São Paulo, sábado, 14 de novembro de 1998

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A última fuga de Mário de Andrade

LIVIO TRAGTENBERG

Amazônia, 1998: uma multinacional japonesa de instrumentos musicais eletrônicos envia para a Amazônia um técnico de som para a gravação de sons de instrumentos típicos, animais, cantos, vozes e ambientes da selva brasileira. Os sons captados serão usados numa próxima linha de sintetizadores.
Norte-nordeste, 1928: Mário de Andrade percorre a região recolhendo melodias, cantos e textos nas manifestações culturais populares, em busca das "tradições móveis" presentes na música brasileira.
Esses dois momentos diferentes refletem uma evolução paradoxal do universo sonoro ao longo deste século, que vem derrubando antigos antagonismos, como nacionalismo versus internacionalismo, música popular (agora, mercado -logicamente travestida em música "étnica") versus música "culta", pesquisa musicológica e mercado musical etc.
O livro de Jorge Coli é uma contribuição importante para a compreensão do último período de Mário de Andrade, pois, além de recolocar em circulação textos originais, apresenta-nos um amplo elenco de comentários onde são analisadas, sob um ponto de vista contemporâneo, várias questões importantes levantadas pelo escritor e musicólogo paulista em sua coluna semanal "O Mundo Musical", publicada entre 1943 e 1945 no jornal "Folha da Manhã".
Mas em que medida, nos dias de hoje, as idéias e os questionamentos de Mário de Andrade podem nos ajudar a compreender a situação da música, do mercado e da tradição popular musical atual?
Na era do "sampler" e da música étnica, pode-se observar que hoje as tradições musicais regionais têm sido objeto de manipulação por parte dos músicos, produtores e da indústria musical. Uma questão principal a ser respondida é quem comanda quem nessa manipulação.
Vale reproduzir um trecho do último texto de "O Mundo Musical" publicado em fevereiro de 1945, pouco antes da morte de Mário, sobre essa questão: "Popular e Popularesco -uma diferença que, pelo menos em música, ajuda bem a distinguir o que é apenas popularesco, como o samba carioca, do que é verdadeiramente popular, verdadeiramente folclórico como o "Tutu Marambá', é que o popularesco tem por sua própria natureza, a condição de se sujeitar à moda. Ao passo que na coisa folclórica, que tem por sua natureza ser "tradicional' (mesmo transitoriamente tradicional), o elemento moda, a noção de moda está excluída".
Nos dias de hoje observa-se um uso marcadamente popularesco das tradições musicais populares; mas, de forma paradoxal, esse uso tem estimulado a prática desses repertórios e suas práticas instrumentais tradicionais; ainda que, recolocadas em circulação com o status frágil de novidade, de fato de moda, efêmero.
Nunca o elemento "nacional" serviu tanto ao internacionalismo, como uma segunda onda daquele ímpeto de afirmação nacional representada pela segunda geração do romantismo musical europeu e russo.
É certo que o discurso nacionalista da primeira metade deste século se esgotou nas próprias limitações que davam sentido ao seu discurso e ideário, mas também é inegável que o folclore, a música tradicional, é um material cada vez mais utilizado pelas músicas de hoje, nos mais diferentes estilos e objetivos musicais. O que se vê pouco no Brasil é uma musicologia sintonizada com esse novo ambiente cultural, que busque os elementos e práticas das tradições regionais, no sentido do enriquecimento de uma cultura musical urbana cada vez mais reduzida às condicionantes da moda. De qualquer forma, para Mário de Andrade a tradição musical era sobretudo um elemento socializador, coletivizante, mas também moral e ético.

A OBRA
Música Final - Jorge Coli Ed. da Unicamp (Tel. 019/78811015) 420 págs., R$ 45,00



"O Mundo Musical" é uma coleção complexa e diversificada de textos, sobre os quais Jorge Coli lança em seus comentários uma luz bifocal: de um lado, busca contextualizar o momento e a situação em que os textos foram escritos -seja em meio a uma polêmica, seja como resposta a um fato de época; e, de outro lado, analisá-los tendo em mente uma visão retrospectiva de seu pensamento e obra. Jorge Coli chama a atenção, já no inicio do livro, para uma opacidade, e mesmo obscuridade, presente nesses textos, reconhecendo neles a instabilidade de um período de transformação nas idéias e conceitos do musicólogo. Um crepúsculo que se projeta como um salto no escuro.
Dessa forma, se estabelece um novo nível de análise, baseado em grande medida na comparação e no cotejo dentro da própria obra de Mário de Andrade, expondo à luz a riqueza das contradições de um "pensamento móbil, desenrolado na dinâmica dos momentos". Assim, o leitor encontra espaço para transitar de forma mais flexível por conceitos e questões polêmicas, acompanhando uma análise que se mantém com uma admirável elegância, pairando sobre as diatribes andradinas.
Mediante alguns anexos, "Música Final" incorpora a seu corpo textual anotações manuscritas e mesmo textos de outros autores reunidos marginalmente por Mário em torno de algum texto seu ou tema. Esse corpo constelar contribui bastante para que se possa atravessar intimamente suas idéias e fontes, por meio de alguns temas recorrentes em sua obra, como o teatro cantado, Villa-Lobos, o romantismo musical, a música nacional etc.
Alguns textos abordam figuras esquecidas e que têm a sua importância ainda a ser reconhecida, como a cantora e musicóloga carioca Elsie Houston. Ela percorreu uma trajetória singular no meio cultural da época, casou-se com o poeta francês Benjamin Péret, gravou e divulgou a música folclórica brasileira em apresentações na Europa e EUA. Interrompeu sua trajetória singular suicidando-se a 20 de fevereiro de 1943 em Nova York. Jorge Coli transcreve texto de Sérgio Milliet sobre a cantora, no qual este vaticinava: "Elsie tinha dois "handicaps' graves: ser séria demais (...) e ser mestiça". De timbre vocal delicado, Houston combinava uma técnica vocal apurada com uma maleabilidade e naturalidade caboclas em suas interpretações, sempre acompanhada por arranjos interessantes. Coli destaca, mais uma vez, que, por oposição em relação a Elsie, Mário criou a personagem Siomara Ponga de "O Banquete".
Por paradoxal que pareça, hoje em plena e dita "globalização", era do "multiculturalismo", se observa a atualidade de Mário de Andrade especialmente em seu trabalho musicológico. O ideário nacionalista descrito no "Ensaio sobre a Música Brasileira", de 1928, trata de uma outra realidade, ultrapassada. No entanto, sem dúvida parece importante seguir no trabalho de pesquisa de campo, de mapeamento de nossa riqueza cultural, para uma futura devoração. Mário também continua atual e instigante ao abordar as relações entre a antropologia musical e os efeitos psicofisiológicos da música.
"Música Final" ilumina, por reflexão, e com sua luz transversa, a opacidade de "O Banquete", escrito também originalmente para "O Mundo Musical". Pode-se dizer que "Música Final" é um encontro privilegiado com um pensador capturado em plena curva hiperbólica instável, escrevendo sua última grande fuga.


Livio Tragtenberg é compositor.



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