São Paulo, sábado, 14 de novembro de 1998 |
Próximo Texto | Índice Tudo é exílio
DAVI ARRIGUCCI JR
Num romance fantástico de Adolfo Bioy Casares, "La Invención de Morel", previa-se, em 1940, que já não haveria mais na Terra refúgio possível para um fugitivo político. A história da repressão nos países latino-americanos nos anos seguintes confirmou a previsão sombria: o fantástico era real. Com efeito, os anos de exílio representam para Gullar a descoberta do destino comum latino-americano, a que nos tem obrigado a violência: o infortúnio unânime de existir, tentando resistir, sob as botas de recorrentes ditaduras. O modo como um destino histórico singular supera o documento e se converte em obra de arte, com irradiação simbólica capaz de ir além das condições da gênese e brilhar com luz própria, é aqui o que desafia a compreensão crítica. Vale a pena tentá-la. A crítica literária brasileira, como o país, tem muitas dívidas; uma das maiores é com o autor em questão. Ele não é Ribamar Pereira, não é José Ribamar nem sequer José Ribamar Ferreira. Todos podem ser bons brasileiros e até ter parte com o santo adorado no Maranhão, S. José do Ribamar, mas nenhum é Ferreira Gullar, um grande poeta do Brasil e um de seus cidadãos mais dignos. O primeiro nome confundiu o poeta, no início da carreira, com um confrade de sua terra natal, levando-o a usar o pseudônimo; o equívoco com o último, decidiu-lhe em parte o destino, relatado em "Rabo de Foguete": de volta ao Brasil, Gullar se dá conta de que o processo que tanto peso tivera em sua vida não era o seu, mas o de um líder camponês maranhense, que se ligou à luta armada. Nenhum final poderia ser mais irônico, para arrematar memórias dos padecimentos de um exilado num mundo de liberdade sempre adiada, que traz nas cicatrizes de repetidas catástrofes a destinação da ironia trágica, antecipada na visão de Kafka como marca profunda de nosso tempo. A penúltima frase do livro -"A vida não é o que deveria ter sido e sim o que foi"-, desculpa o equívoco kafkiano (o termo aparece ao menos duas vezes para qualificar situações absurdas no exílio), ao exprimir a aceitação realista do vivido. Mas, aparentemente, afasta a experiência do âmbito da poesia, que cria, pela imaginação, possibilidades de ser para além do que foi, ou da História. Nenhum equívoco seria maior que esse, no entanto, quando se pensa no livro que se acabou de ler e que tem tudo a ver com a poesia de Gullar. Nele surge um narrador que é outra face do poeta, ambos empenhados na busca de aproximação artística da experiência histórica, real e imaginária: "Cada um de nós é a sua própria história real e imaginária" -assim termina o livro. A memória, faculdade mestra do narrador, já era antes essencial para o poeta. O "Poema Sujo", cuja gênese é narrada numa das passagens mais notáveis do relato, reconstitui por associações da memória, a mais funda identidade, tábua de salvação a que recorre o narrador ao recompor o vivido no momento em que o arrasta à destruição o redemoinho da história política. O ponto comum e enigmático é como dar forma artística à matéria vivida. Para isso, a compreensão crítica do poeta deveria ajudar. Sua fortuna crítica, tem sido, porém, quase a história de outro de seus infortúnios, uma vez que no conjunto e em detalhe, pouco abordou os problemas centrais e a situação de sua poesia ou pelo menos não o fez à altura dela. Com certeza, Gullar teve, desde o princípio da carreira, e talvez mais no princípio, o reconhecimento de alguns dos melhores críticos de poesia do país: Carpeaux, Pedro Dantas, Sérgio Buarque. Um de seus pares, Vinícius de Moraes, também soube ver sua real estatura. Além disso, de fora veio a contribuição, com pontos instigantes, do poeta argentino Santiago Kovadloff. Por outro lado, tem sido bem estudado por críticos universitários; basta considerar a antologia e o prefácio de Alfredo Bosi, os trabalhos de Alcides Villaça e, sobretudo, o de João Luiz Lafetá. Lafetá escreveu, a meu ver, seu melhor ensaio, e o mais agudo e exato de todos sobre o poeta de corpo inteiro, pela delicada rede com que capta, em perfeito equilíbrio, os elementos psicológicos e sociais da obra. "Traduzir-se" (2), assim se chama, lembrando o poema admirável, cujo relevo no conjunto dessa poesia a interpretação do ensaísta só fez crescer. Em primeiro lugar, dá a conhecer o poeta no perfil mais visível de cronista de seu tempo, em fino traçado do desenvolvimento da sua trajetória poética em consonância com a vida política do país. Mas a argúcia do intérprete se mostra mesmo ao revelar, com a iluminação límpida e sobranceira da grande crítica, a coerência interna da obra inteira, no enlace da identidade com o tempo e a linguagem. É assim que clareia de uma vez por todas enganos do engajamento do poeta, o esquematismo simplista de alguns de seus ensaios e da poesia doutrinária de certos momentos (como o do CPC e dos romances de cordel), mas, acima de tudo, a alta qualidade de tantos poemas ao longo da carreira toda, articulada por dentro pelos elos profundos que unem a "A Luta Corporal", passando pela fase concreta e neoconcreta, por "Dentro da Noite Veloz", pelo "Poema Sujo", até poemas mais recentes de "Na Vertigem do Dia", como partes de um mesmo processo de exploração intensa da subjetividade. Subjetividade que amadurece na derrota, ganha forças, até caminhar ao encontro do outro, num movimento espontâneo e natural, em que o poeta acaba por traduzir-se, fazendo de fato da solidão multidão, como diz no poema que foi a estrela guia do crítico. É nesse movimento, perfeitamente rastreado por Lafetá no interior da obra poética, que se encontra agora a força de "Rabo de Foguete", produto acabado de um narrador experiente que aprendeu com a derrota mais uma vez e se expõe com a fraqueza de um homem comum em quem a face mais íntima se traduz naturalmente na face pública. O instrumento de mediação para esse feito é a linguagem coloquial, manejada com exatidão em diálogos diretos, a serviço de cenas rápidas a que se resumem os capítulos concisos. A narração se processa assim, com energia e agilidade, sem prejuízo, da densidade do que carreia consigo e acumula na configuração de uma interioridade que afinal se expõe inteiramente, ao expor-se pela narração em suas relações com o mundo. Ao contar o vivido, o narrador se mostra como parte do drama na cena dialogada e concreta; ele é de novo o drama revivido, como se este estivesse realmente sendo visto do ângulo de quem o padeceu, exposto até sua mais despojada fraqueza. Tal procedimento desloca a autobiografia rumo ao romance, pois, em lugar de um discurso dominante, confessional ou meditativo, a subjetividade autoral se objetiva no mundo vivamente representado. O autor se representa a si mesmo em contacto dialógico com a realidade de que trata, abrindo-se às vozes do outro, como um homem comum às voltas com os acontecimentos que lhe transtornam a vida. Esse dialogismo dialetiza os conflitos ideológicos que se percebem pelos pontos de vista antagônicos sobre a situação política, as formas de ação, a atuação do partido, a propósito do Brasil ou dos outros países por onde passa o exilado, de modo que não prevalece, como se poderia esperar, a perspectiva de quem escreve depois que as coisas já se deram e a história, sabida de todos, já é outra. O modo de tratamento da matéria vivida é então o de um realismo irônico, dramático e minimalista, cuja garra reside no despojamento com que ataca os pontos fundamentais da história e as pequenas coisas envolvidas no mundo restrito da falta de liberdade. O livro nasce, com efeito, da perspectiva irônica do homem que pode menos que os acontecimentos que o atropelam, pondo tudo de ponta-cabeça: "Minha vida começara a virar de cabeça para baixo" são suas palavras textuais, no princípio. Essa virada inicial, que desencadeia o relato, indicia a mudança de vida para o que vai ser então: a existência complicada e sofrida na clandestinidade, em que se procura anular a própria identidade física para que o íntimo da pessoa consiga sobreviver num dia-a-dia muito diminuído. O livro já começa nos arrastando para um torvelinho de expedientes diminutos que interferem na sobrevivência e no aprendizado das novidades que chegam de fora. O coloquialismo das cenas diretas confere concretude às pequenas coisas que passam a compor a vida cotidiana do clandestino, recluso em espaços delimitados, avançando só por explorações dificultosas, para além dos limites apertados em que estão comprimidos os seus dias. Os pequenos prazeres e as necessidades corriqueiras podem virar um risco grande: ir ao cinema ou ao teatro, encontrar um amigo, comer uma feijoada, urinar, rever os filhos. Mais tarde, mundo afora, a descoberta das coisas se processará aos poucos, por visão fragmentária de uma realidade sempre maior e desconcertante, onde se perde facilmente quem busca refúgio, como ocorre na chegada à União Soviética. Tudo isso, entretanto, é apenas prenúncio do pior. O drama da liberdade, posta em perigo, é assim reafirmado em cada detalhe, em cada gesto, em cada pequeno passo, em cada evento novo, ganhando o realce de uma extrema intensidade, e nos comove, ao acionar partes que estão em consonância com o drama total. Daí um ritmo crescente de implicações, acasos, ressonâncias e equívocos, quase sempre sérios e problemáticos, beirando o trágico, mas que podem também resultar em tragicômicos depois de passados. Serão sempre, porém, comoventes, no sentido de que nos movem com eles, com cada um deles, segundo a força que trazem em si como parte do problema todo, desde o primeiro instante instalado na expressão que registra a reviravolta da existência. Por essa forma de tratamento, logo se vê que o texto não é analítico, embora não faltem reflexões pontuais sobre o processo político que o autor viveu ou mesmo sobre o significado que a poesia adquiriu para a sua sobrevivência. Seria, entretanto, um erro pensar que ele se restringe ao mero relato dos eventos que lhe marcaram a existência nesse período conturbado de sua vida. Na verdade, o mais substancial é a interioridade atravessada pela experiência histórica, ou melhor, a exposição da mais íntima experiência individual na travessia de acontecimentos históricos decisivos daquele período, quando exatamente essa experiência se constituiu. À semelhança do que ocorreu durante o processo de afirmação do romance na tradição ocidental, quando o estatuto do que é ficcional ou histórico é bastante oscilante e por vezes intercambiável, o que se observa aqui é a história de um indivíduo particular em meio às contradições e aos episódios históricos de seu tempo, sem que seja preciso lançar mão de qualquer ficcionalização propriamente dita para se chegar à forma do romance. Ele pode nascer do recorte e da montagem do vivido, que não transcrevem (nem querem ou poderiam fazê-lo) a realidade bruta, mas dão forma artística, mediante a linguagem adequada, à matéria vivida. O resumo do essencial se torna um meio artístico para dar com o cerne duro da experiência histórica, feito no caso de dor, solidão e desespero, na própria intimidade do ser à parte que é o exilado. Na verdade, o exílio chama a atenção para a condição histórica do homem contemporâneo, sujeito ao desgarramento num inferno em que pode de repente virar o mundo todo. Aumentam os espaços e cresce a desolação do ser, dissolvendo-se frente ao infinito. Voltam à memória imagens de Giacometti: o homúnculo que se desfaz e vaga errante no vazio, sem retorno possível à casa. Em meio ao maior desespero, em 75, em Buenos Aires, o poeta se agarra à poesia para sobreviver. O ressaibo de tanto sofrimento havia chegado ao extremo, pedindo um poema final. Agarra-se então ao próprio umbigo, ao umbigo do poema como salvação. O "Poema Sujo" vai nascer, em meses de excitação criadora. É o melhor capítulo desse livro em que a fragilidade é força. Repassa então a vida toda de São Luiz do Maranhão, volta às imagens da infância, aos cheiros, às cores, às ruas, às casas de sua terra natal, à sua casa e à sua cidade, à cidade que existe dentro do homem, como construção do desejo, da memória e da imaginação, como fruto do trabalho humano em resposta ao desvario e ao caos em que se pode converter para ele e seus semelhantes a História. A memória de Ferreira Gullar, a mesma que ora reconstrói a experiência do foragido e do sobrevivente em "Rabo de Foguete", a memória do narrador, se agarra ao que pode para deixar notícia no planeta de sua experiência individual, o traçado singular da história de um homem e do que passou. Como disse outro poeta, no princípio da noite, frente à imensidão do universo, "tudo é exílio" (3). Notas: 1. O título evoca um verso de uma canção da época, "O Bêbado e a Equilibrista", de João Bosco e Aldir Blanc, famosa na voz de Elis Regina: Meu Brasil.../ que sonha/ com a volta do irmão do Henfil/ com tanta gente que partiu/ num rabo de foguete. 2. In: "O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira", São Paulo, Brasiliense, 1982 3. Verso final do "Princípio da Noite", de Dante Milano. Davi Arrigucci Jr. é ensaísta e professor de literatura na USP, autor, entre outros, de "O Escorpião Encalacrado" (Companhia das Letras). Próximo Texto | Índice |
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