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A última fuga de Mário de Andrade
LIVIO TRAGTENBERG
Amazônia, 1998: uma
multinacional japonesa
de instrumentos musicais eletrônicos envia
para a Amazônia um técnico de
som para a gravação de sons de
instrumentos típicos, animais,
cantos, vozes e ambientes da selva
brasileira. Os sons captados serão
usados numa próxima linha de
sintetizadores.
Norte-nordeste, 1928: Mário de
Andrade percorre a região recolhendo melodias, cantos e textos
nas manifestações culturais populares, em busca das "tradições
móveis" presentes na música brasileira.
Esses dois momentos diferentes
refletem uma evolução paradoxal
do universo sonoro ao longo deste
século, que vem derrubando antigos antagonismos, como nacionalismo versus internacionalismo,
música popular (agora, mercado
-logicamente travestida em música "étnica") versus música
"culta", pesquisa musicológica e
mercado musical etc.
O livro de Jorge Coli é uma contribuição importante para a compreensão do último período de
Mário de Andrade, pois, além de
recolocar em circulação textos
originais, apresenta-nos um amplo elenco de comentários onde
são analisadas, sob um ponto de
vista contemporâneo, várias
questões importantes levantadas
pelo escritor e musicólogo paulista em sua coluna semanal "O
Mundo Musical", publicada entre 1943 e 1945 no jornal "Folha
da Manhã".
Mas em que medida, nos dias de
hoje, as idéias e os questionamentos de Mário de Andrade podem
nos ajudar a compreender a situação da música, do mercado e da
tradição popular musical atual?
Na era do "sampler" e da música étnica, pode-se observar que
hoje as tradições musicais regionais têm sido objeto de manipulação por parte dos músicos, produtores e da indústria musical. Uma
questão principal a ser respondida
é quem comanda quem nessa manipulação.
Vale reproduzir um trecho do
último texto de "O Mundo Musical" publicado em fevereiro de
1945, pouco antes da morte de
Mário, sobre essa questão: "Popular e Popularesco -uma diferença que, pelo menos em música,
ajuda bem a distinguir o que é
apenas popularesco, como o samba carioca, do que é verdadeiramente popular, verdadeiramente
folclórico como o "Tutu Marambá', é que o popularesco tem por
sua própria natureza, a condição
de se sujeitar à moda. Ao passo
que na coisa folclórica, que tem
por sua natureza ser "tradicional'
(mesmo transitoriamente tradicional), o elemento moda, a noção de moda está excluída".
Nos dias de hoje observa-se um
uso marcadamente popularesco
das tradições musicais populares;
mas, de forma paradoxal, esse uso
tem estimulado a prática desses
repertórios e suas práticas instrumentais tradicionais; ainda que,
recolocadas em circulação com o
status frágil de novidade, de fato
de moda, efêmero.
Nunca o elemento "nacional"
serviu tanto ao internacionalismo, como uma segunda onda daquele ímpeto de afirmação nacional representada pela segunda geração do romantismo musical europeu e russo.
É certo que o discurso nacionalista da primeira metade deste século se esgotou nas próprias limitações que davam sentido ao seu
discurso e ideário, mas também é
inegável que o folclore, a música
tradicional, é um material cada
vez mais utilizado pelas músicas
de hoje, nos mais diferentes estilos
e objetivos musicais. O que se vê
pouco no Brasil é uma musicologia sintonizada com esse novo
ambiente cultural, que busque os
elementos e práticas das tradições
regionais, no sentido do enriquecimento de uma cultura musical
urbana cada vez mais reduzida às
condicionantes da moda. De qualquer forma, para Mário de Andrade a tradição musical era sobretudo um elemento socializador, coletivizante, mas também moral e
ético.
A OBRA
Música Final -
Jorge Coli
Ed. da Unicamp (Tel. 019/78811015)
420 págs., R$ 45,00
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"O Mundo Musical" é uma coleção complexa e diversificada de
textos, sobre os quais Jorge Coli
lança em seus comentários uma
luz bifocal: de um lado, busca
contextualizar o momento e a situação em que os textos foram escritos -seja em meio a uma polêmica, seja como resposta a um fato de época; e, de outro lado, analisá-los tendo em mente uma visão retrospectiva de seu pensamento e obra. Jorge Coli chama a
atenção, já no inicio do livro, para
uma opacidade, e mesmo obscuridade, presente nesses textos, reconhecendo neles a instabilidade
de um período de transformação
nas idéias e conceitos do musicólogo. Um crepúsculo que se projeta como um salto no escuro.
Dessa forma, se estabelece um
novo nível de análise, baseado em
grande medida na comparação e
no cotejo dentro da própria obra
de Mário de Andrade, expondo à
luz a riqueza das contradições de
um "pensamento móbil, desenrolado na dinâmica dos momentos". Assim, o leitor encontra espaço para transitar de forma mais
flexível por conceitos e questões
polêmicas, acompanhando uma
análise que se mantém com uma
admirável elegância, pairando sobre as diatribes andradinas.
Mediante alguns anexos, "Música Final" incorpora a seu corpo
textual anotações manuscritas e
mesmo textos de outros autores
reunidos marginalmente por Mário em torno de algum texto seu
ou tema. Esse corpo constelar
contribui bastante para que se
possa atravessar intimamente
suas idéias e fontes, por meio de
alguns temas recorrentes em sua
obra, como o teatro cantado, Villa-Lobos, o romantismo musical,
a música nacional etc.
Alguns textos abordam figuras
esquecidas e que têm a sua importância ainda a ser reconhecida, como a cantora e musicóloga carioca Elsie Houston. Ela percorreu
uma trajetória singular no meio
cultural da época, casou-se com o
poeta francês Benjamin Péret,
gravou e divulgou a música folclórica brasileira em apresentações
na Europa e EUA. Interrompeu
sua trajetória singular suicidando-se a 20 de fevereiro de 1943 em
Nova York. Jorge Coli transcreve
texto de Sérgio Milliet sobre a cantora, no qual este vaticinava: "Elsie tinha dois "handicaps' graves:
ser séria demais (...) e ser mestiça". De timbre vocal delicado,
Houston combinava uma técnica
vocal apurada com uma maleabilidade e naturalidade caboclas em
suas interpretações, sempre
acompanhada por arranjos interessantes. Coli destaca, mais uma
vez, que, por oposição em relação
a Elsie, Mário criou a personagem
Siomara Ponga de "O Banquete".
Por paradoxal que pareça, hoje
em plena e dita "globalização",
era do "multiculturalismo", se
observa a atualidade de Mário de
Andrade especialmente em seu
trabalho musicológico. O ideário
nacionalista descrito no "Ensaio
sobre a Música Brasileira", de
1928, trata de uma outra realidade, ultrapassada. No entanto, sem
dúvida parece importante seguir
no trabalho de pesquisa de campo, de mapeamento de nossa riqueza cultural, para uma futura
devoração. Mário também continua atual e instigante ao abordar
as relações entre a antropologia
musical e os efeitos psicofisiológicos da música.
"Música Final" ilumina, por
reflexão, e com sua luz transversa,
a opacidade de "O Banquete",
escrito também originalmente para "O Mundo Musical". Pode-se
dizer que "Música Final" é um
encontro privilegiado com um
pensador capturado em plena
curva hiperbólica instável, escrevendo sua última grande fuga.
Livio Tragtenberg é compositor.
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