São Paulo, domingo, 29 de novembro de 2009

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HISTÓRIA

À flor da pele

Diagnosticado com dermatite atópica aos dois anos, Felipe Camargo é criador de comunidade virtual sobre a doença, com 1.400 integrantes

Letícia Moreira/Folha Imagem
O advogado Felipe Camargo, em seu escritório em São Paulo; ele aprendeu a conviver com a doença


DENISE MOTA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

No metrô, na praia, no escritório, ela não dá sossego. Quem tem dermatite atópica sabe que a doença é uma parte nada desprezível da rotina e que, mais do que qualquer medicamento, a cabeça é a maior aliada para combatê-la. Quem ensina é o advogado Felipe Camargo, 29, que vive há 27 anos com o problema. Trata-se de uma enfermidade crônica que causa inflamação na pele e, consequentemente, lesões e coceira.
"Nem os médicos sabem explicar direito por que ela aparece e desaparece. Tem atópicos que param de apresentar a dermatite na adolescência, outros que só se descobrem atópicos depois dos 18 anos. O meu palpite é que ela contém um aspecto emocional muito forte. Você convive por tantos anos com ela que ela acaba virando uma parte de você", afirma.
Como a maioria dos afetados pelo problema, o paulistano provou uma infinidade de tratamentos, de homeopatia a umbanda, de acupuntura a benzedeiras e dietas.
Seu caso foi diagnosticado aos dois anos de idade, quando lhe apareceram marcas no corpo parecidas com as brotoejas de calor que costumam afetar os bebês. "Minha dermatite foi muito grave, o aspecto dela era muito feio. Passei por 400 médicos. É comum tentar tudo."
Segundo a Aada (Associação de Apoio à Dermatite Atópica), a doença, de origem hereditária, é mais comum em comunidades urbanas e afeta de 10% a 15% da população mundial. O mais frequente é que surja no primeiro ano de vida e regrida antes dos cinco.
Hoje, Felipe apresenta 20% do quadro que possuía na infância e adolescência, mas mantém vigilância constante. "A primeira coisa que os médicos te dizem é para tirar o leite e o ovo. Eu já fiz todas as dietas, nenhuma adiantou. Tem pessoas que fazem dieta e melhoram muito, eu não."
A coceira de Felipe retornam em crises periódicas. "Tive três períodos em que ela desapareceu: quando tinha oito anos, aos 12 e aos 22. Foram épocas em que eu estava muito feliz, então acho que, quando você consegue se desligar um pouco da pele, ela tende a melhorar. É uma doença bem misteriosa."
Para tentar compreender melhor esses enigmas e conhecer outras realidades marcadas pelo problema, Felipe criou em 2004, ao lado de uma amiga, uma comunidade no Orkut dedicada à dermatite atópica.
Com 1.400 integrantes, a rede troca informações especialmente sobre medicamentos, mas não substitui a orientação profissional. "As pessoas entram lá desesperadas, 80% delas querem saber sobre remédios, tratamento, aí eu interfiro: automedicação, não. O que acontece é que você quer resolver o problema do dia para a noite, e não é bem assim. Muitas pessoas entram também porque não têm coragem de namorar, de se relacionar."

Bermuda, não
A primeira prova de fogo de Felipe foi a escola, onde sua aparência desencadeou todo tipo de discriminações. "Criança é cruel, tira sarro de gordinho, de quem usa óculos, imagina de quem tem a pele cheia de feridas. Tive os piores apelidos possíveis. Sempre fiquei isolado, e até alguns professores me evitavam", conta. "Dizem que todo atópico é mais inteligente. O que acontece é que a gente dedica mais tempo ao estudo, porque tem vergonha de jogar bola, de ir para a piscina."
A adolescência tampouco foi tranquila. "Fiquei mais de cinco anos sem usar bermuda. Não gostava de me olhar no espelho, aprendi a pentear o cabelo sem me olhar no espelho."
Das experiências desses anos, uma das lições foi não deixar de fazer nada por conta da doença. Às 7h30, Felipe está de pé. Trabalha em horário comercial e dedica a noite à sua banda de rock clássico e aos exercícios de musculação, bicicleta, corrida e kung fu.
"Tenho épocas horríveis, em que meu olho não abre direito, mas é algo com que a gente tem que conviver. Trabalho, namoro, me divirto, faço tudo o que tenho que fazer."
Outra conclusão é que, se não é possível eliminar a doença, o melhor é se entender com ela. Um dos maiores desafios é que, ao longo do tempo, muitos tratamentos perdem o efeito. "Se você entra em desespero, a doença piora", diz. "O mais difícil é você vencer você mesmo, encarar a vida de peito aberto, mesmo durante as crises."
Quando o panorama piora, ele descansa o máximo possível. "Assim dreno toda a ansiedade. A maioria dos antialérgicos dá muito sono, então durmo, tomo muita água, uso pomadas com corticoide e tento pensar em outra coisa."
Tio de uma criança que tem a mesma doença, em grau mais leve, Felipe recomenda aos atópicos duas coisas: "Fazer terapia é superimportante. A gente acumula uma mágoa da doença que precisa botar para fora".
Outra dica é fazer atividades que diminuam a ansiedade, característica, ele diz, de todo atópico. "Porque você está sempre pensando não tanto em quando a crise vai chegar, mas mais em quando ela vai passar."
Além de dedicar o tempo livre à música e aos exercícios, o advogado é voluntário da Aada, especialmente na organização das reuniões mensais da entidade, realizadas aos sábados com pacientes e familiares.
Como ele, os atendidos pelo Hospital das Clínicas e outros afetados pela doença encontram na instituição -presente em dez cidades de oito Estados, além do Distrito Federal- um lugar onde podem tirar dúvidas, buscar alternativas de atendimento e, especialmente, saber que não estão sozinhos. "A pessoa com dermatite atópica grave se sente à margem da sociedade. Não é uma doença rara, mas não é tão comum. Todo mundo acha que é o único caso que existe."


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