São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 2011

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MINHA HISTÓRIA LÚCIO PEDROSA, 49

O choque prejudicou minha memória de maneira arrasadora
Não me lembro nem da decisão do Campeonato Mineiro, com o Cruzeiro, meu time
Estou perdendo parte da minha vida, fico na mão de quem me conta o que esqueci


Fotos Letícia Moreira/Folhapress
O engenheiro Lúcio Pedrosa, 49, que tem transtorno
bipolar e foi submetido a 33 sessões de "choque"


RESUMO
O engenheiro civil Lúcio Pedrosa, 49, diagnosticado com transtorno bipolar, passou por 33 sessões de eletrochoque na tentativa de resolver o seu problema.
Saiu do tratamento sem obter nenhuma melhora e com importantes falhas de memória, que persistem desde o fim das sessões, em outubro do ano passado.
Além da memória recente, Lúcio perdeu a lembrança de fatos importantes de sua história de vida. Com a ajuda da família para lembrá-lo, ele conta o que passou com a terapia.


IARA BIDERMAN
DE SÃO PAULO

Tive um surto psicótico em 1998. Essa é uma das coisas da minha vida de que me lembro bem. Tinha alucinações e fobia. Medo.
Antes disso, nunca tinha acontecido nada, nenhum sinal. Sou engenheiro civil, mas trabalhava como sócio-proprietário em uma transportadora. Era vida normal até o surto. Larguei o trabalho para a internação e o tratamento, não voltei mais.
Nesses últimos 13 anos, fiquei mudando de diagnóstico e tratamento, uma série de tentativas e erros.
O último diagnóstico foi de transtorno bipolar. O médico começou a mudar os remédios, mas chegou a um ponto que eu achei que ia surtar. Foi então que me disseram para fazer o eletrochoque.
A Regina, minha mulher, disse que era a esperança de que eu me curasse. O tratamento pode ser bom para outras pessoas, mas para mim foi péssimo: benefício zero e prejudicou minha memória de maneira arrasadora.
Os médicos não me explicaram como seria. Parece que disseram para mim que, se não melhorasse, não ia piorar. Isso eu não me lembro, foi o Querley, o motorista da empresa, que se tornou meu amigo e me levava para as sessões, que me disse.
Passei praticamente o ano passado inteiro fazendo ECT [eletroconvulsoterapia]. Primeiro, foram oito sessões, sem resultado. Sugeriram continuar. Fiz mais de 30.

BOI NO MATADOURO
Quando você vai para a sessão, o ambiente é muito sombrio. Me sentia um boi no matadouro, mas continuava, meio no embalo. Via tanta gente fazendo, devia ter alguma coisa de bom.
O ambiente era tenso, ninguém conversava. Vem a enfermeira, pega a veia da gente, põe na maca, a médica aplica o anestésico. Quando você já está anestesiado, dá o choque, tira a maca do quarto e chama outro.
O pior de tudo é a volta, a sensação de vazio. Eu me sentia sem chão, tinha vontade de voltar a ser eu, mas estava ali inerte, entregue.
O que me contam, porque dessa parte eu não me lembro, é que, nas primeiras sessões, eu saía bem fisicamente. Mas o meu quadro não estava melhorando, continuava na mesma: irritabilidade, angústia, mania, depressão.
Quando eu estava na segunda série de eletrochoques, falei que estava me sentindo pior, mas os médicos diziam: "Vamos tentar, que às vezes melhora".
As últimas sessões foram as piores. Era dia sim, dia não. O Querley me levava aqui de Cachoeira do Campo [distrito de Ouro Preto] até Belo Horizonte. Ele conta que eu voltava com a cabeça pendurada, não conseguia nem acertar o cigarro na boca, chorava muito.
Pedi para parar [o tratamento] porque não estava suportando mais. Os médicos concordaram. Também mudei de médico. Ele está fazendo um ajuste nas doses dos remédios que tomo.
Estou com uma preguiça mental muito grande, tenho dificuldade para me concentrar. Acho que ficar quase 13 anos na profissão de doente é que fez isso.
Mas só perdi a memória depois do eletrochoque. Os médicos dizem que você só perde a memória recente, mas comigo não é assim.
Estou perdendo parte da minha vida. A Regina veio me falar de uma viagem que fizemos para Itacaré, na Bahia, mas não me lembro. Nem da Copa do Mundo ou da decisão do Campeonato Mineiro em 2009, com o Cruzeiro, meu time, que dizem que eu assisti aqui em casa.
Aqui em Cachoeira [do Campo], todo mundo sabe da vida de todo mundo, mas não me lembro que fulano de tal morreu, que o outro mudou de cidade.
Estou na mão das pessoas que me informam, contam o que eu esqueci. Fico em casa me abastecendo com meus "HDs", que são a minha mulher e as minhas filhas.
Às vezes acho que a "minha história" não existe, porque não me lembro, tenho que ouvir as outras pessoas dizendo o que aconteceu para eu poder contar.

PLANTÃO MÉDICO
O colunista JULIO ABRAMCZYK está em férias.



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