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Culminância e amor cortês
AFFONSO ÁVILA
Chegado é o tempo",
tempo de apurada, acurada sabedoria, tempo
de soma e culminância.
Tempo da proporção áurea, aquele toque de equilíbrio final de linhas, de curvas e da diagonalidade expressionista que o arquiteto
exímio pautou e a que deu o movimento sublime no frontispício da
criação superior, no lance ao mesmo talho contido e comovido da
portada. Não recuarei ao símile de
imagem convencional do burilador "fin-de-siècle", do joalheiro
folheador da chave de ouro do
parnaso, do êxtase miralunar do
nefelibata excitado ao sabor do
símbolo raro e dos álcoois e absinto.
Sabem do arquiteto a quem aludo, sabem do poeta que ao barroco especular saúdo, instantes e
instâncias, cada qual na medida
peculiar e chancelar que o impulso instigador de fascínios do fazer
lhes concedeu, instantes e instâncias com que aprendi e apreendi
relações de convivência e conivência de arte extrema, de poesia
estreme. Recuarei, sim, ao entreabrir ambos a sua florescência de
invenção, o sumo criador da avalanche vindoura de beleza na sua
juvenil estátua-fonte de Eros, o
êmulo infanção no aprendizado
de outra plástica que a pedra -a
mais dúctil da palavra- "copas e
marfins renhidos", ambos ao seu
talante de tálamo e transes, vórtices e vertigens tácteis e óticos, errâncias do preâmbulo erótico, ah
ambos, ah jovens que foram, jovens que fomos. Para o poeta,
"chegado" era "o tempo", mas
premonição de quem seria, de
quem viria a ser, do amor sedutor
ao amor sênior, do estio ao estelar, pois, enquanto seu supra-símile, "no mais alto degrau da arte
de meu país" (Oswaldo dixit), subia e se cristalizava em Cristos de
paixão, o poeta tenaz e terreno se
cristalizaria, aos meus olhos
amestrados de idade diante do
que é "sim" e do que é "não", se
cristalizaria nesta culminância de
"Crisantempo".
Poderão achar, os que lêem, que
exagero por cumplicidade, afinidade e afetividade nesse, ao ver
talvez deles, paralelo pretensioso,
mas advirto, no meu vezo meio
setorizado da hipérbole cultista,
que não falo em pratos e pesos de
balança judiciosos, porém em
conceito de teor de competência,
conceito aproximador do que é
"sim" em qualquer distância ou
esfera. Um se insulou e genializou
como seu próprio e íntimo paradigma, meu poeta aqui assinalado
abriu brechas de ares e mares, de
extroversões de língua e interversões de línguas, se auto-escreveu e
reescreveu outros. Ainda assim,
longe de mim qualquer abuso em
atribuir cúmulos de universalidade ao que é talentosa verticalidade
de prospecção, em incorrer num
desfavor ingênuo do que é universalidade por genialidade de introspecção. O poeta em close e foco é Haroldo de Campos -revela-se à luz meridiana-, e ele, lúcido e propedêutico, conhece e entende com superioridade de aferição que a mesma aproximação fiz
ou faria, à hora certa e lugar certo,
com precedência e procedência,
em recorrências ao patriarca de
todos nós, Gregório, aos fundantes da contemporaneidade,
Drummond, Murilo, Cabral, perfilados de inteireza dentro de igual
rigor ao mesmo que diviso na
poesia haroldiana da soleira quase
meio secular do "Auto do Possesso" à proporção áurea culminante neste "Crisantempo".
"Crisantempo" é livro ecumênico em seu porte paradoxalmente conciso de amplitudes, livro de
intercorrentes fusos poéticos, livro capaz de fundir e confundir
parabólicas e satélites, desorientador de observatórios meteorológicos. Sua previsão de tempo -ritmo, cadência, pêndulo de entropias convergentes súbito perturbadas pelas interferências do ruído, pois o humano, o húmus do
homem, a presentidade-, o tumulto do sangue quente da rua e
dos divisores de rumo, a insubordinação do sentimento à injustiça
-"o anjo esquerdo da história"-, quebrando a justeza ática
inerente ao verso haroldiano, são
fenômenos no caso semanticamente incontroláveis de um "el
niño" desarticulador de climas
temperados e lavouras planejadas.
O poeta cresceu em vulto, se expandiu como Ulisses a seu mundo, querendo retornar da sua
Tróia concreta, vencida da rebeldia e da revolução, mas interceptado sempre em seu mapa antropofágico de império criativo pelas
sequências de circes e ilhas
atraentes de magia desafiadora de
outras famílias e tribos de línguas,
ignotas seduções a que ao final,
seis vezes dez anos, o leva ao não
se acomodar ao aconchego da
"parole" uterina e a partir de novo, para o imprevisto dos mais ásperos sons e sentidos, o "Finismundo" da poesia e de si mesmo.
"Finismundo", este poema,
extenso de vôo e reflexão, será relido agora no painel consolidador
de incursões que é "Crisantempo", a corrente ao largo sem
"terra à vista" do navegador por
fatalidade e volúpia, o único poeta
brasileiro de inquietação ubíqua e
polissêmica de meus dias, mais
que Murilo, fundeado nos arcanos da Itália, ou Cabral, dividido
entre a matriz do solo pernambucano e o corpo sensual de Sevilha.
Do Ocidente ancestral, porém
multi-referente de similitudes e
diferenças, entrelaçando festões
apolíneo-barrocos que remetem
aos canais irrigadores das "greguerias" e dos "latinórios", passando depois pelos interregnos
florentino-weimarianos de Dante
e Goethe e dos reformuladores da
modernidade e vanguarda, até o
Oriente, entre o próximo e a sua
extremidade, de Israel ao Japão.
A OBRA
Crisantempo -
Haroldo de Campos Perspectiva (Tel.
011/885-6878) 376 págs., R$ 44,00
(acompanha um CD)
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Ecumênico, disse atrás, porquanto funde mitos e teologias,
poemários de arte e artifícios de
poesia, não só o transcriador que
se comprova erudito em seu cartão de visita incômodo aos seminários acadêmicos, mas o grã
pensante que, em entrevista não
me lembra qual e onde, confessou
que, para ele, poesia se transformava cada dia mais em filosofia e
esta -mostra bem "Crisantempo"- cada vez mais em poesia:
assim o dizem em percuciência e
linguagem as escaladas poéticas
no reduto metafísico de São Tomás de Aquino e Hegel. Acronia
que se reverte em sincronia, o
concreto do ortodoxo que mantém ereto na heterodoxia do real
concreto, saltos de passagem de
anos e pulmões abertos ao pleno,
mais Maiakóvski hoje que Mallarmé ontem, poesia que galgou a altitude das mais dignas em mestria
e lição para os que sucedem à teimosia poética e -de vanguarda
ainda, sim- de nossa geração.
Comparsa ou parceiro, o autor de
"Crisantempo" bate generoso a
aldabra de certo "solar de poesia" e move de uma alegria solidária certos "partisans" que se
entrincheiram juntos a ele e se esgueiram, entre o arame farpado
da mediania e a estaca do discurso
evasivo, solidários -repito- no
encalço do tom e dom maior da
palavra, que se sabe luzir ao rijo de
seu diamante.
Flor, crisântemo, ao madurar de
Cronos, o novo livro de Haroldo
me faz retroceder, como acenei ao
início deste texto meio de registro,
meio de louvor, ao poeta preambular dos 20 anos, em bodas com
a epifania do encontro amoroso e
ao embate vestibulário com a poesia no livro de aurora do verbo assumido -"Auto do Possesso"-, recebido com estímulos
de augúrio pelo Sérgio Buarque de
Hollanda então crítico mais que
historiador no memorável "Diário Carioca". Neste retrovisor que
capta aqui a arrancada em primeira de quem seria um dos pilotos
da Fórmula 1 da poética da erudição, do pensamento e criação de
nossa merencória e no entanto
sempre vital literatura de Terceiro
Mundo, eu rediviso um lado pouco focalizado da obra de Haroldo
de Campos.
Quero colocar ao vídeo e amostragem o lirismo implícito que escapa aos que, infectados de preconceitos que não se pacificam
nem com a vitória insofismável de
uma revolução a seu instante radical, mas redimensionadora de horizontes, insistem na impertinência, como a dos reacionários à Semana de 22, de uma réplica de
mediania ou ressentimento, em
atirar pedras que sobre si mesmos
ricocheteiam, em cuspir para cima no infalível ridículo do cair na
própria cara ou, se preferem, do
ver cair a cara diante da poesia de
competência. O mais sensível dos
concretos ou o mais concreto dos
sensíveis é também o lírico no
preciso domínio da lira retensa e
afinada de agilidade da dicção, como na corda escandida e pontuada de ressonância de seu parceiro
Marsicano, quando, neste "Crisantempo" de suspenses e surpresas, compõe a sua "Cármina", mais que Cármina Burana.
Um crisântemo de sons e aromas
plurilíngues para Carmen, a companheira, uma Beatriz que não se
sutilizou no eflúvio da idealidade
e caminhou e caminha, cativa e
cativante, mão na mão, olhos nos
olhos, no longo percurso de ascensão e também de provações do
poeta, amiga de amar, completude do ser.
A série de poemas que o lirismo
haroldiano, a par de outras semeaduras e irrigações emotivas
que permeiam o livro, reúne na
"Cármina" só confere estatura a
uma poética que se apurou e culmina de pessoalidade e singularidade numa história de poesia como a brasileira, na qual raras vozes não se pluralizam e banalizam
em redundâncias. Carme, poema,
canto, diz a definição dicionarizada, e Haroldo substantiva essa semântica em mulher, coroamento
do livro em cinco peças, que, na
abertura visual, se iluminam de
uma portada que sugere entrebeleza grega de Afrodite e entre-sorriso de Mona Lisa, conotando em
rosto emblemático foto de Alberto de Lacerda e pintura primaz de
Da Vinci. Marília, Glaura, Constança: a musas icônico-tropicais
do ementário lírico brasileiro, a
musas que tais se irmana agora,
nesse patamar afetivo do poeta, a
musa-tema de Haroldo. E, como
priorizar, nesse torneio cardeal e
cordial de amor cortês do cavaleiro de uma ordem hoje quase perempta de cavalaria amorosa, o
poema-espelho em que a dama
eleita se contemple e deixe contemplar neste nosso propósito de
homenagear, também nós, seus
leitores e amigos, a homenageada
de Haroldo?
Citação celebrativa ao fim do
elogio ainda que breve e informal
do livro de culminância do poeta,
livro ao mesmo tempo de excelência de perícia de criação gráfica
profissional, mas notadamente
afetuosa de Jacó Guinsburg. Fico,
em inclinação de gosto e escolha,
na versão do louvor em provençal, marco em idioma do amor
cortês: "D'amor", à provençal,
belo de intenção e realização. Poeta das "Galáxias", também em
"Crisantempo", redivivo em juvenília "decifraste a sigla das estrelas".
Affonso Ávila é poeta, ensaísta, diretor da revista "Barroco" e autor de "O Visto e o Imaginado" e "O Lúdico e as Projeções do Mundo" (Perspectiva).
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