos temas vieram a povoar o universo cultural e político do Renascimento, mas como os autores ingleses, ao se apropriarem de tópicos importantes do pensamento romano e terem adotado comportamentos profissionais muito parecidos com o de seus antecessores italianos, acabaram por defender concepções políticas muito diferentes daquelas marcadamente republicanas de humanistas e amantes da retórica, como Bruni e Salutati no começo do século 15.

Hobbes e o humanismo
No tocante às obras de Hobbes, o núcleo das teses de Skinner se concentra no estudo comparativo da relação entre o discurso vigorosamente cientificista do "Do Cidadão" e a estrutura argumentativa do "Leviatã". De maneira geral, acredita-se que a virada em direção ao discurso científico, operada por Hobbes ao publicar em 1642 sua primeira obra de impacto no pensamento político da época, teria marcado definitivamente o abandono das tópicas anteriores, derivadas do contato com a tradição retórica.
A originalidade do livro de Skinner está em mostrar que um estudo do "Leviatã", à luz dos temas analisados na primeira parte do livro, demonstra que o filósofo inglês, depois de um período de abandono total da retórica, voltaria a associar ao discurso da razão os diversos procedimentos de persuasão, que parecia ter desprezado ao formular o ideal de uma nova ciência da política. Com isso o leitor ganha uma ferramenta para compreender muitos passos da obra, que de outra maneira ficariam inteiramente obscuros, assim como o sentido mais amplo da relação do filósofo com o mundo da política de seu tempo.
É inegável que o trabalho de Skinner trouxe uma contribuição importante não só para a compreensão das articulações centrais da obra de Hobbes, mas também para a elucidação dos caminhos da formação do pensamento político moderno. Seus estudos permitem mostrar como os debates, que se seguiram à guerra civil e que buscaram encontrar soluções para o problema da organização do Estado, ancoravam-se não apenas em tradições ligadas ao passado medieval da Inglaterra, mas também no pensamento dos humanistas, que portavam uma concepção diferente da vida pública. No entanto, a expansão das possibilidades de compreensão da obra de Hobbes, a partir da análise de suas relações com a retórica clássica e seus sucedâneos contemporâneos, não devem ser vistas pelo leitor como uma leitura definitiva do pensador.
De um lado, é possível abordar o filósofo e seus vínculos com o contexto no qual escreveu levando em conta outros aspectos de sua formação e de suas ambições políticas que não aqueles considerados por Skinner. Com isso chegaríamos a resultados diferentes, como já fez entre nós Renato Janine Ribeiro em seu "Ao Leitor sem Medo", no qual destaca a estratégia hobbesiana de combate à Igreja e a importância da idéia de esperança em seu pensamento. Por outro lado, é preciso lembrar que o recurso à erudição nem sempre é suficiente para deslindar os problemas suscitados pela análise dos argumentos centrais de um texto. Como muitos intérpretes já mostraram, a leitura dos escritos principais de Hobbes nos conduz a identificar dificuldades e conexões que não podem ser inteiramente compreendidas pelo apelo à sua relação com as tradições que o formaram.


Newton Bignotto é professor do departamento de filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais e autor, dentre outros, de "O Tirano e a Cidade" (Discurso Editorial).


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