São Paulo, Sábado, 14 de Agosto de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Viviana Bosi examina a obra do americano John Ashbery
O poeta da impermanência

JOSÉ ANTONIO ARANTES

Aos 26 anos de idade, em 1953, o norte-americano John Lawrence Ashbery publicou sua primeira reunião de poemas, "Turandot and Other Poems", um panfleto da galeria de arte nova-iorquina Tibor de Nagy. Três anos depois, os poemas foram incorporados ao que se considera seu primeiro livro de fato, "Some Trees", com prefácio de Wystan Hugh Auden. Esses poucos dados ajudam a esboçar uma precária cronologia inicial e deixam entrever o ambiente dos anos de formação de Ashbery.
O Ashbery adolescente dividia-se entre pintura e poesia. Por volta dos 15 anos, porém, concluiu que era mais fácil escrever do que pintar. Posteriormente, na Universidade de Harvard, confirmou a opção, com o incentivo adicional do amigo-poeta Kenneth Koch. Mas manteve o interesse na pintura, atento para a diversidade das produções culturais propiciadas pelo modernismo -movimento que chegou aos Estados Unidos pouco antes da Primeira Guerra Mundial e assumia outras feições no final dos anos 40.
A Ashbery não escapou que, nessa diversidade, estavam a busca de uma identidade norte-americana -oscilando, grosso modo, entre o nativo e o estrangeiro, o "pele-vermelha" e o "cara-pálida"- e o questionamento da possibilidade de representação da realidade num momento de relativização de todas as certezas.
Ashbery transformou a aspiração à pintura em atividade de crítico de arte e em instrumento do fazer poético. O primeiro artigo que escreveu, para a "Art News", em 1957, foi sobre Bradley Walker Tomlin, pintor filiado ao expressionismo abstrato, morto em 1953. Acaso ou não, essa era uma modalidade de pintura que o atraía, porque registrava o próprio ato de criação e, ao eliminar a figuração, permitia que a subjetividade do pintor se projetasse na tela -literalmente, no caso de Jackson Pollock, com a prática do que o crítico Harold Rosenberg rotulou de "action painting". De novo, acaso ou não, as obras de Bradley Tomlin, sobretudo as dos anos 30, continham elementos do cubismo e do surrealismo, cujas características de recorte, simultaneidade e sonho John Ashbery introduziu em sua poesia.
Esses elementos foram combinados com intuição e discernimento aos pinçados das influências literárias principais: Auden (sobre cuja obra Ashbery escreveu um ensaio, e por quem foi escolhido vencedor de um concurso de poesia -daí o prefácio ao primeiro livro) e Wallace Stevens. A Stevens pode-se atribuir, grosseiramente, sua tendência à abstração, à obscuridade; a Auden, uma retórica lógica muitas vezes prolixa, o uso de paradoxos, um certo maneirismo e, como Ashbery insiste, o coloquialismo. Nada, porém, é simples. Num balanço provisório, é voz corrente que o cadinho de Ashbery produz uma poesia inacessível, maneirista, pastiche de tudo, produto do pós-modernismo. No entanto, Ashbery é tido como o mais importante poeta norte-americano vivo.

John Ashbery - Um Módulo para o Vento
Viviane Bosi Concagh Edusp (Tel. 0/xx/11/818-4149) 344 págs., R$ 31,00



É a esses e outros aspectos que Viviana Bosi Concagh dedicou um estudo de extensão e profundidade, assim como à obra do poeta, que excedem o espaço desta resenha. Acertadamente, Concagh detém-se no "entroncamento entre identidade e representação". Para analisá-lo, concentra-se na "pintura-poema e seu observador-criador", um fluxo incessante que jorra de um objeto estático, o poema-título do livro "Auto-Retrato num Espelho Convexo" (publicado em 1975 e premiado com o National Book Award, o National Book Critics Circle Award e o Pulitzer Prize).
O poema (552 versos) tem como objeto o auto-retrato do pintor maneirista Parmigianino (1503-1540) em um espelho convexo. Ao longo das seis partes, Ashbery descreve a pintura, situa-a no espaço e no tempo, para de súbito inscrevê-la na indeterminação do que podemos chamar de alma, em busca não do "eu" que se mira como Narciso -aqui poeta e pintor alternadamente identificados e dissociados-, mas do "outro eu" que se dissolve no tempo: "Essa alteridade, esse/ "Não-ser-nós" é tudo o que há para olhar/ No espelho (...)". Ashbery contempla a própria arte da poesia na impermanência. Poderíamos dizer que oferece o "mundo-enigma" de Murilo Mendes, sem a religiosidade, ou o "sou trezentos" de Mário de Andrade, não mergulhasse tão fundo na indeterminação.
Voltamos à incerteza da identidade, a nossa e a da arte. Nesse sentido, o maneirismo de Parmigianino (não o de que os detratores o acusam) é o maneirismo do qual Ashbery se apropria, para expressar a experiência do poeta e ao mesmo tempo a do crítico de arte. Como observa Concagh, trata-se do "passo de abertura do processo de esvaziamento de si e posterior retomada de um novo possível eu, paralela à comparação implícita entre o maneirismo pós-renascentista e a pós-modernidade: ambos períodos difíceis de localizar".
Ashbery declarou que em poesia uma mulher com dois narizes causa estranheza, mas num quadro de Picasso não. Declarou também que qualquer obra de arte verdadeira desarma a crítica. Viviana Bosi Concagh demonstra, à parte a solidez acadêmica do estudo, o contrário -que é possível dialogar com essa "disciplina extrema do caos", participar dessa "digressão inclusiva" e procurar compreender "que, se aprouver a todas as minhas construções/ Desmoronarem, eu terei ao menos tido satisfação por elas, e sabido/ Que não é necessário ser permanente para estar vivo".


José Antonio Arantes é tradutor, entre outros livros, de "Giacomo Joyce", de James Joyce (Ed. Iluminuras).


Texto Anterior: Vinicius Dantas: As refrações de Paul Celan
Próximo Texto: Paula Montero: O projeto pós-colonial
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.