São Paulo, domingo, 27 de setembro de 2009

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História

Minas e Goiás se encontram em NY

Rachell Souza, 9, foi aos EUA para conhecer o mineiro Jefferson Araújo, 27, de quem recebeu um transplante de medula um ano atrás para tratar uma doença do sangue

João Castellano/Folha Imagem
Rachell e Jefferson brincam no Central Park

MARIA EDUARDA ANDRADE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM NOVA YORK

Rachell Souza, 9, fez sua primeira viagem internacional nesta semana. Acompanhada pela mãe, Isabel, 47, a menina foi de Caldas Novas (GO) a Nova York para conhecer o doador da medula óssea que salvou sua vida um ano atrás.
O encontro aconteceu durante evento promovido pela Fundação Icla da Silva -instituição americana fundada por uma família brasileira, responsável por grande parte do cadastro de doadores hispânicos e brasileiros nos EUA.
Rachell falou direitinho a frase em inglês "thank you for saving my life" (obrigada por salvar a minha vida). E se surpreendeu com a resposta em português. Ela não imaginava que o doador fosse brasileiro -o mineiro Jefferson Araújo, 27. "Eu agradeço a Deus essa oportunidade. A coisa mais importante que eu fiz no mundo foi salvar a sua vida", disse Jefferson com a menina no colo.
Rachell não era nascida quando o irmão Romullo, seis anos à época, recebeu o diagnóstico de anemia aplástica (doença que afeta a medula óssea e compromete a produção de hemácias, leucócitos e plaquetas). Em casos extremos da doença, como no do garoto, a única solução é o transplante.
E as leis da genética regem uma equação dramática: para a realização do transplante de medula óssea, doador e receptor precisam ter exatamente o mesmo código genético no cromossomo 6. Segundo o Ministério da Saúde, a probabilidade de que irmãos (filhos de mesmo pai e mãe) sejam doadores compatíveis é de 35%. As chances de achar um doador fora da família são de 1 em 100 mil.
Para tentar salvar o filho, Isabel decidiu engravidar novamente. Com 11 dias de vida, os exames de Rachell trouxeram a notícia: a menina era 100% compatível com o irmão. A família comemorou o final de quatro anos de busca por um doador. Mas os médicos logo descobriram que Rachell sofria da mesma doença.
"Eu pensei: "será que Deus faz um milagre pela metade?'", lembra a mãe, que é professora. Depois de lutar contra a doença por dez anos, Romullo morreu aos 14. Um mês depois de perder o irmão, Rachell -que não havia apresentado nenhum sintoma da doença até então- enfrentou a primeira crise: teve sangramento intenso nas extremidades do corpo.
Foi o começo do que seriam quatro anos de consultas e exames em diversos hospitais do país. Os pais deixaram de trabalhar e, com apoio financeiro de amigos e doações de desconhecidos, continuaram tentando encontrar um doador.
Em 2007, o pedreiro e coreógrafo Jefferson foi localizado como possível doador em Boston (nordeste dos EUA). Ele havia aceitado fazer parte de um cadastro mundial de possíveis doadores de medula óssea durante uma campanha da Fundação Icla da Silva.
"Eles só fizeram um furinho no meu dedo, colheram uma gota de sangue e eu preenchi um formulário. Meses depois, me ligaram dizendo que provavelmente eu era compatível com uma menina de nove anos. Fiquei feliz demais em poder ajudar alguém de um jeito tão simples", lembra.
Jefferson foi submetido a diversos exames que comprovaram a total compatibilidade genética necessária para o transplante. E, o mais importante, concordou em se submeter ao processo de doação.
"Infelizmente, 60% dos doadores compatíveis acabam desistindo de fazer a doação. Algumas pessoas alegam compromisso de trabalho, outras ficam com medo de ter sequelas. É muito triste porque o transplante não apresenta riscos para o doador. O problema é a desinformação, as pessoas confundem medula óssea com a espinhal e pensam logo que vão ficar de cadeira de rodas", lamenta Airam da Silva, presidente da fundação.
Segundo Silva, o transplante de medula óssea pode ser tratamento para mais de 60 doenças, mas a procura por um doador geralmente começa quando o estágio do paciente se agrava. "Isso é um grande erro. Como o processo pode ser muito demorado, as famílias têm que se informar sobre possíveis doadores o quanto antes", diz.
No Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná, Rachell passou pela preparação necessária para receber o transplante. Fez quimioterapia para destruir sua medula deficiente e enfrentou todos os efeitos do tratamento. "Ela foi muito guerreira. Foram dois meses de internação. Ela parecia uma dessas criancinhas desnutridas", lembra a mãe.
Enquanto Rachell se preparava para o transplante, Jefferson passou por um procedimento simples que durou pouco mais de uma hora. Os médicos colheram um líquido rico em células da medula óssea localizado na região do osso da bacia. O material foi transportado de Boston até Curitiba, onde foi transferido para a veia de Rachell, como se fosse uma transfusão de sangue. Passado um ano, Rachell é uma menina saudável. "Os médicos brincam, dizem que a fábrica de sangue dela está a todo vapor", comemora a mãe.
Para garantir a segurança de doador e receptor, o protocolo que rege os transplantes de medula no Brasil determina que as identidades só podem ser reveladas depois de ao menos um ano da realização do transplante, com o consentimento por escrito de ambas as partes.
A Fundação Icla da Silva convidou Rachell, sua mãe, pai e irmão para conhecerem o doador durante um jantar da instituição, que tinha o objetivo de arrecadar doações.
Só a menina e a mãe tiveram o visto liberado pelo consulado americano em Brasília. O visto do pai, o corretor de imóveis Nivaldo Souza, 47, e o do irmão Rodolffo, 20, foram negados, apesar de toda documentação emitida por hospitais americanos e brasileiros.
Bastaram alguns minutos juntos para que Rachell e Jefferson não se largassem mais. No dia seguinte ao jantar, numa manhã de calor no Central Park, os dois comemoraram o encontro com coisas simples: comeram cachorro-quente, passearam de carrossel e apostaram corrida.

Cabelo cacheado
Segundo a mãe, Rachel não tem sequelas dos quase cinco anos convivendo com a doença. Ela é hoje uma menina saudável, vai à escola, usa Orkut e adora brincar de elástico. Quer ser veterinária quando crescer, e, por enquanto, cuida de duas tartarugas aquáticas. "Eu tenho uma escova exclusiva para limpar os cascos dela", conta.
Com a quimioterapia, Rachell perdeu todos os pelos do corpo. Depois do transplante, o cabelo dela, antes liso, começou a crescer em forma de cachos. "Eu acho que meu doador tem cabelo cacheado", disse à mãe. A menina passou a gostar de alface e de estrogonofe de frango -e também atribuiu a novidade ao doador da medula.


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