São Paulo, domingo, 24 de janeiro de 2010

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HISTÓRIA

60 anos de música, 23 com câncer

O maestro André Infanti, 71, segue regendo enquanto enfrenta a doença que já o levou 23 vezes à mesa de cirurgia e sobre a qual falou apenas a familiares mais próximos; "gosto é de alegria", explica

Ricardo Nogueira/Folha Imagem
André Infanti, 71, toca no anfiteatro do Sindicato dos Trabalhadores Portuários, em Santos (SP)

FLÁVIA MANTOVANI
EDITORA-ASSISTENTE DO EQUILÍBRIO

Como de costume, o maestro colocou seu smoking. Regeu durante quatro horas um concerto clássico, com orquestra de câmara e coral. O evento era em uma igreja de Santos, onde mora. A apoteose foi com a "Aleluia" de Handel, "a coisa mais linda", conta. Empolgou-se, como sempre. "Eu sinto a música. Se estou regendo Mozart, parece que ele está comigo", descreve. Quando terminou, a parte interna do paletó estava tingida de sangue.
André Infanti, 71, tinha passado por uma cirurgia complexa três dias antes -uma das 23 às quais se submeteu nos últimos 23 anos. Ainda tinha os pontos e estava cheio de drenos. Passou mal no dia seguinte, mas sentiu-se feliz por ter cumprido o compromisso e feito o que gosta. Não contou da sua doença a ninguém.
De fato, ele não gosta de falar sobre o problema -um lipossarcoma no retroperitônio, tumor raro na região abdominal, perto dos rins, a mesma doença do vice-presidente, José Alencar. Mesmo tendo descoberto o problema há mais de 20 anos, muitos dos conhecidos de André não sabem dela. "Contei só para minha mulher, minha filha, meus irmãos. Eu falo de tudo, mas procuro não falar de doença. Não gosto de causar sofrimento nas pessoas, eu gosto é de alegria", justifica.
E é assim, com otimismo, que ele lida com a realidade de seu câncer. O maestro conta que tinha esse espírito desde o início, quando descobriu o problema após ser tratado por três anos como tendo apenas uma gastrite. "Eu tinha muita febre, uma dor insuportável, não sabia nem onde estava. Mas sou guerreiro, aguentava", afirma.
Quando chegou ao hospital, o médico quis operá-lo no dia seguinte, pois o caso era grave. O tumor tinha seis quilos. Desde então, ele precisou se submeter a cirurgias, em média, uma vez por ano. "Essa doença parece uma trepadeira, que vai tomando conta do organismo", define ele. ""É como uma erva daninha", completa sua mulher, Marília Mussi dos Santos, 62, com quem é casado há 29 anos.
O diretor de cirurgia pélvica do Hospital A. C. Camargo, Ademar Lopes, que acompanha André, explica que o problema é que o tumor fica encostado em estruturas importantes, como a artéria aorta e a coluna.
"Por isso, não conseguimos retirar bastante tecido normal no contorno [por segurança], então a possibilidade de retorno é grande. Quando ele aparece na coxa, por exemplo, longe de órgãos nobres, conseguimos controlar melhor. É um tumor bastante grave, pelo tamanho e pela localização", afirma, completando que, no caso do maestro, a cirurgia é a melhor forma de tratamento.
As operações, em princípio pagas por ele e hoje custeadas pelo SUS, foram todas longas, de nove ou dez horas. "Saio todo encolhido, amarelo, magrinho. Quem olha fala: "Esse não vai vingar". Mas no segundo dia eu já estou dando a volta no quarteirão, passeio, visito outros doentes. Não me entrego."
Em muitos casos, foi necessário retirar algum órgão do corpo, que fora invadido pelo câncer. André ficou sem um dos rins, o baço, alguns músculos, três quartos do intestino e um pedaço do pâncreas.
Apesar de isso não prejudicar muito sua qualidade de vida, ele diz que tem algumas limitações. "No caso do intestino, tudo o que como a mais não me faz muito bem. Tenho que tomar muita água por ter apenas um rim, tomo de dois a três litros por dia. Se Deus nos fez com todos os órgãos, duas vistas, dois rins, quando tiram um nunca é como se tivesse os dois", afirma.
Mas ele ficou preocupado mesmo foi quando soube que perderia uma parte do diafragma. "Pensei que sentiria falta, pois, para reger, preciso falar, cantar para os meus alunos", explica. Surpreendentemente, a retirada não atrapalhou sua habilidade com o canto lírico. "Lógico que quando eu era moço meu timbre de voz era mais forte. Mas a cirurgia foi perfeita, continuo conseguindo cantar", afirma.

Música
Enquanto se recuperava de um dos procedimentos, uma orquestra se apresentou no hospital em que ele estava e, depois de ensaiar um contracanto na porta do quarto, para acompanhar a música, o maestro foi chamado para regê-la. "Eu estava com dreno em um monte de lugar e estava tão chateado, na cama, que não conseguia me levantar. Mas comecei a ouvir a música e aquilo me levantou, sabe?"
André chegou a ficar cinco anos sem trabalhar, pois não conseguia levantar os braços devido às cirurgias. "Mas agora está tudo normal, o que aparece eu faço. A música faz parte da minha vida. São mais de 60 anos, não adianta, eu vou morrer com ela."
O primeiro instrumento que o maestro ganhou foi uma gaita, de uma professora, quando tinha sete anos de idade. "No dia seguinte já tocava", lembra. Aos 14 anos, já estava regendo. Toca órgão, teclado, piano, contrabaixo, guitarra e acordeão -o instrumento no qual mais se destacou.
Foi diretor por 29 anos de um conservatório que levava seu nome, em São Paulo, e diz que já teve milhares de alunos. Timidamente, enquanto conversa com a repórter, vai desfilando o nome das pessoas para quem já deu aula: grandes talentos da música clássica, artistas populares, professores de conservatórios, médicos renomados e até o cantor Roberto Carlos, na época em que formava o grupo musical RC Trio.
A filha de André, Mariana, 26, também canta e toca vários instrumentos. Quando seu pai descobriu o câncer, ela tinha apenas quatro anos. Um médico chegou a dizer ao maestro que ele teria apenas mais um mês de vida. "Ele chorava porque achava que não veria a filha crescer", lembra Marília.
"A Mariana quer ir para São Paulo estudar cinema. Você precisa ver como ela canta: não dá uma nota para frente nem para trás", conta o pai, orgulhoso. "Vê-la crescer era meu maior sonho. E sei que ainda vou vê-la se casar e ter meus netos", garante.


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