São Paulo, domingo, 19 de dezembro de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FESTA

Do arpoador para o mundo

por LUCIANA PESSANHA

As festas secretas organizadas pelo Artista plástico Ernesto Neto fazem o  réveillon mais cool do Rio De Janeiro

"Vamos fazer uma coisa freudiana: senta nessa cadeira, eu deito na rede, e a gente conversa." É assim que um dos artistas plásticos mais respeitados no mundo dá entrevistas. Ernesto Neto, que já expôs na Bienal de Veneza em 2001; no Panthéon, em Paris, em 2007; no Wade Thompson Drill Hall, em Nova York, em 2009; e encheu o MAM – SP com redes coloridas e vestígios praianos em 2010, é um defensor ferrenho da informalidade.
É possível que o desejo de descansar na rede venha também do fato de que ele passa muito tempo em pé, por ideologia. Na praia, não há quem o faça sentar. Neto atravessa o verão na vertical, em frente ao mar. O gosto pela maresia é tanto que, em 1999, ele e os amigos resolveram passar o Ano-Novo na areia. Esse Réveillon, que começou com 20 pessoas, acabou se tornando a festa mais bombada da cidade.
Na fantasia hype, a festa poderia ter um deque, coqueiros, velas e garçons distribuindo champanhe para convidados seletos. Esqueça. A comemoração de Ano-Novo mais animada do Rio, por onde passam artistas plásticos, músicos, atores, cineastas, bailarinos, DJs, jornalistas, escritores e wannabes, as pessoas mais anônimas e celebradas, é dionisíaca. Todo mundo e ninguém é VIP, a bebida é vendida por ambulantes e o som vem de uma pick-up instalada sob uma barraquinha.
Sobre os frequentadores ilustres, Ernesto despista: "Nem sei quem são, até porque às quatro da manhã você já não reconhece mais ninguém". Sobre o tipo de música, ele diz: "70% de música brasileira como Clara Nunes, sambalanço e pós-bossa nova. Mas também tocamos Hair na hora do dia nascer, por exemplo".
Ninguém paga para entrar, não há convite e muito menos "dress code". Os anfitriões recebem de sunga e biquíni, e é isso aí. O problema é descobrir o ponto exato onde ela acontece. Para fugir do assédio, a festa adotou a estratégia de alguns blocos de Carnaval e muda de lugar todo ano. Já esteve no Posto 9, no Arpoador, e, em 2011, ninguém sabe onde será.
Nos vernissages da galeria A Gentil Carioca, que Ernesto divide com Laura Lima e Márcio Botner, no Saara, é a mesma coisa. A cerveja fica na rua, as performances e interferências acontecem sobre os paralelepípedos, e todo mundo papeia em posição de sentido relaxado, durante horas, sem arredar pé. E se a conversa chega no futebol, Neto protesta contra a Fifa: "Acabaram com a geral. Isso é um assassinato cultural. Era ali que as pessoas se misturavam".
Quem o vê na praia ou no Saara custa a crer que ele é o conhecido artista plástico. Mas faz sentido. Neto alcançou o sucesso por uma reverência profunda ao nosso jeito de ser, ver e sentir. "O Brasil é um lugar de pensamento interessante. Enquanto a Europa, com toda aquela riqueza, sofre tanto nas relações pessoais, aqui, nós temos um suingue, um ´dengo`, que amacia as coisas."
No caso de Ernesto, vida e arte se entrelaçam em uma coisa só. Em 2000, ele e a designer Lili Kemper, grávida de oito meses, se uniram no MAM – Rio, numa exposição chamada "O Casamento - Lili, Neto, Lito e os Loucos". Uma escultura-celebração-performance que ocupou todo o segundo andar do museu. Quando os convidados entenderam que a cerimônia havia acabado, se jogaram, ao mesmo tempo, sobre a escultura - um pufe de 15m de diâmetro. "As pessoas querem ser abraçadas, querem um lugar que dê espaço a elas para se manifestarem."
A comemoração de dez anos do "Casamento" acontece no verão de 2011, na galeria da Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema. E se chama: "Quando a gente para, o mundo gira". Nessa exposição, cinco sequências, com 150 fotos cada (algumas delas ilustrando esta reportagem), captam histórias do cotidiano do artista. "Ali estão, além da vista de uma janela em São Paulo, os padrinhos do `Casamento´, o fim de tarde no Arpoador e o Réveillon de 2010. Fragmentos de um estilo de vida praiano, que Neto defende com paixão. "Na praia você está quase desnudo, com poucas posses. Todo mundo é quase igual."

ANÁLISE
À moda antropofágica
por SILAS MARTI

Não é surpresa que Ernesto Neto goste do mar. Mas sua relação com a areia, o sol e a água salgada tem pés mais firmes fincados no solo carioca. Ele e toda essa verve que chamam de brasilidade em sua obra têm relação profunda com a experiência neoconcreta que abalou o Rio, onde vive.
Neto é um produto contemporâneo dos devaneios de Lygia Clark e Hélio Oiticica num Rio em convulsão nos anos 1950 e 1960, que transformou o cenário da arte no país e hoje serve de ponto de partida sólido para artistas com consciência histórica nesta terra.
Suas imensas construções com meias, miçangas, especiarias e chumbo parecem herdeiras dos penetráveis de Oiticica, que fez a pintura saltar da superfície do quadro para se tornar verdadeiros ambientes, e os chamados objetos relacionais de Clark, que propunham uma experiência sensual com o espectador.
Nada na obra de Neto funciona sem a participação ativa do público, esse terceiro corpo pulsante que reage às obras. Ele pede que o espectador respire o trabalho, entre nele, sinta seu cheiro e se perca num mar de sentidos. Nesse ponto, não seria equivocado enquadrar esse artista no que viria a se chamar estética relacional, aquilo fundado por Oiticica e Clark lá atrás.
Mesmo que valorize a experiência, esse tal mergulho em Ipanema ou num mar de meias de seda, Neto está preocupado com a estética da coisa. Compõe esculturas penetráveis, uma obra para ser deglutida e ao mesmo tempo contemplada, roçar a língua e as mãos num monte de coisas belas.
Não é olhar para a obra, é mastigar à moda antropofágica , e com improviso, tipo o arrebentar da maré na orla que ele tanto exalta.

Texto Anterior: FINA: Isabeli Fontana. Linda, leve e sem censura, por Jackson Araujo
Próximo Texto: FINA: Cristina Kirchner. A viuvez da primeira-dama e o flashback dos argentinos, por Raul Juste Lores

Índice



Clique aqui Para deixar comentários e sugestões Para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É Proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou imPresso, sem autorização escrita da Folhapress.