São Paulo, domingo, 02 de agosto de 2009

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Contra a dor, um vício

A bancária Lídia Rita Ucci, 49, ficou dependente de remédios opioides depois que foi medicada com um deles em uma internação hospitalar

Marisa Cauduro/Folha Imagem
Lídia Rita Ucci, que foi tratada com o analgésico meperidina por quatro meses durante uma internação no hospital e, depois que parou de usá-los, sofreu crises de abstinência muito intensas

JULLIANE SILVEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL

Quando se trata do poder de causar dependência, os opioides encabeçam a lista de todas as drogas. Entre eles, os mais fortes são a heroína e a meperidina (um opioide sintético usado em centros de emergência para controle de dor).
A bancária aposentada Lídia Rita Ucci, 49, não sabia disso quando foi internada em um hospital de câncer por quatro meses para investigar dores abdominais que não passavam com nenhum tratamento.
Há dez anos, teve um cálculo renal, procurou um pronto-socorro e tratou o problema. Ao voltar para casa, a dor forte persistiu por vários dias. O sangramento na urina e o incômodo no abdômen não paravam.
Foi internada e recebeu meperidina -mesmo princípio ativo do Demerol, um dos remédios nos quais o cantor Michael Jackson, por exemplo, era viciado. "Não sabia o que estava tomando, mas não me importava, era a única coisa que melhorava minha dor", conta. Indagados sobre qual remédio era aplicado, os profissionais diziam que era uma "solução".
No quarto mês, começou a se sentir mal. Acordava completamente suada, com o lençol encharcado. Sentia frio e calor ao mesmo tempo. O motivo era a redução da dose da droga. "Perguntava por que passava mal, mas ninguém falava. Não queriam que eu associasse o mal-estar ao remédio." Em casa, não conseguia levantar da cama, sentia tonturas e enjoos fortes.
Então, ela foi a outro hospital, reclamando das dores insistentes. Voltou a receber opioides, e os incômodos cessaram. "Comecei a perceber que ficava melhor com o remédio. Se não tomava, ficava muito mal."
Sempre que retornava para casa, os sintomas reapareciam. Após três internações no mesmo hospital, os médicos passaram a desconfiar das dores. Para eles, Lídia estava forjando os sintomas para receber opioides. Foi quando ouviu falar da possibilidade de dependência desse tipo de remédio.
"Eu já estava viciada. Fiquei arrasada, senti que eu tinha me traído. Nunca tinha ouvido falar de vício em morfina. Sabia que o Elvis Presley era viciado em remédio, conhecia essas coisas que você vê em artistas, mas que nunca acontecem com alguém ao seu lado."
Lídia passou a achar que não tinha um problema de saúde, mas sim uma dependência muito grave. "Comecei a acreditar que as dores ocorriam por causa do vício. Se vários médicos falam, você acaba acreditando", diz.
Sua mãe também passou a acreditar nos médicos. "Eles a chamavam num canto e diziam que eu queria me internar por causa dos remédios. Ela falava para mim que eu não estava doente coisa nenhuma."
Procurou, então, um médico que a ajudou a lidar com o problema e a incentivou a buscar outros especialistas para descobrir o que tinha. Soube que as crises de abstinência dos opioides também são das mais fortes e que precisaria controlá-las com medicamento -um outro opioide, com efeitos mais suaves nos organismo.
Consultou-se em outro hospital e o diagnóstico veio alguns meses depois: as dores eram causadas por uma vasculite, doença crônica caracterizada por inflamação em vasos sanguíneos. Com o tratamento correto, as dores cessaram.
No entanto, a dependência continuou. Naquela época (por volta de 2005), ela precisava consumir diariamente quatro comprimidos de um tipo de opioide mais leve para evitar as crises de abstinência.
Aos poucos, Lídia foi reduzindo espontaneamente o número de drágeas que consome por dia. Hoje, ingere meio comprimido. "Acho que tenho uma dependência mais psicológica do que física", alega.
Ainda assim, acha muito difícil largar totalmente o remédio -já fez o teste e os sintomas voltaram. "Isso me incomoda muito. Jamais pensei em me render ao vício, mas sei que é difícil. Quem quer passar mal? Você não aguenta ficar com uma dor de cabeça! Mas, com força de vontade, é possível e estou conseguindo", diz.
Lídia tem outro cálculo no rim. No entanto, não cogita a possibilidade de mexer nele. Como a dor seria muito forte, acredita que teria de usar opioides mais fortes novamente. "Não precisei ser internada desde 2005, mas, se precisar, vou suportar a dor até o limite, tentar usar outros analgésicos. Quero me livrar desse remédio. Nasci sem precisar de nada, não vou morrer usando."

Analgésicos
A meperidina deve ser usada somente em casos emergenciais, pelo seu alto poder de causar dependência, diz Claudio Corrêa, coordenador do Centro de Dor e Neurocirurgia Funcional do Hospital 9 de Julho. No caso de Lídia, o equívoco foi oferecer-lhe o medicamento por tempo prolongado. "Se o médico não tem conhecimento e não tem noção do perigo, fica muito difícil retirar o medicamento do paciente."
Corrêa afirma, porém, que o uso controlado de morfina e seus derivados é seguro. "Esses medicamentos são espetaculares quando usados de forma correta. O paciente deve exigir a presença de um médico com formação para quadros de dor crônica", aconselha.
Quadros de dores muito intensas, como alguns tumores na região abdominal ou nas articulações, podem exigir o uso desses medicamentos, os mais potentes. Em outros casos, pode ser necessária uma avaliação psicológica para estimar as chances de o paciente se tornar dependente do remédio.
"É preciso avaliar o histórico de dependência a qualquer substância e de dependência na família, se faz algum tipo de tratamento psiquiátrico. Nesses casos, o olho clínico deve ser mais crítico", afirma o psiquiatra Marcelo Niel, pesquisador da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).


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