São Paulo, segunda-feira, 14 de junho de 2010

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ANÁLISE

As crianças não gostam das versões amenas, elas anseiam por aventura

NÃO SABEMOS POR QUANTO TEMPO ESSES CONTOS VÃO RESISTIR A "HIGIENIZAÇÕES"

ILAN BRENMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Numa sociedade cada vez mais acelerada, na qual a infância se vê banhada diariamente com linguagens mais empobrecidas de sentidos, a literatura, assim como a música e outras expressões artísticas humanas, sucumbem a olhos vistos a uma ideologia mercantilista, "coisificadora" e, principalmente, "politicamente correta".
As cantigas e os livros infantis politicamente corretos querem nos dar respostas.
Não incitam desejos, os abafam. Querem apaziguamento, e não pensamento que nasce do conflito de ideias.
Buscam esconder e não desvelar. Têm ojeriza ao mistério, querem o plano, o reto, não o circular, não a espiral.
A literatura infantojuvenil de qualidade não garante a felicidade nem a conquista de bens materiais, mas possibilita que nossa mente se torne mais flexível e livre, capaz de compreender a complexidade do mundo visível e invisível, assim contribuindo para que possamos despertar de uma ilusão devoradora da nossa própria alma.
O ataque às histórias não é uma novidade do mundo contemporâneo. Alexander Afanasev (1826-1871), folclorista russo que coletou os contos da tradição oral de seu povo, teve de mudar à força suas versões dos contos de fadas russos para crianças, pois o sumo sacerdote da igreja local considerava os contos imorais.
Afanasev respondeu ao ataque assim: "Há um milhão de vezes mais moralidade, verdade e amor humano em minhas lendas populares que nos sermões proferidos por Vossa Santidade".
Não sabemos por quanto tempo esses contos vão conseguir resistir a seguidas "limpezas" e "higienizações" executadas por novos autores. As alterações nos contos de fadas não pararam de ocorrer na nossa atualidade; a Baba Yaga russa, nossa familiar e temível bruxa, em algumas versões modernas não come mais criancinhas no desjejum, apenas fala sem parar. O Barba Azul, personagem assustador dos contos de Grimm, agora ressuscita suas noivas, aquelas mesmas que ele empalava no quarto proibido.
Versões atuais, preocupadas com a violência, excluem a comilança do lobo, a abertura de sua barriga e a sua morte. Simbolicamente, uma das partes que mais interessa à criança está sendo descartada. Por séculos, os textos dos irmãos Grimm e de Perrault vêm encantando multidões, e nunca ouvimos falar de uma criança que depois de ouvir a "Chapeuzinho Vermelho" tenha saído com uma faca na mão querendo abrir a barriga de alguém.
As crianças não gostam das versões amenas, elas anseiam por aventura, terror, sangue, humor, escatologia, violência, amor etc.
Aliás, há anos circulo pelo Brasil como autor de livros infantojuvenis e existe algo que se repete em todos os espaços que frequento. Quando pergunto às crianças que tipo de história ela querem ouvir, 90% das vezes elas pedem: "Terror! Histórias de terror!". Podemos levantar duas hipóteses: uma é que elas são psicopatas, marginais sanguinárias em gestação; outra, que elas demandam histórias de terror, porque há algo nesse tipo de histórias que se comunica diretamente com o mundo interior dela. Sou favorável à segunda hipótese.


ILAN BRENMAN é doutor em educação pela USP, autor de livros infantis e contador profissional de histórias.



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