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Minha História - Lourdes de Campos Meloni, 74

Ninguém tinha coragem de contar

Viúva só ficou sabendo horas depois da morte do metalúrgico Amaral, única vítima fatal do Levante de Guariba, em 1984

ISABELA PALHARES ENVIADA ESPECIAL A GUARIBA

RESUMO

Uma página de jornal e um rádio de pilhas são os objetos que mais trazem lembranças do último dia de vida do marido de Lourdes de Campos Meloni, 74. Atingido por uma bala perdida na cabeça, o metalúrgico Amaral Vaz Meloni foi a única vítima fatal do Levante de Guariba. Até hoje não se sabe quem fez o disparo. A morte deu visibilidade internacional à greve e às dificuldades enfrentadas pelos cortadores de cana.

-

Ele estava aqui, sentado na mesa da cozinha, ouvindo as notícias no rádio de pilha como havia feito nos últimos 20 dias, desde que tinha se aposentado. Até que cansou e levantou, dizendo que ia à praça ver como estava a greve dos boias-frias.

Eu sabia que a greve estava violenta, um dia antes os boias-frias tinham colocado fogo em um carro, mas nunca pensei que poderia acontecer qualquer coisa com o Amaral. Ele era metalúrgico e não tinha nada a ver com o que estava acontecendo.

Apesar de nunca ter trabalhado na lavoura, o Amaral sabia como a vida dos cortadores era sofrida e achava que eles tinham mesmo de brigar por melhores condições de trabalho.

Eu comecei a cortar cana com dez anos de idade e sempre fui uma das mais rápidas. O Amaral não sossegou enquanto eu não parei de trabalhar na lavoura.

Minha mãe morreu quando eu ainda era pequena. Por isso, eu, que era a mais velha dos filhos, precisava voltar cedo para casa e fazer o jantar dos meus irmãos.

Para compensar a uma hora que perdia por sair mais cedo, tinha uma estratégia: não almoçava e assim conseguia cortar seis toneladas por dia. Cheguei a varar até oito em um dia só.

Me casei aos 27 anos. O Amaral, quatro anos mais velho que eu, tinha quatro filhos do primeiro casamento e havia ficado viúvo dois anos antes de nos conhecermos.

Mesmo tendo de cuidar dos filhos deles e, depois, dos nossos --tivemos mais três--, não pude parar de cortar cana. O dinheiro que ele ganhava na Oficina Louzada, onde trabalhou por mais de 30 anos, não dava para sustentar nove bocas.

Todos os dias, ele me via chegar cansada em casa e dizia que eu parecia um pedacinho de carvão, porque estava suja com as cinzas da palha queimada.

Com os filhos dele já crescidos e ajudando em casa -- e por causa de um problema na coluna--, parei de cortar cana aos 41 anos, um ano antes de o Amaral morrer.

SENTADO, OBSERVANDO

Lembro como se fosse hoje o dia em que ele morreu. Ele levou o tiro às 11h30, mas só fui saber no final da tarde. Ninguém tinha coragem de me contar.

Ele estava sentado nas escadarias do estádio, observava o movimento dos grevistas, quando foi atingido por um bala perdida na cabeça.

Eu mal podia acreditar que ele tinha morrido, na verdade demorei meses para entender que ele tinha ido.

Há 30 anos, Guariba não tinha velório. Então, tivemos de fazer o velório em casa, na sala de visitas. Até hoje não consigo entrar naquela sala, só recebo as visitas na cozinha.

O Amaral entrou para a história. Não fosse a morte dele, os boias-frias não teriam conquistado todos os direitos e muita gente teria morrido. Naquela época, muitos morriam de tanto trabalhar nos canaviais. Se não fosse a greve, teria morrido muito mais.


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