São Paulo, domingo, 20 de setembro de 2009

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HISTÓRIA

Ela quer voltar a andar

Vítima de lesão cerebral em um acidente de carro sem o cinto de segurança, Jacqueline Rafael, 14, trabalha há três anos em sua reabilitação

Leonardo Wen/Folha Imagem
Jacqueline Ariane Rodrigues Rafael faz
sessão de fisioterapia na AACD, em São Paulo


JULLIANE SILVEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL

Jacqueline Ariane Rodrigues Rafael, 14, aprendeu a usar uma agenda para ajudá-la a se lembrar das atividades do dia e a se localizar no tempo. Anota ali as sessões semanais de fonoaudiologia, fisioterapia, terapia ocupacional, hidroginástica e música que frequenta na AACD (Associação de Assistência à Criança Deficiente) de São Paulo desde setembro passado. A menina sofreu um acidente de carro em 2006. Estava no banco de trás com a irmã mais nova -ambas sem cinto de segurança. A irmã e a mãe, que também estava no carro, não sofreram ferimentos graves. Mas o pai morreu ao volante e ela teve traumatismo craniano e ficou em coma por um mês. O trauma causou comprometimentos motores do lado direito do corpo e a deixou seis meses sem poder se movimentar. Nesse período no hospital, Jacqueline também não conseguia falar e não apresentava nenhuma expressão facial. A única forma de comunicação -pelos olhos- era feita apenas com a mãe, a dona de casa Marli de Macedo Galvão Rafael, 32: uma piscada queria dizer não, duas significavam sim. Cerca de oito meses após o acidente, ela começou a se expressar facialmente (para mostrar o que a incomodava e o que a fazia bem) e voltou a rir. Depois, treinava a fala, repetindo o que ouvia dos outros. Ainda em 2006, teve uma passagem breve pela AACD -na época, era dependente para todas as funções, menos para comer. No entanto, pela dificuldade de transporte para vir de Itapetininga (interior de São Paulo), onde morava, teve de desistir do tratamento. Até voltar à instituição, apresentou uma evolução lenta, segundo sua mãe. Hoje, morando em São Caetano do Sul, ela consegue frequentar a associação duas vezes por semana. O programa de reabilitação e a convivência com outras crianças ajudaram na recuperação. "Até então, ela era muito fechada em si", conta Marli. O acidente trouxe alguns problemas cognitivos, principalmente de memória. A agenda é essencial porque a garota tem dificuldade de fixar informações recebidas ao longo do dia -apesar de não ter perdido as habilidades de leitura e escrita. É no caderninho, que também funciona como diário, que ela copia e escreve poesias e faz outras anotações. Entre os registros, estão os filmes a que assiste no DVD e os passeios que faz ao shopping com as irmãs e as amigas. Nessas ocasiões, ela troca o andador pela cadeira de rodas, mais confortável. Em casa, conta sua mãe, não há moleza: o aparelho tem que ser usado sempre, pois tem papel importante na recuperação dos movimentos.

Acidentes evitáveis
Jacqueline integra as estatísticas sobre as principais causas de lesões encefálicas dos pacientes atendidos pela AACD. Um estudo apresentado no mês passado no Congresso Internacional de Medicina de Reabilitação, em São Paulo, avaliou 602 pacientes de um a 16 anos atendidos de 1995 a 2009. A maioria das lesões foram causadas por atropelamentos (37%), acidentes de carro (27%) e quedas (23%). De acordo com a fisiatra Gláucia Somensi, responsável pelo levantamento, 90% dessas lesões poderiam ter sido evitadas. Entre os pacientes adultos, as principais causas de lesões cerebrais adquiridas também poderiam ter sido prevenidas. Dos atendidos pela AACD, 75%, em média, tiveram o problema decorrente de um derrame cerebral. São tratados por ano cerca de 300 adultos com lesões cerebrais adquiridas. "As principais causas são hipertensão e tabagismo. A maioria não controla os fatores de risco que são modificáveis", lamenta Milene Ferreira, fisiatra e coordenadora da Clínica de Lesão Encefálica Adquirida. Os traumatismos cranianos respondem por 20% dos atendimentos e ocorrem principalmente por acidentes de moto e de carro. "Os pacientes são jovens, com idade média de 34 anos. A causa é absolutamente evitável, mas a maioria não usa ou usa de forma errada o cinto de segurança ou o capacete."

Recuperação
As conquistas de Jacqueline ocorrem gradativamente. Hoje, consegue apoiar o corpo na perna direita com a ajuda do andador e vai para todo lado com o aparelho. "Ela sempre teve força de vontade e quis superar limites", diz a mãe. A vontade exacerbada já rendeu algumas quedas: antes de migrar para o andador, tentava alcançar, da cadeira de rodas, objetos caídos no chão. Ela usa órteses (dispositivos de sustentação) nas pernas para facilitar os movimentos e recebeu aplicações de toxina botulínica para relaxar os membros inferiores -seus pés tendiam a se posicionar para dentro, dificultando a mobilidade. Também adquiriu independência em outras áreas: não precisa mais de fraldas e diz, empolgada, que voltará para a escola no ano que vem. Jacqueline passou três meses em uma escola especial, fazendo uma série de testes. Ao final do período, recebeu a notícia de que poderá estudar em um colégio regular, como antes. Frequentará o sexto ano do ensino fundamental -não precisará repetir a série que cursava na época do acidente. No entanto, ainda que a evolução seja boa e que o programa de reabilitação seja intenso, ela terá de conviver com limitações para o resto da vida. "Quando há uma lesão encefálica, nunca mais haverá uma completa recuperação. Tratamos e reabilitamos na instituição, e a pessoa aprende a voltar à sua vida, respeitando as suas limitações", diz Eduardo de Almeida Carneiro, diretor-presidente da AACD. Jacqueline duvida. "Ela nunca me perguntou se vai voltar a andar. Ela afirma que vai voltar a caminhar", diz a mãe.


Colaborou CLÁUDIA COLLUCCI , da Reportagem Local


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