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ANÁLISE
As crianças não gostam das versões amenas, elas anseiam por aventura
NÃO SABEMOS POR QUANTO TEMPO ESSES CONTOS VÃO RESISTIR A "HIGIENIZAÇÕES"
ILAN BRENMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Numa sociedade cada vez
mais acelerada, na qual a infância se vê banhada diariamente com linguagens mais
empobrecidas de sentidos, a
literatura, assim como a música e outras expressões artísticas humanas, sucumbem a
olhos vistos a uma ideologia
mercantilista, "coisificadora" e, principalmente, "politicamente correta".
As cantigas e os livros infantis politicamente corretos
querem nos dar respostas.
Não incitam desejos, os abafam. Querem apaziguamento, e não pensamento que
nasce do conflito de ideias.
Buscam esconder e não desvelar. Têm ojeriza ao mistério, querem o plano, o reto,
não o circular, não a espiral.
A literatura infantojuvenil
de qualidade não garante a
felicidade nem a conquista
de bens materiais, mas possibilita que nossa mente se torne mais flexível e livre, capaz
de compreender a complexidade do mundo visível e invisível, assim contribuindo para que possamos despertar de uma ilusão devoradora da nossa própria alma.
O ataque às histórias não é
uma novidade do mundo
contemporâneo. Alexander
Afanasev (1826-1871), folclorista russo que coletou os
contos da tradição oral de
seu povo, teve de mudar à
força suas versões dos contos
de fadas russos para crianças, pois o sumo sacerdote da
igreja local considerava os
contos imorais.
Afanasev respondeu ao
ataque assim: "Há um milhão de vezes mais moralidade, verdade e amor humano
em minhas lendas populares
que nos sermões proferidos
por Vossa Santidade".
Não sabemos por quanto
tempo esses contos vão conseguir resistir a seguidas
"limpezas" e "higienizações"
executadas por novos autores. As alterações nos contos
de fadas não pararam de
ocorrer na nossa atualidade;
a Baba Yaga russa, nossa familiar e temível bruxa, em algumas versões modernas
não come mais criancinhas
no desjejum, apenas fala sem
parar. O Barba Azul, personagem assustador dos contos de Grimm, agora ressuscita suas noivas, aquelas mesmas que ele empalava no
quarto proibido.
Versões atuais, preocupadas com a violência, excluem
a comilança do lobo, a abertura de sua barriga e a sua
morte. Simbolicamente, uma
das partes que mais interessa
à criança está sendo descartada. Por séculos, os textos
dos irmãos Grimm e de Perrault vêm encantando multidões, e nunca ouvimos falar
de uma criança que depois
de ouvir a "Chapeuzinho
Vermelho" tenha saído com
uma faca na mão querendo
abrir a barriga de alguém.
As crianças não gostam
das versões amenas, elas anseiam por aventura, terror,
sangue, humor, escatologia,
violência, amor etc.
Aliás, há anos circulo pelo
Brasil como autor de livros
infantojuvenis e existe algo
que se repete em todos os espaços que frequento. Quando pergunto às crianças que
tipo de história ela querem
ouvir, 90% das vezes elas pedem: "Terror! Histórias de
terror!". Podemos levantar
duas hipóteses: uma é que
elas são psicopatas, marginais sanguinárias em gestação; outra, que elas demandam histórias de terror, porque há algo nesse tipo de histórias que se comunica diretamente com o mundo interior dela. Sou favorável à segunda hipótese.
ILAN BRENMAN é doutor em educação pela
USP, autor de livros infantis e contador
profissional de histórias.
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