São Paulo, domingo, 31 de janeiro de 2010

Próximo Texto | Índice

HISTÓRIA

"Eu não queria voltar do Haiti"

O cirurgião-geral Milton Steinman, 45, retornou ao Brasil depois de dez dias no país devastado pelo terremoto com a sensação de ter feito um "trabalho de formiguinha"

Eduardo Knapp/ Folha Imagem
Milton Steinman em seu consultório no hospital Albert Einstein, em São Paulo

MARIANA VERSOLATO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Quando recebeu em casa a ligação do hospital Albert Einstein no dia seguinte ao do terremoto no Haiti, o cirurgião-geral Milton Steinman, 45, não teve dúvidas: prontificou-se para a missão de ver quais eram as condições para a instalação de uma tenda de atendimento às vítimas. O objetivo era tentar descobrir as reais necessidades do país para que, alguns dias mais tarde, a instituição pudesse mandar um serviço de ajuda mais eficaz e organizado.
Depois de dez dias de trabalho ininterrupto no país, o médico -que divide o tempo entre o hospital particular e uma das mais movimentadas emergências do Brasil, o Hospital das Clínicas de São Paulo- mantém a sensação de ter realizado um "trabalho de formiguinha". "Não queria voltar para o Brasil", conta. "Há um trabalho sem fim no Haiti."
Milton tem experiência em cirurgia do trauma -no Brasil, esta é uma área de atuação, e não uma especialidade-, fez um curso em Israel de organização de sistemas de trauma em 2005 e atuou no resgate de vários acidentes de grandes proporções, como a explosão do Osasco Plaza Shopping, em 1996, e os dois acidentes da TAM na cidade de São Paulo, em 1996 e em 2007.
Ele afirma, no entanto, nunca ter visto "cenas de terror" como as que encontrou no Haiti. "Era como se fosse o cenário do livro "Ensaio Sobre a Cegueira" [de José Saramago] mil vezes pior; uma volta aos nossos instintos mais primitivos."
Segundo ele, a sensação de que se tratava da "maior catástrofe já existente" era compartilhada por outros profissionais de resgate que estavam no Haiti. "Mesmo as equipes mais experientes em resgates de terremotos, como as do México e da Espanha, mostravam-se surpresas com o que viam."
O cirurgião viajou na noite de sexta-feira, dia 15, para a República Dominicana. Antes de ir, escreveu e assinou pela primeira vez seu testamento. A mulher dele, a obstetra Débora Steinman, 40, temia que acontecessem novos tremores, mas apoiou sua decisão. Já seu filho Bruno, de oito anos, só ficou sabendo da viagem quando o médico já se encontrava no Haiti.
O menino estava num acampamento de férias enquanto Milton embarcava para Santo Domingo. Recebeu um e-mail do pai explicando as razões da viagem às pressas.
Ainda no aeroporto, o cirurgião escreveu para um colega israelense dizendo que ia para o Haiti. Recebeu uma resposta rápida e um contato para que procurasse o chefe de cirurgia do hospital militar de Israel, em Porto Príncipe. E foi no hospital de campanha montado pela equipe humanitária israelense que o brasileiro permaneceu, numa estrutura que chamou de "magnífica".
Uma equipe de 220 pessoas, entre médicos, enfermeiras e militares atendia os casos mais urgentes com uma estrutura bem equipada: farmácia completa, ala pediátrica, departamento de radiologia de alta tecnologia, Unidade de Terapia Intensiva, sala de emergência, duas salas de cirurgia e maternidade, além de psicólogos e "doutores da alegria".
Também não faltavam água, comida nem acesso à comunicação na base israelense, que atendeu 1.111 pacientes e realizou 317 cirurgias e 16 partos. "Comíamos basicamente arroz, vegetais e enlatados."
Mas o médico só foi para a capital Porto Príncipe depois de quatro dias de viagem. Antes, ficou em Jimaní, na República Dominicana, cidade que faz fronteira com o Haiti.
E foi na fronteira que o cirurgião se surpreendeu com a quantidade de voluntários que se dirigiam ao Haiti para ajudar no resgate e no atendimento às vítimas. "Eles chegavam às centenas, do Japão, da Itália, de todo lugar. Eram freiras, médicos, pessoas comuns, às vezes, só com a roupa do corpo."
Em Jimaní, os feridos eram atendidos em dois hospitais -um deles inaugurado às pressas, na própria sexta-feira- uma capela e uma igreja, "em condições precárias e caóticas", diz. Mas, longe de Porto Príncipe, o médico disse também se sentir longe do local que mais precisava de cuidados.
"A gente ouvia que na capital a situação estava perigosa e difícil, mas eu precisava ir para lá", diz. A saída foi contratar um motorista que o levou à Porto Príncipe por US$ 300.

Amputados
Ao ver os tanques de guerra e a cidade arruinada, o médico conta que o problema ficou "mais real". Em meio a tanta tragédia, impressionou-se com a quantidade de crianças que tiveram membros amputados e com a capacidade de resistência dos haitianos. "Parece não haver limites para o sofrimento deles. Já existe uma resistência física e uma tolerância à dor."
Milton confessa emocionado ter se assustado, assim que chegou, com o número de vítimas e com a dimensão do desastre. E conta que questionou o tamanho de sua capacidade de ajudar. "Parece que você vira inexperiente, que não sabe tanto como imaginava. Mas no final, vê que você não é mais do que ninguém, que é mais um para ajudar. E qualquer tipo de ajuda é bem-vinda."
A diferença, para ele, entre uma tragédia como a do Haiti e um cenário de guerras e atentados terroristas, como os que viu em Israel, é a perda completa da estrutura local. Sem hospital, sem energia, sem o básico, fica tudo mais difícil. "Para onde levar as pessoas para serem atendidas? E depois da alta? Isso extrapola a atividade exclusivamente médica e te deixa muito suscetível a falhas."
Depois do resgate dos sobreviventes e do cuidado inicial dos feridos, o Haiti entra num segundo momento de atendimento médico, de acordo com Milton. Agora, o foco passa a ser o tratamento contínuo de infecções e a reabilitação das vítimas de amputações.
Para essa próxima fase, apesar de saber que ainda há muito a ser feito, o médico acredita que ortopedistas, infectologistas e fisioterapeutas sejam mais necessários do que cirurgiões, como ele. Por isso, ainda não sabe se voltará ao país na equipe que o Einstein deve mandar na semana que vem.
Diz, no entanto, que leva de lição a importância da ajuda, seja qual for. "Num cenário caótico como aquele, o que você consegue fazer é um "pinguinho". Amputar um braço ou dar um copo d'água a alguém passam a ter mesma importância."


Próximo Texto: Frases
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.