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Loucura Globalizada
Autor americano afirma em sua tese que os EUA estão exportando para o mundo seus conceitos e tratamentos de doenças mentais, o que beneficia a indústria farmacêutica e prejudica culturas locais
Chirs Hardy
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O jornalista e escritor norte-americano Ethan Watters
JANAINA LAGE
DA SUCURSAL DO RIO
A influência americana sobre
o comportamento do globo não
está restrita às cadeias de fast
food, aos filmes ou às fábricas
de tênis. O país está exportando
também sua maneira de ver e
tratar as doenças mentais, conforme a tese do jornalista e escritor Ethan Watters.
No livro "Crazy Like Us: The
Globalization of the American
Psyche" (Loucos Como Nós: A
Globalização da Psique Americana), Watters dá exemplos do
avanço de doenças como anorexia, esquizofrenia, depressão
e estresse pós-traumático em
locais como China, Japão, Sri
Lanka e Zanzibar.
O autor mostra como surgiram alguns dos primeiros episódios de anorexia na China:
após a divulgação de um caso,
especialistas ocidentais apresentaram em entrevistas os
sintomas clássicos da doença
nos EUA e rapidamente o distúrbio, nos moldes americanos,
se popularizou no país.
Em entrevista à Folha, Watters conta como as fabricantes
de remédios se beneficiam desse processo. No Japão, uma só
empresa vendeu mais de
US$ 1 bilhão em antidepressivos em 2008. Antes, a doença
era considerada rara no país.
FOLHA - O que o levou a se interessar por doenças mentais?
ETHAN WATTERS - Na década de
1990, escrevi um livro com Richard Ofshe sobre a controvérsia em torno da recuperação da
memória. A psicoterapia americana havia levado mulheres a
relembrar abuso na infância. As
memórias não eram precisas.
Em alguns casos, os fatos nunca
ocorreram. O livro falava sobre
a manipulação de memórias.
A expressão da doença mental é moldada pelo ambiente,
pelo indivíduo e também pelo
responsável pelo tratamento.
Quais sintomas são legítimos
em cada época? Comecei a pensar sobre a globalização e sobre
como os EUA são responsáveis
por categorizar essas doenças e
preconizar seu tratamento.
FOLHA - Quem se beneficia?
WATTERS - As fabricantes de remédios são as que mais se beneficiam, ao fazer com que o
mundo pense de uma mesma
forma sobre doenças mentais.
Elas apresentam o cadeado e
mostram a chave. Claro, muitas
pessoas avaliam que as doenças
mentais devem receber tratamento semelhante em qualquer lugar. Há um elemento
bioquímico que persiste, apesar das diferenças culturais. O
que discuto é que, quando você
desconsidera os aspectos culturais, deixa de apreciar particularidades, como a capacidade
de se adaptar a mudanças.
FOLHA - O sr. dá o exemplo da anorexia em Hong Kong, que originalmente não estava ligada ao medo
de engordar. Se os sintomas não são
iguais, qual é a validade do diagnóstico para o doente?
WATTERS - Se houvesse um medicamento com um único modo de ver a anorexia, faria sentido ter um diagnóstico único.
Não existe um padrão único para a doença. A esperança é entender os indivíduos que apresentam a doença, o ambiente e
sua cultura. A solução única para os casos é problemática.
FOLHA - Quais são as consequências dessa homogeneidade?
WATTERS - Vamos perder as
formas de tratamento de doenças mentais existentes em diferentes culturas. Não estamos
só exportando nossas ideias para o resto do mundo e as impondo. O resto do mundo tem
fome de ideias do Ocidente.
Se nós exportamos nossos
modelos de tratamento e medicamentos, podemos perder informações sobre o ser humano
e sua complexidade que seriam
benéficas para todos nós.
FOLHA - Mas as demais culturas assimilam passivamente o que os EUA
pregam em termos de tratamento?
WATTERS - Não. Há sinais de retrocesso na farta disseminação
de antidepressivos no Japão. Já
existem psiquiatras questionando o uso indiscriminado.
Perguntei a pesquisadores sobre o efeito dessa política de exportação de tratamento e a resposta é que isso é inevitável.
Minha esperança é que isso
possa ser conciliado com um
entendimento local dos casos.
FOLHA - No livro, o sr. relata como
a descrição de casos públicos de
doenças contribuem para a sua popularização, a partir da identificação
do público com os sintomas. O sr. cita a entrevista de Lady Di sobre bulimia e o crescimento posterior no número de casos. Isso não é inevitável?
WATTERS - É complicado, trata-se de um processo inconsciente. Os jornalistas são uma parte
crítica dessa equação. Onde começa a responsabilidade de
narrar histórias sobre novas
doenças? Não digo que se deve
reter informação, mas não é
uma resposta simples.
Se considerarmos tópicos tabus, como o suicídio, há regras.
Deveria haver um cuidado similar com as doenças mentais.
É preciso que editores e repórteres discutam, quando vão
descrever um novo tipo de
comportamento autodestrutivo. Existe incidência significativa? É uma discussão válida.
FOLHA - O sr. mostra como os psiquiatras que chegaram ao Sri Lanka
logo após o tsunami não levaram
em conta as necessidades locais,
mas achavam que estavam fazendo
o melhor ao oferecer tratamento
para estresse pós-traumático.
WATTERS - A mensagem que
eles apresentaram é que detinham o aparato e a experiência
para entender o que aconteceu,
e que a população precisava do
conhecimento ocidental.
É uma mensagem destrutiva.
Existem crenças próprias e
uma capacidade de superação
na cultura local que ajudam a lidar com essa situação. É uma
ideia particularmente americana, a de que somos capazes de
entender o significado do estresse pós-traumático.
FOLHA - O sr. encontrou algum
exemplo recente na América do Sul?
WATTERS - Encontrei o aumento do consumo de antidepressivos na Argentina, em um cenário de hiperinflação. Os anúncios sugeriam que era um tempo de ansiedade e as pílulas deveriam ser usadas para suportar o ambiente econômico. A
América do Sul já sofre uma
grande influência sobre doenças mentais, não só dos EUA
como da Europa.
FOLHA - Após a explosão da crise,
esse aumento de vendas está mais
visível em outros países?
WATTERS - Quando estava terminando o livro, houve a explosão da crise, e quase instantaneamente vi empresas tentando vender remédios contra suicídio e depressão.
A instabilidade econômica
pode levar a um aumento da
ansiedade, mas a questão do livro é que não há um jeito único
para o ser humano expressar
psicopatologias. A crise pode
aumentar a incidência, mas a
mente humana e a consciência
agem de maneiras distintas.
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