São Paulo, domingo, 08 de junho de 2008

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FINO

Preto no branco

por HELIO HARA

AOS 43 ANOS, O CRIADOR DA EDITORA COSACNAIFY PASSA A LIMPO A IMAGEM DE EXCÊNTRICO QUE O ACOMPANHA, DIZ QUE PRETENDE CURSAR TEOLOGIA E QUE SONHA EM ABRIR UMA ESCOLA

Charles Cosac teve uma infância contemplativa: na casa de fim de semana em Petrópolis, na serra fluminense, observava o verde do jardim monocromático planejado por Burle Marx.

Lá não havia cores, apenas o verde -não um, mas vários. Nessas nuances, ele via todas as cores. Um pouco como nos muitos vermelhos de seu apartamento: o do carpete, o das paredes, o do sangue que escorre dramaticamente do corpo de uma mulher, adicionado à tela pelo próprio Charles. "Este é um vermelho (o do carpete) que deixa todo mundo 15 anos mais jovem, mais corado, disfarça as rugas. É muito aconchegante", diz.

Criador da editora CosacNaify, que nos últimos 11 anos lançou títulos de arte, arquitetura, moda e literatura de nomes como Farnese de Andrade, Otto Stupakoff, Paulo Mendes da Rocha e Ronaldo Fraga, é apontado como um dos mais influentes das artes plásticas no Brasil -honraria que não o seduz. Agora, conclui a edição de um livro sobre a artista Mira Schendel, já na nona versão. Esclarece não ser colecionador nem mecenas, mas é um ativo incentivador das artes e da educação: compra e envia os livros que edita para bibliotecas e universidades. Também é um doador de tempo: na Rússia, dava aulas de inglês e matemática. Sempre quis ser professor.

No entanto, convencionou-se associar sua imagem a excentricidades: túnicas, deslocamento em companhia dos cachorros (agora quatro), muitos cigarros, uma vida arredia.

"Nesses 11 anos de São Paulo já me chamaram de Dorian Gray, de Oscar Wilde. Querem saber quantos metros tem minha casa, quantas túnicas eu tenho. Entendo, mas não sou uma vedete, não lutei para isso. Sei que sou Charles Cosac e basta a pessoa me conhecer para saber disso."

Charles trabalha até 13 horas por dia para a editora que fundou. Não é pago, e paga pelos livros que retira. Gosta de estudar, e se prepara agora para o vestibular de teologia, que prestará no segundo semestre no Mackenzie. Diz que a faculdade lhe proporciona certa disciplina. E se dá conta de que ainda há muito a ser feito:

"Dos 39 aos 40 vivi o pior ano da minha vida. Não tinha feito ainda um quinto do que queria, e não havia mais tanto tempo. Quando completei 40, tudo passou." O que falta? "Abrir uma escola é um sonho. E também uma rádio. Não sou ambicioso, mas inquieto." O que seu estabelecimento ensinaria aos alunos ele ainda não sabe -provavelmente, algo ligado à arte.

FAMÍLIA ADAMS

Charles nasceu no Brasil graças a um engano: nos anos 30, o avô deixou a pobre Kafroun, na Síria, a bordo de um navio que o levaria a Nova York, onde parentes o esperavam. O cargueiro, contudo, aportou em Santos, e o primeiro Cosac no Brasil não encontrou os Cosac dos EUA. Lá, foram registrados como Cusack -que tem entre os descendentes o ator John Cusack. Todos da mesma família.

Aqui, se tornaram grandes mineradores. Charles nasceu no Rio de Janeiro no ano em que o Brasil viveu o golpe militar. A infância mistura lembranças de sons (passos no tapete encharcado pelo mar, que invadia o prédio em Copacabana em dias de ressaca), rigidez -crianças não faziam as refeições com adultos, o piano foi uma obrigação desde os 4 anos- e da família.

"Tinha uma parente com cabelos longos e escuros, outra que usava maquiagem muito branca. Nunca tomávamos sol. Um dia o muro amanheceu pichado: 'aqui mora a família Adams'. Comecei a chorar", relembra. E explode num sorriso.

Charles sempre foi ótimo aluno. Nem sempre comportado. Na adolescência, ele e um grupo de amigos chegavam à aula 5 minutos atrasados, de óculos escuros, e se sentavam na última fila. Eram vaiados e se divertiam. Esse prazer pela ação em grupo se estende hoje ao trabalho.

"A editora não é um hobby. A paixão é meu combustível, não consigo não estar apaixonado pelo que faço e por quem trabalho. Sempre tive idéias, mas precisava de pessoas para executá-las."

Aos 24 anos, visitou pela primeira vez as minas da família na Bahia. O cenário era brutal: solo esburacado, jatos d'água, granadas. Naquele momento, entendeu exatamente do que vivia. Não foi uma constatação feliz, mas o confronto com a realidade.

Dos Cosac (ele é Cosac de pai e mãe, os dois são primos), diz ter herdado a calvície e o caráter arredio. Dos pais, especificamente, a liberdade para escolher o futuro: não cresceu com a obrigação de ser minerador. A mãe gostaria que fosse intérprete, mas o piano ficou para trás.

"Tenho a liberdade de ajudar porque não tenho filhos, esposa. Sou um ponto final. Você não pode achar que as coisas são suas e que vai levá-las para o caixão. Principalmente no caso de obras de arte, o lugar delas é em museus, não em casas de ricos. Aqui [no Brasil] há coleções muito kitsch, de pessoas que querem se projetar por meio da arte."

SANTA CECÍLIA

O editor ("assistente", lembra ele) pensa na vida em períodos de 15 anos. Quando completar 45, no ano que vem, terá início uma nova fase, em algum outro país. Até lá, seguirá a rotina, que inclui o escritório e também os botequins de Santa Cecília, bairro na região central de São Paulo, que freqüenta com naturalidade: "Mesmo quem não se conhece chega e cumprimenta os outros com um aperto de mão. As conversas são geralmente sobre futebol, então não participo".

É com a mesma naturalidade que fala de suas escolhas: "O que eu poderia ter? Mais uma obra de arte ou um livro sobre o artista? Apesar da tiragem pequena, na minha cabeça o livro é como 3.000 obras. E, se de cada 3.000 saírem dois artistas, será muito legal".

P.S.: Na manhã do ultimo domingo, quando foram feitas estas fotos, Charles vestia uma espessa peça de Yves Saint Laurent (foto na pág. 24), híbrido de sobretudo e robe de chambre. "Saint Laurent sempre foi o meu favorito", disse ele, sem saber que, horas depois, seria anunciada a morte do estilista tantas vezes inspirado na arte de nomes como Picasso e Matisse. Procurado pelo repórter mais tarde, Charles comentou: "Pessoas como Yves Saint Laurent não partem, pois fica tanta beleza no lugar delas..."


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