São Paulo, domingo, 08 de junho de 2008

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PESSOA FÍSICA

Mr. Azul

por GUILHERME BARROS

NEM O DÉFICIT DE ATENÇÃO, QUE INTERROMPEU SEUS ESTUDOS, IMPEDIU A DECOLAGEM DO CRIADOR DA JETBLUE; AGORA ELE SE PREPARA PARA INVESTIR U$ 150 MILHÕES NA CRIAÇÃO DE UMA NOVA COMPANHIA AÉREA NO BRASIL

David Neeleman está diante de dois grandes desafios.

O primeiro é, literalmente, fazer decolar seu mais novo investimento: a Azul, companhia aérea que ele acaba de lançar no Brasil para enfrentar o duopólio da TAM e da Gol. O primeiro vôo está marcado para janeiro de 2009.

O outro é mais difícil. Ele precisa convencer sua mulher, Vicky, a se mudar com a família de Connecticut, nos EUA, para o Brasil. Pai de nove filhos, pretende fixar residência em São Paulo, onde nasceu.

Aos 48, Neeleman está com seu plano de vôo pronto. Dispõe de US$ 150 milhões -U$ 10 milhões do próprio bolso- para o negócio. Na relação de sócios, estão incluídos nomes como Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central e sócio da Gávea Investimentos, Júlio Bozano e o fundo americano Weston Presidio. O investimento total pode chegar a US$ 5 bilhões, quase o dobro do que a indústria automobilística prevê para ampliar suas instalações neste ano.

Para a Azul, encomendou à Embraer 36 jatos E-195, configurados para 118 lugares com poltronas de couro e TVs individuais ao vivo. Cada jato equivale a mais ou menos US$ 40 milhões. Só aí são quase US$ 3 bilhões.

Neeleman ganhou projeção no mundo dos negócios ao criar a companhia aérea americana JetBlue, há sete anos, tendo como um dos investidores George Soros. Notabilizou-se por oferecer serviços diferenciados a preços menores, o chamado "baixo custo, baixa tarifa".

Com um capital de US$ 135 milhões, é a terceira empresa mais capitalizada da história da aviação no mundo. A segunda já é a Azul, atrás apenas da Virgin America. A JetBlue também foi a companhia que mais rapidamente atingiu o status de "major" -que fatura mais de US$ 1 bilhão- nos Estados Unidos. Em 36 meses, a empresa já tinha entrado para o clube.

COM HOMER SIMPSON

O sucesso fez como que Neeleman ganhasse "uma ponta" no filme dos "Simpsons" (na trama, o vilão sr. Burns invade o blog de Neeleman para adulterar informações) e capa de revistas americanas como "Forbes", "BusinessWeek" e "Fortune". Essa última chegou a compará-lo a Sergey Brin e Larry Page, os badalados criadores do Google. A "Time" o elegeu uma vez um dos cem homens mais influentes do mundo.

No ano passado, Neeleman sofreu um revés. Em fevereiro, uma nevasca no aeroporto JFK, em Nova York, fez com que um avião da companhia ficasse parado durante nove horas com os passageiros a bordo. A JetBlue foi responsabilizada pelo incidente.

Neeleman pediu desculpas à sociedade e até gravou um vídeo no YouTube com a promessa de que incidentes como aquele jamais se repetiriam. Mas, ainda assim, foi destituído do comando da empresa pelo conselho de administração. Desde então, ele vem, pouco a pouco, desfazendo-se de suas ações na Jet-Blue. O que se comenta é que, em breve, deixará de ser acionista da empresa. Hoje, possui menos de 10% da companhia e já não ocupa a presidência do conselho.

Esse incidente está na origem da mudança de rota -em direção ao Brasil. A relação de David Neeleman com o país começa antes mesmo de vir ao mundo. Seu pai, Gary Neeleman, mórmon de origem holandesa praticante e fervoroso (assim como o filho), esteve no Brasil em missão religiosa em 1954, onde ficou por dois anos. Gary se encantou com o país.

Depois da missão no Brasil, ao voltar aos EUA, Gary contou à mulher, Rose, então sua namorada, que queria voltar ao país. Jornalista, trabalhou durante sete anos na sucursal da UPI (United Press International), em São Paulo. David nasceu nesse período, no dia 16 de outubro de 1959, no Hospital Samaritano. O próprio David também cumpriu missão mórmon no Brasil aos 19. Percorreu, durante dois anos, diversas regiões pobres do Nordeste, onde era chamado de "gringo".

MAL DE GÊNIO

A aptidão para os negócios começou cedo. O empresário é portador da Síndrome de Déficit de Atenção (SDA), caracterizada pela dificuldade de concentração. É também conhecida como "mal dos gênios", já que alguns prodígios como Albert Eisntein, Leonardo da Vinci, Steven Spielberg e Walt Disney sofreram da mesma doença. Neeleman não toma remédios. Diz que o distúrbio o faz mais criativo, obriga-o a trabalhar com paixão e a manter o foco no negócio. Mas é comum, por exemplo, ele se perder em hotéis ou ficar agitado se é obrigado a permanecer muito tempo sentado.

O déficit de atenção provoca hiperatividade, em muitos casos. O distúrbio, no entanto, foi responsável por algumas das suas maiores invenções. A mais conhecida talvez seja o e-ticket, o bilhete eletrônico, responsável pela economia de bilhões de dólares das companhias aéreas. Neeleman teria criado o e-ticket por se cansar de esquecer os bilhetes em casa. Outra foi a TV individual em aviões -nada melhor para um portador de déficit de atenção do que uma TV só para ele.

A doença fez também com que ele não concluísse os estudos. Aos nove, já tinha começado a trabalhar no armazém de secos e molhados do avô, John, em Salt Lake City -a meca dos mórmons nos Estados Unidos. Extraiu grandes lições. Lembra, por exemplo, que o avô nunca gostou de deixar um cliente sem atendimento. E, se alguém pedisse algum produto em falta, ele corria para comprar em outra loja.

Aos 19, Neeleman ingressou no turismo. Seu primeiro negócio foi uma agência de viagens, a IFS, em Salt Lake, especializada em pacotes para o Havaí. Foi seu primeiro tombo. A agência só vendia pacotes para uma única companhia aérea, a Hawaii Express, que foi à bancarrota. Da experiência, restou a lição de que não se deve depositar todos os ovos numa única cesta.

AZULVILLE

Com quase dois metros de altura, olhos azuis e um português fluente (apesar do sotaque carregado), David Neeleman exibe muita confiança quando fala nos seus projetos para a Azul. Sem nunca perder o bom humor, diz que sua nova empresa não terá o mesmo fim de tantas outras que, nos últimos anos, tentaram furar o bloqueio do duopólio e, no meio do caminho, foram abatidas. Os exemplos são vários: Varig, OceanAir, BRA... Ele identifica a falta de capital como o maior problema dessas companhias.

Diz que dinheiro não falta. Neeleman aposta no crescimento do país e na melhora da renda. Seu alvo é o passageiro de ônibus.

Apesar das cifras milionárias com que lida nos negócios, Neeleman não rasga dinheiro. É capaz de recusar uma carne de Kobe servida num restaurante sofisticado de São Paulo por considerar o preço muito alto. Seu carro de uso diário na cidade onde mora, em Connecticut, é um Chevrolet Tahoe, ano 2004, com mais de 100 mil quilômetros. Também possui uma van, que é para atender à família quando todos estão em casa, coisa rara. Atualmente, um dos filhos está em missão mórmon no Brasil e uma outra em missão na Costa Rica.

Neeleman reserva os fins de semana para a família. No sábado, chega a assistir a cinco jogos consecutivos dos filhos. O domingo é reservado aos cultos mórmons e, à noite, jantar em família. Dorme por volta de cinco horas e não gosta de filmes nem de cinema. O distúrbio de déficit de atenção atrapalha a concentração. Na parte da manhã, assiste à TV por 40 minutos, enquanto corre na esteira.

A sede da empresa no Brasil fica em Alphaville, em São Paulo, que Neeleman chama de "Azulville". A idéia de morar em São Paulo é séria. O problema é que a nova casa da família nos EUA acaba de ficar pronta, depois de dois anos de construção. Com três andares e acomodações individuais para todos, Vicky não abre mão de curtir sua nova casa. Já fez a mudança da mobília, mas a família ainda dorme no antigo endereço -no chão, com os cobertores servindo de colchão. Ele não perde a esperança de convencer Vicky a vir morar no Brasil. "Quem sabe ela não se cansa da novidade em seis meses?"

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