São Paulo, Sábado, 14 de Agosto de 1999
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"Ordenações Filipinas" trazem código penal português vigente no Brasil até 1917
Desiguais perante a lei

RONALDO VAINFAS

É bem-vinda a inclusão do livro quinto das Ordenações Filipinas na coleção "Retratos do Brasil", a começar pelo fato de que esse código do Antigo Regime português, aplicável ao reino e às suas conquistas ultramarinas, sobreviveu no Brasil à Independência e mesmo à República. É certo que alterações pontuais ou gerais foram introduzidas nos diversos livros das "Ordenações", ainda no período em que o Brasil era colônia de Portugal, a exemplo da lei de 1769, já no tempo do Marquês de Pombal, que dispôs a adoção do costume, como direito subsidiário, desde que fosse conforme a boa razão e possuísse mais de cem anos. Mais tarde, no Império, o Código do Processo Criminal, promulgado em 1830, introduziria novas alterações diretamente vinculadas ao que dispunha este livro quinto. Somente na República, o Código Civil vigente a partir de 1917 removeu as últimas determinações das antigas Ordenações no direito brasileiro, o que dá bem a idéia da longevidade deste código, ao menos no plano jurídico.
A história das Ordenações, os vários sentidos da legislação portuguesa e sobretudo a matéria do livro quinto -basicamente relacionado às transgressões e penas estabelecidas no código-, tudo isso nos conta Silvia Lara, organizadora do volume, em excelente introdução histórica. A organizadora baseou-se na antiga e competente edição de 1870, anotada e comentada por Cândido Mendes de Almeida, e foi além, introduzindo utilíssimas notas vocabulares e históricas ao longo do texto, atualizando em grande parte a ortografia e removendo certos arcaísmos sintáticos, com isso facilitando a leitura do código. Manteve porém alguns arcaísmos "ao arrepio da gramática vigente hoje em dia", bem como as expressões em latim, seja para manter "algum sabor de época", seja para ser fiel aos princípios do direito romano em que se baseiam, em grande parte, as disposições do código filipino.
O primeiro grande traço das Ordenações de 1603, consideradas do ponto de vista histórico, reside no fato de terem sido decretadas em Portugal no tempo da dominação Habsburgo (1580-1640), também conhecida, do lado espanhol, como União Ibérica. No entanto, e isso por si só é motivo de interesse, as Ordenações estiveram muitíssimo calcadas nas Ordenações Manuelinas, de 1521, que por sua vez se ancoravam nas Ordenações Afonsinas, de 1446-7, salvo por algumas revisões a atualizações. Os Habsburgos se mantiveram fiéis à tradição jurídica de Portugal ao promulgarem o código de 1603, e não é de estranhar que D. João 4º, monarca brigantino, o primeiro da Restauração, tenha conservado em vigor o código promulgado no tempo dos Filipes. Fê-lo explicitamente em lei decretada em 1643, por meio da qual conservou os cinco livros das Ordenações Filipinas. A história das Ordenações Filipinas, suas bases no direito dos Avis e sua retomada pelos reis da casa de Bragança é, entre muitos outros, um fato indicativo de continuidades históricas que ultrapassaram o período filipino, visto impropriamente pela maioria dos historiadores, sobretudo portugueses, como um hiato ou, mais erroneamente ainda, como interregno.
Mas é de transgressões e penas que trata o livro 5º das Ordenações e, portanto, da economia de castigos típica do Antigo Regime. Em sua introdução, Silvia Lara aborda o assunto com muita propriedade, contextualizando o código no seu tempo, tempo em que o Estado desconhecia as fronteiras entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, tempo em que o interesse público e o doméstico eram virtualmente indissociáveis. "Não se trata ainda, afirma Lara, da distinção (e oposição) entre público e privado, mas de uma hierarquia de poderes senhoriais". Hierarquia responsável pela aplicação da justiça, no topo da qual figurava o Rei, a quem maiormente cabia manter a paz e a justiça. Justiça cujo significado oscilava entre o reconhecimento de direitos e o castigo ou punição -um e outros variáveis conforme a qualidade das pessoas, dado que o Antigo Regime não reconhecia nenhuma espécie de igualdade civil. Multiplicação de jurisdições e alçadas hierárquicas combinadas a uma plêiade de qualificações, isenções e foros individuais diante da lei, assim era o código filipino, espelho fiel da visão de mundo dos tempos absolutistas. A leitura do código realmente nos transporta a um outro tempo, sendo documento essencial para a compreensão de uma época em que, para resumir, "todos eram desiguais perante a lei".
A organizadora do volume detém-se, na introdução, em tema crucial suscitado pelo código, matéria em que é especialista, a saber: a economia dos castigos. Baseada no Michel Foucault de "Vigiar e Punir" (Ed. Vozes), Lara descreve as modalidades de morte previstas na Ordenações, a nomenclatura e as peculiaridades dela -a morte penal-, tudo variando conforme o crime, a qualidade do condenado e circunstâncias. No limite, em casos de grande ofensa ao Rei ou à comunidade por ele representado, depara-se o leitor com a morte atroz e/ ou cruel, incluindo variados tipos de suplício: esquartejamentos, aplicação de tenazes ardentes e outros tormentos que fazem parte das "mil mortes" que Foucault viu na pena capital do Antigo Regime. Noutras palavras: "Uma graduação calculada de sofrimentos" até a expiação final do condenado, e não "a simples privação do viver".

Os suplícios
Nalguns casos, as "mil mortes" ocorriam quase "ipsis verbis", de que as sentenças da cúria secular dão exemplos até bem entrado o século 18. Ilustra-o, entre outras, a sentença de uma assassina de bebês em Lisboa, condenada em 1772 a ser atenazada, ter as mãos decepadas, ser garroteada e finalmente queimada. Ou a sentença de certos ladrões sacrílegos, condenados, em 1780, a terem decepadas e queimadas ambas as mãos à sua vista, antes de serem enforcados. Dois casos comprobatórios de que as Ordenações eram para valer e não apenas ficção jurídica. Noutros casos, os suplícios se seguiam à morte rápida, esquartejando-se o corpo, degolando-se o cadáver, distribuindo-se as partes dilaceradas do corpo defunto pelos lugares onde o condenado havia delinquido. Assim ocorreu no caso célebre de Tiradentes. Destruição do corpo, estigma ou supressão da memória, assim funcionava a pena capital no Antigo Regime.
De todo modo, supliciando o corpo antes ou depois de sua expiação final, o castigo era sempre exemplar, verdadeiro espetáculo que atraía multidões no qual se afirmava a glória do soberano, a vingança do rei e uma certa comunhão entre a Monarquia e os súditos de variados graus e dignidades. O suplício da pena capital não atingia apenas o corpo do condenado, mas funcionava, portanto, como pedagogia capaz de atingir o conjunto do corpo social. Nas palavras de Silvia Lara: "O lugar onde era construído o patíbulo, a escolha do dia da execução e do roteiro por onde passaria o cortejo penal, a distribuição dos lugares a serem ocupados pelos membros da nobreza, milícia etc -tudo fazia do ritual punitivo uma cerimônia política, de reativação do poder e da lei do monarca".

Ordenações Filipinas - Livro 5º
Organização: Silvia Hunold Lara
Companhia das Letras (Tel. 0/xx/ 11/866-0801)
509 págs., R$ 25,00



O mesmo ritual espetacular previsto nas Ordenações se pode perceber nos autos-de-fé inquisitoriais, pelo menos os mais afamados, incluindo-se açoites e cortejos e a própria pena capital prevista nas Ordenações para os hereges e apóstatas, a saber: a morte na fogueira. Mas, nesse caso, vale dizer, morte sem suplícios preliminares e via de regra precedida do garrote, antes da pira acesa. De todo modo, não era a Inquisição que aplicava a pena capital, por ser tribunal religioso, impedido portanto de proceder a derramamento de sangue e de matar. É por essa razão que as sentenças capitais proferidas pela Inquisição se enunciavam como "relaxamento à justiça secular" e ainda por meio de antífrases, suplicando os inquisidores aos juízes que agissem "benigna e piedosamente" com o condenado e não aplicassem a pena de morte ou efusão de sangue. Basta, porém, consultar o texto das Ordenações, para não falar da história da Inquisição, para constatar que a fogueira era a pena reservada aos hereges impenitentes, fitos, relapsos, incorrigíveis...
A Justiça secular entrelaçava-se, portanto, com a Justiça do Santo Ofício, malgrado a autonomia de foros, a natureza dos crimes e os estilos de julgar e punir. A bem da verdade, as Ordenações tratavam de todos os crimes, a começar, literalmente, pelos crimes de heresia e apostasia, blasfêmias, feitiçaria, todos eles, como se sabe, da alçada inquisitorial. Os regimentos da Inquisição previam lá suas penas, as Ordenações outras, umas coincidentes, outras não, daí a superposição de foros, as mil querelas entre alçadas nos chamados crimes de foro misto, as pendengas mais eriçadas demandando a intervenção do rei. Assim funcionava a justiça, assim era o Estado naquele tempo.

Desvios sexuais
As Ordenações permitem ver o amplo espectro de desvios que se pretendia "vigiar e punir" -o que, a rigor, abarcava amplíssima gama de comportamentos e criminalizava em potencial a sociedade inteira. Eram punidos os crimes contra a pessoa, os bens e a fé católica. Mas o eram igualmente desvios minúsculos de comportamento, a exemplo de "benzer cães sem autoridade del-rei ou dos prelados". Eram-no ainda os desvios de conduta sexual ou moral ofensivos a Deus e à comunidade: adultérios de vários tipos, cópulas entre católicos e infiéis, desonestação de virgens ou freiras, bigamias, bestialidades, sodomias - os dois últimos passíveis de morte na fogueira. As Ordenações permitem perceber, com máximo detalhe, o entrelaçamento entre o público e o privado, sendo da alçada real ou de seus tribunais, seculares ou eclesiásticos, adentrar as casas, as relações vicinais, afetos, desejos. E permitem perceber mesmo uma espécie de delegação de poderes a indivíduos, como em alguns casos de adultério nos quais se admitia que os maridos matassem licitamente as esposas e mesmo os amantes, exceto se os amantes fossem de status superior ao do esposo enganado. Disposições absolutamente chocantes hoje em dia, porém conformes aos valores da época.
É caso de se acautelar, portanto, na leitura das Ordenações, porque o que parece ser barbarismo de tempos idos -e o é moralmente - integrava perfeitamente os mais elevados valores políticos e sociais do Antigo Regime. A leitura crítica e histórica das Ordenações possibilita conhecer a alma do Antigo Regime, tempo em que se descobriu e colonizou o Brasil. Toda a cautela é pouca para não se cair em juízos anacrônicos, embora seja de lastimar o destino dos que caíam nas malhas judiciárias do rei. O mais inquietante é porém constatar que, mesmo sem os antigos reis, várias disposições do código filipino parecem guardar extraordinária atualidade na sociedade brasileira contemporânea.


Ronaldo Vainfas é professor de história moderna na Universidade Federal Fluminense (UFF).


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