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"Ordenações Filipinas" trazem código penal português vigente no Brasil até 1917
Desiguais perante a lei
RONALDO VAINFAS
É bem-vinda a inclusão do livro quinto
das Ordenações Filipinas na coleção "Retratos do Brasil", a começar pelo fato de
que esse código do Antigo Regime português, aplicável ao reino e às suas conquistas ultramarinas, sobreviveu no Brasil à
Independência e mesmo à República. É
certo que alterações pontuais ou gerais
foram introduzidas nos diversos livros
das "Ordenações", ainda no período em
que o Brasil era colônia de Portugal, a
exemplo da lei de 1769, já no tempo do
Marquês de Pombal, que dispôs a adoção
do costume, como direito subsidiário,
desde que fosse conforme a boa razão e
possuísse mais de cem anos. Mais tarde,
no Império, o Código do Processo Criminal, promulgado em 1830, introduziria
novas alterações diretamente vinculadas
ao que dispunha este livro quinto. Somente na República, o Código Civil vigente a partir de 1917 removeu as últimas
determinações das antigas Ordenações
no direito brasileiro, o que dá bem a idéia
da longevidade deste código, ao menos
no plano jurídico.
A história das Ordenações, os vários
sentidos da legislação portuguesa e sobretudo a matéria do livro quinto -basicamente relacionado às transgressões e
penas estabelecidas no código-, tudo isso nos conta Silvia Lara, organizadora do
volume, em excelente introdução histórica. A organizadora baseou-se na antiga e
competente edição de 1870, anotada e comentada por Cândido Mendes de Almeida, e foi além, introduzindo utilíssimas
notas vocabulares e históricas ao longo
do texto, atualizando em grande parte a
ortografia e removendo certos arcaísmos
sintáticos, com isso facilitando a leitura
do código. Manteve porém alguns arcaísmos "ao arrepio da gramática vigente hoje em dia", bem como as expressões em
latim, seja para manter "algum sabor de
época", seja para ser fiel aos princípios do
direito romano em que se baseiam, em
grande parte, as disposições do código filipino.
O primeiro grande traço das Ordenações de 1603, consideradas do ponto de
vista histórico, reside no fato de terem sido decretadas em Portugal no tempo da
dominação Habsburgo (1580-1640), também conhecida, do lado espanhol, como
União Ibérica. No entanto, e isso por si só
é motivo de interesse, as Ordenações estiveram muitíssimo calcadas nas Ordenações Manuelinas, de 1521, que por sua vez
se ancoravam nas Ordenações Afonsinas,
de 1446-7, salvo por algumas revisões a
atualizações. Os Habsburgos se mantiveram fiéis à tradição jurídica de Portugal
ao promulgarem o código de 1603, e não
é de estranhar que D. João 4º, monarca
brigantino, o primeiro da Restauração,
tenha conservado em vigor o código promulgado no tempo dos Filipes. Fê-lo explicitamente em lei decretada em 1643,
por meio da qual conservou os cinco livros das Ordenações Filipinas. A história
das Ordenações Filipinas, suas bases no
direito dos Avis e sua retomada pelos reis
da casa de Bragança é, entre muitos outros, um fato indicativo de continuidades
históricas que ultrapassaram o período
filipino, visto impropriamente pela
maioria dos historiadores, sobretudo
portugueses, como um hiato ou, mais erroneamente ainda, como interregno.
Mas é de transgressões e penas que trata o livro 5º das Ordenações e, portanto,
da economia de castigos típica do Antigo
Regime. Em sua introdução, Silvia Lara
aborda o assunto com muita propriedade, contextualizando o código no seu
tempo, tempo em que o Estado desconhecia as fronteiras entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, tempo em
que o interesse público e o doméstico
eram virtualmente indissociáveis. "Não
se trata ainda, afirma Lara, da distinção (e
oposição) entre público e privado, mas
de uma hierarquia de poderes senhoriais". Hierarquia responsável pela aplicação da justiça, no topo da qual figurava
o Rei, a quem maiormente cabia manter a
paz e a justiça. Justiça cujo significado oscilava entre o reconhecimento de direitos
e o castigo ou punição -um e outros variáveis conforme a qualidade das pessoas,
dado que o Antigo Regime não reconhecia nenhuma espécie de igualdade civil.
Multiplicação de jurisdições e alçadas
hierárquicas combinadas a uma plêiade
de qualificações, isenções e foros individuais diante da lei, assim era o código filipino, espelho fiel da visão de mundo dos
tempos absolutistas. A leitura do código
realmente nos transporta a um outro
tempo, sendo documento essencial para
a compreensão de uma época em que,
para resumir, "todos eram desiguais perante a lei".
A organizadora do volume detém-se,
na introdução, em tema crucial suscitado
pelo código, matéria em que é especialista, a saber: a economia dos castigos. Baseada no Michel Foucault de "Vigiar e
Punir" (Ed. Vozes), Lara descreve as modalidades de morte previstas na Ordenações, a nomenclatura e as peculiaridades
dela -a morte penal-, tudo variando
conforme o crime, a qualidade do condenado e circunstâncias. No limite, em casos de grande ofensa ao Rei ou à comunidade por ele representado, depara-se o
leitor com a morte atroz e/ ou cruel, incluindo variados tipos de suplício: esquartejamentos, aplicação de tenazes ardentes e outros tormentos que fazem
parte das "mil mortes" que Foucault viu
na pena capital do Antigo Regime. Noutras palavras: "Uma graduação calculada
de sofrimentos" até a expiação final do
condenado, e não "a simples privação do
viver".
Os suplícios
Nalguns casos, as "mil mortes" ocorriam quase "ipsis verbis", de que as sentenças da cúria secular dão exemplos até
bem entrado o século 18. Ilustra-o, entre
outras, a sentença de uma assassina de
bebês em Lisboa, condenada em 1772 a
ser atenazada, ter as mãos decepadas, ser
garroteada e finalmente queimada. Ou a
sentença de certos ladrões sacrílegos,
condenados, em 1780, a terem decepadas
e queimadas ambas as mãos à sua vista,
antes de serem enforcados. Dois casos
comprobatórios de que as Ordenações
eram para valer e não apenas ficção jurídica. Noutros casos, os suplícios se seguiam à morte rápida, esquartejando-se
o corpo, degolando-se o cadáver, distribuindo-se as partes dilaceradas do corpo
defunto pelos lugares onde o condenado
havia delinquido. Assim ocorreu no caso
célebre de Tiradentes. Destruição do corpo, estigma ou supressão da memória,
assim funcionava a pena capital no Antigo Regime.
De todo modo, supliciando o corpo antes ou depois de sua expiação final, o castigo era sempre exemplar, verdadeiro espetáculo que atraía multidões no qual se
afirmava a glória do soberano, a vingança
do rei e uma certa comunhão entre a Monarquia e os súditos de variados graus e
dignidades. O suplício da pena capital
não atingia apenas o corpo do condenado, mas funcionava, portanto, como pedagogia capaz de atingir o conjunto do
corpo social. Nas palavras de Silvia Lara:
"O lugar onde era construído o patíbulo,
a escolha do dia da execução e do roteiro
por onde passaria o cortejo penal, a distribuição dos lugares a serem ocupados
pelos membros da nobreza, milícia etc
-tudo fazia do ritual punitivo uma cerimônia política, de reativação do poder e
da lei do monarca".
Ordenações Filipinas -
Livro 5º
Organização: Silvia Hunold Lara
Companhia das Letras
(Tel. 0/xx/ 11/866-0801)
509 págs., R$ 25,00
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O mesmo ritual espetacular previsto
nas Ordenações se pode perceber nos autos-de-fé inquisitoriais, pelo menos os
mais afamados, incluindo-se açoites e
cortejos e a própria pena capital prevista
nas Ordenações para os hereges e apóstatas, a saber: a morte na fogueira. Mas,
nesse caso, vale dizer, morte sem suplícios preliminares e via de regra precedida
do garrote, antes da pira acesa. De todo
modo, não era a Inquisição que aplicava a
pena capital, por ser tribunal religioso,
impedido portanto de proceder a derramamento de sangue e de matar. É por essa razão que as sentenças capitais proferidas pela Inquisição se enunciavam como
"relaxamento à justiça secular" e ainda
por meio de antífrases, suplicando os inquisidores aos juízes que agissem "benigna e piedosamente" com o condenado e
não aplicassem a pena de morte ou efusão de sangue. Basta, porém, consultar o
texto das Ordenações, para não falar da
história da Inquisição, para constatar que
a fogueira era a pena reservada aos hereges impenitentes, fitos, relapsos, incorrigíveis...
A Justiça secular entrelaçava-se, portanto, com a Justiça do Santo Ofício, malgrado a autonomia de foros, a natureza
dos crimes e os estilos de julgar e punir. A
bem da verdade, as Ordenações tratavam
de todos os crimes, a começar, literalmente, pelos crimes de heresia e apostasia, blasfêmias, feitiçaria, todos eles, como se sabe, da alçada inquisitorial. Os regimentos da Inquisição previam lá suas
penas, as Ordenações outras, umas coincidentes, outras não, daí a superposição
de foros, as mil querelas entre alçadas nos
chamados crimes de foro misto, as pendengas mais eriçadas demandando a intervenção do rei. Assim funcionava a justiça, assim era o Estado naquele tempo.
Desvios sexuais
As Ordenações permitem ver o amplo
espectro de desvios que se pretendia "vigiar e punir" -o que, a rigor, abarcava
amplíssima gama de comportamentos e
criminalizava em potencial a sociedade
inteira. Eram punidos os crimes contra a
pessoa, os bens e a fé católica. Mas o eram
igualmente desvios minúsculos de comportamento, a exemplo de "benzer cães
sem autoridade del-rei ou dos prelados".
Eram-no ainda os desvios de conduta sexual ou moral ofensivos a Deus e à comunidade: adultérios de vários tipos, cópulas entre católicos e infiéis, desonestação
de virgens ou freiras, bigamias, bestialidades, sodomias - os dois últimos passíveis de morte na fogueira. As Ordenações permitem perceber, com máximo
detalhe, o entrelaçamento entre o público
e o privado, sendo da alçada real ou de
seus tribunais, seculares ou eclesiásticos,
adentrar as casas, as relações vicinais, afetos, desejos. E permitem perceber mesmo uma espécie de delegação de poderes
a indivíduos, como em alguns casos de
adultério nos quais se admitia que os maridos matassem licitamente as esposas e
mesmo os amantes, exceto se os amantes
fossem de status superior ao do esposo
enganado. Disposições absolutamente
chocantes hoje em dia, porém conformes
aos valores da época.
É caso de se acautelar, portanto, na leitura das Ordenações, porque o que parece ser barbarismo de tempos idos -e o é
moralmente - integrava perfeitamente
os mais elevados valores políticos e sociais do Antigo Regime. A leitura crítica e
histórica das Ordenações possibilita conhecer a alma do Antigo Regime, tempo
em que se descobriu e colonizou o Brasil.
Toda a cautela é pouca para não se cair
em juízos anacrônicos, embora seja de
lastimar o destino dos que caíam nas malhas judiciárias do rei. O mais inquietante
é porém constatar que, mesmo sem os
antigos reis, várias disposições do código
filipino parecem guardar extraordinária
atualidade na sociedade brasileira contemporânea.
Ronaldo Vainfas é professor de história moderna na
Universidade Federal Fluminense (UFF).
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