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HISTÓRIA
Ela poderia estar em coma
Silvia Zamboni, 40, surpreende os médicos ao levar uma vida normal com o cérebro danificado
Marisa Cauduro/Folha Imagem
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A jornalista Silvia, em Florianópolis(SC)
GABRIELA CUPANI
DA REPORTAGEM LOCAL
Há algumas semanas, ao passar por uma ressonância magnética, a jornalista catarinense
Silvia Zamboni, 40, deixou o
médico desconcertado: ele não
podia acreditar que o cérebro
que observava no monitor, com
lesões seríssimas em áreas extensas, era o de uma pessoa absolutamente normal.
O esperado seria encontrar
alguém com sérias dificuldades
para falar, caminhar ou comer.
Ou até em estado vegetativo.
Ele não estava errado. Cinco
anos atrás, diante de imagens
semelhantes, outros médicos
nem acreditaram que ela sobreviveria ao acidente que sofrera. Seu carro havia se chocado contra uma árvore depois de
ter sido fechado por um caminhão, numa noite chuvosa, no
interior de Santa Catarina.
Além do traumatismo craniano, ela tinha costelas quebradas, que haviam perfurado
um pulmão. Uma orelha foi
praticamente decepada. O socorro só veio após duas horas.
A falta de oxigenação por
conta da parada cardíaca havia
deixado lesões graves e irreversíveis no cérebro. Os médicos
que a atenderam diziam que a
morte era questão de horas.
Uma semana após completar
35 anos, em março de 2004, Silvia estava em coma profundo,
no grau 3 da escala de Glasgow
-o mais baixo-, que mede o
nível de consciência após uma
lesão cerebral. As estatísticas
estavam contra ela -os médicos estimaram em 1% a chance
de sobrevivência.
Papel da mãe
Apesar da resistência dos
profissionais, sua mãe, Marilda, resolveu levá-la a um centro
maior, em Florianópolis. "Para
que, se ela está quase morta?",
ouviu de um deles. No outro
hospital, escutou o mesmo
prognóstico: caso a filha sobrevivesse, as chances de ficar em
estado vegetativo eram enormes. Mas Marilda acreditava
que ainda "havia esperança".
Fazia três anos que mãe e filha não se viam, apesar de morarem na mesma cidade. O
reencontro se deu na UTI.
Nas visitas diárias ao hospital, sua mãe promoveu um
bombardeio de estímulos. Fazia massagens em seu corpo
com remédios homeopáticos,
levou cremes e perfumes com
os cheiros que ela conhecia, colou nas paredes fotos de todas
as fases de sua vida e a logomarca da sua empresa, falava muito
ao seu ouvido, sem parar de
chamá-la pelo nome.
Quando não estava lá, deixava fones com músicas e mensagens gravadas. "Escutava sons,
mas não sabia o que significavam", diz Silvia, sobre o período em que esteve inconsciente.
"Eu me lembro da voz da minha
mãe me dando força." E de algumas frases soltas: "Não reage"; "não vai dar tempo".
Durante quase dois meses,
nada mudou. A mãe chegou a
ouvir se não seria melhor "deixar a natureza seguir seu curso". Mas perto de completar o
segundo mês em coma, Silvia
começou a dar os primeiros sinais de recuperação, com alguns movimentos involuntários dos membros e a capacidade de manter a respiração e a
pressão por alguns momentos,
sem o auxílio de aparelhos. O
coma ficou menos profundo.
Quatro meses depois do acidente, os médicos avaliaram
que já não havia nada mais a fazer no hospital. A vida havia se
confirmado, diziam, mas Marilda teria um bebê para sempre. Silvia estava absolutamente dependente e sem a menor
consciência de quem era. Em
casa, foi atendida por profissionais como fonoaudióloga, enfermeiros e fisioterapeuta.
História reescrita
Com o apoio da equipe e da
mãe, foi reaprendendo tudo,
desde as ações mais básicas: andar, pronunciar palavras e, o
mais difícil, abrir a boca e engolir. Depois, ainda precisou reaprender a ler, escrever e até reconhecer a função dos objetos
mais simples, como o telefone.
Ao longo dos meses, foi passando por todas as etapas de
seu desenvolvimento e reescrevendo a própria história. Teve
uma fase de birras para comer e
de medos para dormir. "Eu estava exatamente como uma
criança", diz. "Quando tiraram
a sonda nasogástrica [pela qual
era alimentada], passei a cheirar tudo, como um cachorro."
Sem se lembrar de nada de
sua vida antes do acidente, voltou a se interessar pelos assuntos que a motivavam e revelou
os mesmos talentos de antes.
Motivada pela mãe, estudou
piano, apesar de não se lembrar
de que quando criança tinha
aprendido a tocar. Quis cozinhar e vender tortas, exatamente como tinha feito na adolescência. Ao mesmo tempo, ia
resgatando suas memórias.
Apesar de seu cérebro carregar as cicatrizes das lesões, hoje
ela leva uma vida normal. Mora
sozinha, namora, estuda, faz
suas compras -só não voltou a
trabalhar, ainda.
"É uma prova da plasticidade
cerebral, em que os neurônios
que sobreviveram encontram
novos caminhos para se comunicar", diz o médico intensivista Thales Schott, que acompanhou sua recuperação.
Na visão dele, os cuidados da
mãe, que morreu após um AVC
no ano passado, foram fundamentais. "Foi isso que resgatou
a vida de Silvia", diz.
Ainda há grandes lacunas de
sua vida de que não lembra.
"Hoje sou mais seletiva", afirma. Lembrar envolve um grande esforço mental, que ela não
faz para acontecimentos que
lhe causem tristeza.
Há quem volte de experiências como essa dizendo que escolheu a vida. "Acho que minha
mãe escolheu por mim, e eu
correspondi." Hoje ela não faz
planos para o futuro. "Ainda tenho muito o que recuperar."
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