São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 2008

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HISTÓRIA

"Quero manter o sonho de tocar com 1 ou 2 dedos"

O pianista João Carlos Martins encara 9ª cirurgia

Fotos Caio Guatelli
Detalhe das mãos do pianista, que usa principalmente os polegares e o indicador esquerdo para tocar

AMARÍLIS LAGE
DA REPORTAGEM LOCAL

O ano era 1908 e a cidade, Braga (Portugal). Aos dez anos, José Martins sempre parava, a caminho do trabalho, diante de uma janela. Era atraído pela música -dentro da casa, uma mulher dava aulas de piano. Ela o chamou e disse que o ensinaria a tocar. Três dias antes da primeira aula, porém, o menino perdeu um dedo da mão direita num acidente de trabalho.
Não aprendeu a tocar piano, mas fez questão de que seus quatro filhos aprendessem. O caçula é João Carlos Martins, o pianista e maestro que alcançou precocemente fama internacional, é considerado um dos maiores intérpretes de Bach do mundo e que, aos 26 anos, por causa da queda em um jogo de futebol, perdeu parte dos movimentos da mão direita.
O acidente foi o primeiro de uma série de obstáculos que Martins precisou enfrentar para continuar tocando. Ele teve LER (lesão por esforço repetitivo), tirou um nódulo na mão esquerda e, durante um assalto na Bulgária, sofreu uma lesão cerebral que afetou o movimento da mão direita. Além disso, por questões hereditárias, tem deformações articulares nos dedos.
Na próxima sexta-feira, enfrentará mais um: passará por uma cirurgia -a nona nas mãos- para alongar um tendão. A meta é reverter um problema que surgiu neste ano: um desvio no punho direito.
Com 68 anos e as duas mãos praticamente fechadas, Martins ainda pratica diariamente, além de manter uma agenda intensa de apresentações. No piano, usa apenas os dois polegares e o indicador esquerdo. Adaptou-se às limitações físicas. Mas o esforço, observa, está maior a cada dia.
Na última quinta-feira, após falar e tocar para gerentes do Banco do Brasil, numa palestra sobre superação, queixou-se com a equipe que o acompanhava: mal havia conseguido tocar a "Ave Maria" de Gounod.
O problema, diz, é que a mão direita, mais comprometida, começou a ficar torta para fora. Com freqüência, ele faz força para trazer a mão à posição normal. Nessas horas, cerra os olhos e os dentes devido à dor.
Destro, enfrenta problemas também quando não está tocando. "Toda manhã, o meu desafio é fazer a barba. Cada dia é um pouco mais complicado, mas eu não abro mão. Na hora que termino, falo: o primeiro desafio eu venci."
O segundo, conta rindo, é deixar cair o sabonete no banho -quando isso ocorre, sua estratégia de usar os dedos como pinças não é eficaz. "Eu sei que existem aqueles para prender na mão", diz. Mas ele se recusa a usar objetos adaptados.
A exceção é o carro automático. "Tento usar o jogo do contente", conta Martins. "Dirigir dói. Mas, pelo menos, posso usar a vaga para deficiente físico." Nem sempre, porém, o jogo funcionou. "Em alguns momentos, cheguei a pensar em morrer. Era imaturidade."

Cirurgia
No procedimento, será feito um alongamento de tendão -a meta é que, assim, Martins consiga flexionar a mão direita para dentro novamente. "Esse desvio está começando a me impedir de alcançar o polegar na tecla. E, pelo menos o sonho de tocar com um ou dois dedos, eu quero manter até morrer."
Na mão esquerda, será aplicado botox, para que ele consiga estender os dedos. Atualmente, dois deles ficam tão flexionados que as unhas machucam a palma da mão.
A idéia é avaliar a reação ao botox para, em fevereiro, operar também a mão esquerda. "Na direita, não há muito a fazer. Nunca mais poderei tocar normalmente com ela. Na esquerda, nunca vai morrer a minha esperança de um dia poder tocar. Por isso, nela, qualquer intervenção deve ser perfeita."
Martins passou anos tocando só com a mão esquerda depois que precisou seccionar um nervo da direita -a medida buscava diminuir as dores que ele sentia na região, tão fortes que ele precisava tomar morfina.
Até que a esquerda começou a ficar inchada. Em 2002, o problema foi tão intenso que ele precisou cancelar uma apresentação em Paris. Descobriu que sofria de uma doença chamada contratura de Depuytren, na qual a formação de nódulos leva à contração dos dedos. Somada à LER, a doença o impediu de continuar tocando.
A volta à música foi por meio da regência, que Martins começou a estudar em 2003, aos 63 anos. A nova fase foi acompanhada pela criação das orquestras Bachiana Filarmônica e da Bachiana Jovem, formada por moradores da periferia e voltada à formação de novos músicos. Para reger, usa luvas, que mantêm suas mãos abertas.
"O meu maior projeto, a luz no fim do túnel, é deixar um projeto de inclusão por meio da música", afirma o pianista.
Pergunto se sua meta é achar um novo João Carlos Martins. Ele sorri: "Já encontrei alguns."


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