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HISTÓRIA
60 anos de música, 23 com câncer
O maestro André
Infanti, 71, segue
regendo enquanto
enfrenta a doença
que já o levou 23
vezes à mesa de
cirurgia e sobre a
qual falou apenas
a familiares mais
próximos; "gosto é de alegria", explica
Ricardo Nogueira/Folha Imagem
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André Infanti, 71, toca no anfiteatro do Sindicato dos Trabalhadores Portuários, em Santos (SP)
FLÁVIA MANTOVANI
EDITORA-ASSISTENTE DO EQUILÍBRIO
Como de costume, o maestro
colocou seu smoking. Regeu
durante quatro horas um concerto clássico, com orquestra
de câmara e coral. O evento era
em uma igreja de Santos, onde
mora. A apoteose foi com a
"Aleluia" de Handel, "a coisa
mais linda", conta. Empolgou-se, como sempre. "Eu sinto a
música. Se estou regendo Mozart, parece que ele está comigo", descreve. Quando terminou, a parte interna do paletó
estava tingida de sangue.
André Infanti, 71, tinha passado por uma cirurgia complexa três dias antes -uma das 23
às quais se submeteu nos últimos 23 anos. Ainda tinha os
pontos e estava cheio de drenos. Passou mal no dia seguinte, mas sentiu-se feliz por ter
cumprido o compromisso e feito o que gosta. Não contou da
sua doença a ninguém.
De fato, ele não gosta de falar
sobre o problema -um lipossarcoma no retroperitônio, tumor raro na região abdominal,
perto dos rins, a mesma doença
do vice-presidente, José Alencar. Mesmo tendo descoberto o
problema há mais de 20 anos,
muitos dos conhecidos de André não sabem dela. "Contei só
para minha mulher, minha filha, meus irmãos. Eu falo de tudo, mas procuro não falar de
doença. Não gosto de causar sofrimento nas pessoas, eu gosto
é de alegria", justifica.
E é assim, com otimismo, que
ele lida com a realidade de seu
câncer. O maestro conta que tinha esse espírito desde o início,
quando descobriu o problema
após ser tratado por três anos
como tendo apenas uma gastrite. "Eu tinha muita febre, uma
dor insuportável, não sabia
nem onde estava. Mas sou
guerreiro, aguentava", afirma.
Quando chegou ao hospital, o
médico quis operá-lo no dia seguinte, pois o caso era grave. O
tumor tinha seis quilos. Desde
então, ele precisou se submeter
a cirurgias, em média, uma vez
por ano. "Essa doença parece
uma trepadeira, que vai tomando conta do organismo", define
ele. ""É como uma erva daninha", completa sua mulher,
Marília Mussi dos Santos, 62,
com quem é casado há 29 anos.
O diretor de cirurgia pélvica
do Hospital A. C. Camargo,
Ademar Lopes, que acompanha
André, explica que o problema
é que o tumor fica encostado
em estruturas importantes, como a artéria aorta e a coluna.
"Por isso, não conseguimos
retirar bastante tecido normal
no contorno [por segurança],
então a possibilidade de retorno é grande. Quando ele aparece na coxa, por exemplo, longe
de órgãos nobres, conseguimos
controlar melhor. É um tumor
bastante grave, pelo tamanho e
pela localização", afirma, completando que, no caso do maestro, a cirurgia é a melhor forma
de tratamento.
As operações, em princípio
pagas por ele e hoje custeadas
pelo SUS, foram todas longas,
de nove ou dez horas. "Saio todo encolhido, amarelo, magrinho. Quem olha fala: "Esse não
vai vingar". Mas no segundo dia
eu já estou dando a volta no
quarteirão, passeio, visito outros doentes. Não me entrego."
Em muitos casos, foi necessário retirar algum órgão do
corpo, que fora invadido pelo
câncer. André ficou sem um
dos rins, o baço, alguns músculos, três quartos do intestino e
um pedaço do pâncreas.
Apesar de isso não prejudicar
muito sua qualidade de vida, ele
diz que tem algumas limitações. "No caso do intestino, tudo o que como a mais não me
faz muito bem. Tenho que tomar muita água por ter apenas
um rim, tomo de dois a três litros por dia. Se Deus nos fez
com todos os órgãos, duas vistas, dois rins, quando tiram um
nunca é como se tivesse os
dois", afirma.
Mas ele ficou preocupado
mesmo foi quando soube que
perderia uma parte do diafragma. "Pensei que sentiria falta,
pois, para reger, preciso falar,
cantar para os meus alunos",
explica. Surpreendentemente,
a retirada não atrapalhou sua
habilidade com o canto lírico.
"Lógico que quando eu era moço meu timbre de voz era mais
forte. Mas a cirurgia foi perfeita, continuo conseguindo cantar", afirma.
Música
Enquanto se recuperava de
um dos procedimentos, uma
orquestra se apresentou no
hospital em que ele estava e,
depois de ensaiar um contracanto na porta do quarto, para
acompanhar a música, o maestro foi chamado para regê-la.
"Eu estava com dreno em um
monte de lugar e estava tão
chateado, na cama, que não
conseguia me levantar. Mas comecei a ouvir a música e aquilo
me levantou, sabe?"
André chegou a ficar cinco
anos sem trabalhar, pois não
conseguia levantar os braços
devido às cirurgias. "Mas agora
está tudo normal, o que aparece
eu faço. A música faz parte da
minha vida. São mais de 60
anos, não adianta, eu vou morrer com ela."
O primeiro instrumento que
o maestro ganhou foi uma gaita, de uma professora, quando
tinha sete anos de idade. "No
dia seguinte já tocava", lembra.
Aos 14 anos, já estava regendo.
Toca órgão, teclado, piano, contrabaixo, guitarra e acordeão
-o instrumento no qual mais
se destacou.
Foi diretor por 29 anos de
um conservatório que levava
seu nome, em São Paulo, e diz
que já teve milhares de alunos.
Timidamente, enquanto conversa com a repórter, vai desfilando o nome das pessoas para
quem já deu aula: grandes talentos da música clássica, artistas populares, professores de
conservatórios, médicos renomados e até o cantor Roberto
Carlos, na época em que formava o grupo musical RC Trio.
A filha de André, Mariana,
26, também canta e toca vários
instrumentos. Quando seu pai
descobriu o câncer, ela tinha
apenas quatro anos. Um médico chegou a dizer ao maestro
que ele teria apenas mais um
mês de vida. "Ele chorava porque achava que não veria a filha
crescer", lembra Marília.
"A Mariana quer ir para São
Paulo estudar cinema. Você
precisa ver como ela canta: não
dá uma nota para frente nem
para trás", conta o pai, orgulhoso. "Vê-la crescer era meu
maior sonho. E sei que ainda
vou vê-la se casar e ter meus
netos", garante.
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