São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2008

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Aos 13 anos, ela dribla o preconceito

Emelly Godinho, que tem grave ressecamento da pele, conta que não precisa mais trocar doces por companhia na escola

JULLIANE SILVEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL

Para acabar com a falta de amigos na escola, Emelly dava uma bala por dia a uma colega e, em troca, garantia companhia durante os intervalos.
Ela nasceu com hiperqueratose epidermolítica, um tipo de ictiose, doença congênita que modifica a reprodução das células da pele. No problema da garota, a troca de pele é mais acelerada, o que causa ressecamento e engrossamento exacerbado da cútis, descamação e bolhas. Distribuir doces durante aquela primeira série era, então, a solução temporária para a distância que os outros alunos mantinham por causa de sua doença permanente -a hiperqueratose não tem cura.
Emelly Godinho Martins, hoje com 13 anos, tinha receio de sair de casa. "Achava que era a única no mundo com o problema, todos me encaravam", conta. Ainda assim, tentava disfarçar com seu jeito espontâneo. A direção da escola que chegou a rejeitar sua matrícula por causa do problema de pele, sugerindo um colégio para crianças com necessidades especiais, rendeu-se à esperteza da menina. "Depois me disseram que aprendiam com ela", diz a autônoma Marli Godinho da Silva, 42, orgulhosa da filha.
Foi nessa época, quando tinha sete anos, que Emelly participou de seu primeiro acampamento, em Pindamonhangaba (SP). Como sempre acontece na primeira viagem "independente" de um filho, o programa deixou a mãe insone, mas o drama ficou em São Paulo. Emelly adorou o show de talentos, as festas à fantasia e, sobretudo, disputar quem desenharia as sobrancelhas da recém-amiga que tinha alopecia.
Batizado de Dermacamp, o evento foi criado em 2001 especialmente para crianças com problemas dermatológicos. "As doenças de pele são mais sérias em crianças do que em adultos, pois nelas a pele é um órgão maior proporcionalmente, e a doença as leva mais facilmente a sofrer preconceito", diz o dermatologista Samuel Mandelbaum, criador e coordenador do programa.
O acampamento reúne crianças para que elas aprendam a ser independentes. "É um superavanço, porque, em um país onde o que predomina é a estética, você aprende a valorizar o que tem por dentro", afirma Emelly, sempre eloqüente e em tom de veterana -já participou de cinco Dermacamps desde então e se prepara para mais um, em novembro.
A garota lembra a troca de cremes, que acontece sempre após o banho. É o momento de testar fragrâncias e texturas, partilhar dicas de uso e receber um trato especial dos amigos. Essa troca a ajuda a escolher os próprios produtos. Como gasta um frasco de hidratante a cada três dias -precisa aplicá-lo três vezes por dia-, ela tem de conhecer opções razoáveis mais baratas. "Uma vez, receitaram-me um cosmético caríssimo. Perguntei se era só para meu dedo ou se tinham reparado no tamanho do meu corpo."
Já que a família não tem condições de arcar com os custos do uso exclusivo de dermocosméticos, a solução foi mesclá-lo com hidratantes comuns.
Emelly também adquiriu uma técnica para manter a pele cheirosa e tratada quando sai com as amigas. Como os produtos mais específicos não têm fragrância proeminente, ela carrega um "creminho cheiroso" para passar em locais estratégicos. E também não dispensa um perfume. Mas a pele não arde com o álcool? "É claro que sim, mas tem de arder, todo sacrifício pela beleza."
Como parte do tratamento, ainda toma acicretina, remédio que controla a reprodução das células da pele, e a auto-estima no topo. "Aprendi com meus amigos do "Derma" que, se as pessoas não querem ser minhas amigas, que não me façam mal", diz, referindo-se às ofensas que costumava ouvir na escola e em seu condomínio, em Guarulhos. Nada menos do que "a cobra" e "a cascão".
Nos Estados Unidos, a referência para comparação sugerida pelos grupos de apoio é diferente. "São chamadas por lá de "crianças-borboleta", em uma alusão ao que oferecem interiormente, como se tivessem de sair do seu casulo", resume o pai, o analista de sistemas Luiz Carlos Martins, 41.
Emelly passa o tempo desenhando mangás. Ela gosta mesmo "de criar um mundinho no qual possa fazer todo tipo de feitiço". Já contou a história de uma menina que viaja para o ano 3000. Se tivesse a mesma oportunidade de sua criatura, faz questão de dizer, além de um cientista bonitão -item "importantíssimo"-, traria toda tecnologia para tratamento de pele em crianças.
Sair com as amigas virou rotina. "Ah, agora ninguém me segura mais em casa." Na turminha, está a garota que ganhou os dropes seis anos atrás. "Fiquei surpresa ao perceber que não precisava mais lhe dar bala, pois continuou minha amiga pelo que eu sou", alegra-se Emelly, que, claramente, já deixou há tempos sua crisálida.


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