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HISTÓRIA
"Eu não queria voltar do Haiti"
O cirurgião-geral Milton Steinman, 45, retornou ao Brasil depois de dez dias no país devastado pelo terremoto com a sensação de ter feito um "trabalho de formiguinha"
Eduardo Knapp/ Folha Imagem
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Milton Steinman em seu consultório no hospital Albert Einstein, em São Paulo
MARIANA VERSOLATO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Quando recebeu em casa a ligação do hospital Albert Einstein no dia seguinte ao do terremoto no Haiti, o cirurgião-geral Milton Steinman, 45, não
teve dúvidas: prontificou-se
para a missão de ver quais eram
as condições para a instalação
de uma tenda de atendimento
às vítimas. O objetivo era tentar
descobrir as reais necessidades
do país para que, alguns dias
mais tarde, a instituição pudesse mandar um serviço de ajuda
mais eficaz e organizado.
Depois de dez dias de trabalho ininterrupto no país, o médico -que divide o tempo entre
o hospital particular e uma das
mais movimentadas emergências do Brasil, o Hospital das
Clínicas de São Paulo- mantém a sensação de ter realizado
um "trabalho de formiguinha".
"Não queria voltar para o Brasil", conta. "Há um trabalho
sem fim no Haiti."
Milton tem experiência em
cirurgia do trauma -no Brasil,
esta é uma área de atuação, e
não uma especialidade-, fez
um curso em Israel de organização de sistemas de trauma
em 2005 e atuou no resgate de
vários acidentes de grandes
proporções, como a explosão
do Osasco Plaza Shopping, em
1996, e os dois acidentes da
TAM na cidade de São Paulo,
em 1996 e em 2007.
Ele afirma, no entanto, nunca ter visto "cenas de terror"
como as que encontrou no Haiti. "Era como se fosse o cenário
do livro "Ensaio Sobre a Cegueira" [de José Saramago] mil vezes pior; uma volta aos nossos
instintos mais primitivos."
Segundo ele, a sensação de
que se tratava da "maior catástrofe já existente" era compartilhada por outros profissionais
de resgate que estavam no Haiti. "Mesmo as equipes mais experientes em resgates de terremotos, como as do México e da
Espanha, mostravam-se surpresas com o que viam."
O cirurgião viajou na noite de
sexta-feira, dia 15, para a República Dominicana. Antes de ir,
escreveu e assinou pela primeira vez seu testamento. A mulher dele, a obstetra Débora
Steinman, 40, temia que acontecessem novos tremores, mas
apoiou sua decisão. Já seu filho
Bruno, de oito anos, só ficou sabendo da viagem quando o médico já se encontrava no Haiti.
O menino estava num acampamento de férias enquanto
Milton embarcava para Santo
Domingo. Recebeu um e-mail
do pai explicando as razões da
viagem às pressas.
Ainda no aeroporto, o cirurgião escreveu para um colega
israelense dizendo que ia para o
Haiti. Recebeu uma resposta
rápida e um contato para que
procurasse o chefe de cirurgia
do hospital militar de Israel,
em Porto Príncipe. E foi no
hospital de campanha montado pela equipe humanitária israelense que o brasileiro permaneceu, numa estrutura que
chamou de "magnífica".
Uma equipe de 220 pessoas,
entre médicos, enfermeiras e
militares atendia os casos mais
urgentes com uma estrutura
bem equipada: farmácia completa, ala pediátrica, departamento de radiologia de alta tecnologia, Unidade de Terapia
Intensiva, sala de emergência,
duas salas de cirurgia e maternidade, além de psicólogos e
"doutores da alegria".
Também não faltavam água,
comida nem acesso à comunicação na base israelense, que
atendeu 1.111 pacientes e realizou 317 cirurgias e 16 partos.
"Comíamos basicamente arroz,
vegetais e enlatados."
Mas o médico só foi para a capital Porto Príncipe depois de
quatro dias de viagem. Antes,
ficou em Jimaní, na República
Dominicana, cidade que faz
fronteira com o Haiti.
E foi na fronteira que o cirurgião se surpreendeu com a
quantidade de voluntários que
se dirigiam ao Haiti para ajudar
no resgate e no atendimento às
vítimas. "Eles chegavam às
centenas, do Japão, da Itália, de
todo lugar. Eram freiras, médicos, pessoas comuns, às vezes,
só com a roupa do corpo."
Em Jimaní, os feridos eram
atendidos em dois hospitais
-um deles inaugurado às pressas, na própria sexta-feira-
uma capela e uma igreja, "em
condições precárias e caóticas",
diz. Mas, longe de Porto Príncipe, o médico disse também se
sentir longe do local que mais
precisava de cuidados.
"A gente ouvia que na capital
a situação estava perigosa e difícil, mas eu precisava ir para
lá", diz. A saída foi contratar um
motorista que o levou à Porto
Príncipe por US$ 300.
Amputados
Ao ver os tanques de guerra e
a cidade arruinada, o médico
conta que o problema ficou
"mais real". Em meio a tanta
tragédia, impressionou-se com
a quantidade de crianças que tiveram membros amputados e
com a capacidade de resistência dos haitianos. "Parece não
haver limites para o sofrimento
deles. Já existe uma resistência
física e uma tolerância à dor."
Milton confessa emocionado
ter se assustado, assim que chegou, com o número de vítimas e
com a dimensão do desastre. E
conta que questionou o tamanho de sua capacidade de ajudar. "Parece que você vira inexperiente, que não sabe tanto
como imaginava. Mas no final,
vê que você não é mais do que
ninguém, que é mais um para
ajudar. E qualquer tipo de ajuda é bem-vinda."
A diferença, para ele, entre
uma tragédia como a do Haiti e
um cenário de guerras e atentados terroristas, como os que viu
em Israel, é a perda completa
da estrutura local. Sem hospital, sem energia, sem o básico,
fica tudo mais difícil. "Para onde levar as pessoas para serem
atendidas? E depois da alta? Isso extrapola a atividade exclusivamente médica e te deixa
muito suscetível a falhas."
Depois do resgate dos sobreviventes e do cuidado inicial
dos feridos, o Haiti entra num
segundo momento de atendimento médico, de acordo com
Milton. Agora, o foco passa a
ser o tratamento contínuo de
infecções e a reabilitação das
vítimas de amputações.
Para essa próxima fase, apesar de saber que ainda há muito
a ser feito, o médico acredita
que ortopedistas, infectologistas e fisioterapeutas sejam
mais necessários do que cirurgiões, como ele. Por isso, ainda
não sabe se voltará ao país na
equipe que o Einstein deve
mandar na semana que vem.
Diz, no entanto, que leva de
lição a importância da ajuda,
seja qual for. "Num cenário
caótico como aquele, o que você consegue fazer é um "pinguinho". Amputar um braço ou dar
um copo d'água a alguém passam a ter mesma importância."
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