São Paulo, segunda-feira, 07 de março de 2011

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Ensino livre

O lado obscuro da ponte

Ex-diretor da Ponte, escola de Portugal conhecida por usar um método inovador que inspirou colégios brasileiros, admite ter batido em aluno

Fotos Nelson D’Aires/Folhapress
Alunos aprendem a ler na Escola da Ponte, em Portugal

FELIPE CARUSO
DO RIO

Célebre por subverter os paradigmas do ensino tradicional, a Escola da Ponte, criada em Portugal em 1976, ganhou notoriedade ao propor um projeto pedagógico diferente, em que não há séries nem professores divididos por disciplina.
Por trás de um método inovador, exaltado em "A Escola com que Sempre Sonhei sem Imaginar que Pudesse Existir" (Papirus, 2001), de Rubem Alves, houve uma instituição onde a violência era rotineira e foi importante -o estopim- para a implantação do método.
A revelação é feita por José Pacheco, um dos mentores do projeto e que esteve à frente da escola por mais de 30 anos. Ele admite ter batido em um aluno em 1976 e diz que o livro do brasileiro lhe "criou um problema".
Pacheco deve lançar, em meados do ano que vem, um livro sobre o lado obscuro da escola. Confira, a seguir, trechos da entrevista.

 

Folha - Depois do livro de Rubem Alves, a Escola da Ponte inspirou projetos de educação no Brasil...
José Pacheco
- O Rubem Alves me criou um problema quando publicou o livro. Ele é um homem maravilhoso e um amigo, mas, sem querer, criou um mito, mostrando só o lado belo das crianças solidárias. A Escola da Ponte tem um outro lado. O lado feio. O lado da fragilidade humana e que é preciso revelar. Eu hoje no Brasil me preocupo em desfazer o mito sem chocar as pessoas, mas mostrando o lado da miséria humana que também fez a Ponte.

E que lado é esse?
É doloroso falar nisso. Há grandes lutas no projeto. No início, houve grande violência, tanto simbólica quanto explícita. Há 35 anos, havia uma prática comum na escola: professor batia em aluno e aluno batia em professor. Há o conflito entre pessoas diferentes enquanto não aprendemos a aceitar o outro.

A violência no início do projeto surgiu pela ruptura da noção antiga de autoridade?
Em 1976, havia na Ponte a chamada Turma do Lixo, constituída em sua maioria por jovens de 13 a 15 anos que não sabiam ler nem escrever. Esses jovens não eram violentos. Eram violentados.
Além da violência simbólica, eles tinham uma experiência de vida tremenda. Chegavam cobertos de piolho, cheirando mal, bêbados, com fome, com falta de ternura e de vínculo amoroso.
A violência não nasce com a pessoa. A violência aprende-se. Eles tinham aprendido essa violência, de modo que reagiam quando um professor os obrigava a fazer algo. Eles batiam nos professores.

E os professores?
Num primeiro dia de aulas, agora vou fazer uma revelação, bati num aluno que me bateu. Ele era mais alto que eu, tinha 14 anos -o Ricardo, que hoje tem 50 anos e é um homem maravilhoso.
Eu fiquei envergonhado daquilo que tive que fazer, mas a partir daí ninguém mais bateu naquela escola. Nem aluno nem professor.
Aquilo que estava instituído a partir do momento em que eu reagi, era o medo. Nunca eles imaginaram que um professor pudesse reagir.

Como a violência deixou de ser rotina na Ponte?
Desse medo inicial ao que Ponte se tornou hoje, há um processo feito com pessoas que compreenderam que não poderíamos continuar com a violência explícita nem com a simbólica, com um paradigma de ensino que faliu.
Encontramos caminhos com alunos, pais e professores. Desse tempo em que precisei reagir até hoje, quando nem com o olhar nós ameaçamos, há todo um processo que deve ser desmitificado.


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