São Paulo, domingo, 21 de setembro de 2008

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FINA

"Pode abrir o piano"

por ANA RIBEIRO

Ana viveu os últimos 17 anos de tom jobim ao seu lado e, à serafina, revela fragmentos desse mundo particular.

As janelas de vidro duplo do apartamento no 4º andar, o último do prédio na avenida Vieira Souto, estão fechadas. Do lado de fora, o Rio de Janeiro em movimento: a praia de Ipanema, o vôlei na areia, o oceano Atlântico. Do lado de dentro, fragmentos do mundo privado de Tom Jobim os livros, os discos, as fotos de família. Num canto da sala, o reluzente piano preto Yamaha. Por algum motivo que João Gilberto talvez soubesse explicar, a janela isola o barulho dos carros que passam lá embaixo, mas permite a entrada do som das ondas do mar. Será que já inventaram a acústica seletiva?

Ana Jobim chega discretamente. É uma mulher de 53 anos, elegante, cabelos soltos, sorriso largo, que aparece vestida de preto, com o frescor de quem saiu do banho. Reparo no nariz, de anatomia fina e pontuda, que encantou o poeta (a prova está em material inédito ao lado). "Pode abrir o piano", ela autoriza, ao me encontrar fixada diante dele. Levanto a tampa de laca e vejo que as teclas, de tão batidas, já não são mais brancas. Sua cor agora é quase marrom. "Alguém ainda o toca?", pergunto. "Não, ele anda meio silencioso..."

Ana Beatriz Lontra viveu os últimos 17 anos de Tom Jobim ao seu lado, como mulher, companheira, fotógrafa, administradora de seus direitos autorais e... Cantora! Ainda que diga que sua posição ali se devia à "proteção" do marido, Ana era uma das vozes do quinteto vocal feminino da Banda Nova, que acompanhava o maestro. Dele faziam parte Beth, filha do primeiro casamento de Tom, Simone, mulher de Danilo Caymmi, e duas cantoras profissionais, Maucha Adner e Paula Morelenbaum.

Ana insiste em dizer que "havia um certo nepotismo" no fato de participar do quinteto, mas certamente ninguém acreditará que uma voz desafinada ou fora de compasso pudesse fazer parte do universo musical de Jobim. "Ele achava que eu cantava bem."

GAROTA DE IPANEMA

Ana vive há dois anos nesse apartamento de Ipanema com a filha Maria Luiza, 21, a caçula do músico, e com três cachorrinhos peludos: a bichon frisé Nina, o maltês Joaquim e, nova aquisição, o shitsu Frederico.

"Assim que Luiza nasceu, Tom decretou: é um gênio", Ana ri. "Ela rabiscava o papel com seus desenhos infantis, e ele me proibia de inscrevê-la em qualquer curso de arte, ou alguém iria corromper seu talento natural. Ela dançava ao pé do piano, e ele me pedia para não matriculá-la em nenhum curso de dança, sob o mesmo risco. Foi ótimo ter um pai assim. Contribuiu para ela ser quem é hoje, uma menina segura de si, inteirinha. Não é metida, mas tem personalidade."

De fato, em várias fotos da infância de Maria Luiza, a cena comum era essa: o pai toca, a filha pinta, acocorada embaixo do piano. "Ela desenha muito bem, e ele também desenhava muito bem", diz Ana, lembrando que Jobim chegou a cursar um ano de arquitetura antes de ser definitivamente enfeitiçado pela música. Em movimento contrário, Maria Luiza abandonou as aulas de violão e piano para estudar arquitetura. Está no 4º ano da faculdade. Ana e Tom tiveram outro filho, João Francisco, que morreu num acidente de carro aos 19 anos, quatro anos depois da morte do pai. "Com toda minha dor, tive de seguir em frente. Maria Luiza não merecia uma mãe deprimida. Mas há um aperto no coração que a gente carrega para sempre."

LINHA DO TEMPO

No dia 5 do mês 5 de 1955, às 5 horas e 45 da manhã, na cidade paulista de São José dos Campos, nasceu Ana Beatriz Lontra, touro com ascendente touro, a única mulher dos quatro filhos de dona Dorita e do aviador Aloysio Lontra Netto. Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim tinha 28 anos. Casado com Thereza Hermanny e pai de um filho de cinco anos, curtia seu primeiro sucesso musical, "Tereza da Praia", lançado em 1954.

Ana tinha um ano quando Tom assinou sua primeira parceria com Vinícius de Moraes, a trilha sonora da peça "Orfeu da Conceição". E estava com dois anos quando nasceu Elizabeth, a segunda filha de Tom e Thereza. Ana fazia seu quarto aniversário quando "Chega de Saudade", com arranjos e direção musical de Jobim e in-?terpretações de João Gilberto, consolidou a bossa nova. Ana era uma menina de oito anos e Tom e Vinícius compunham "Garota de Ipanema", a canção brasileira mais tocada no mundo.

Ana perdeu o pai aos 13 anos, aos 19 se mudou com a mãe para o Rio de Janeiro e, no ano seguinte, por intermédio do pintor Angelo de Aquino, conheceu Tom Jobim no Luna Bar, no Leblon. Ela tinha 20; ele, 48. Ela estava prestando vestibular para o curso de comunicação na faculdade Gama Filho, gostava de ir à praia, de andar de bicicleta na orla, de sair com as amigas. Ele tocava piano e já tinha uma obra consistente, com algumas das composições mais importantes da história da música brasileira. De pronto, eles gostaram de conversar. No fim daquela noite, em 1975, ele se declarou apaixonado. "Ele era irresistível, tinha aquela sedução de poeta", lembra ela, que, por sua vez, era muito bonita. "E ainda criou e se incumbiu de espalhar um folclore sobre a paixão dele por mim."

O namoro se consolidou em 1977, em 1978 eles alugaram uma casa e foram morar juntos. "Não nos casamos. Naquela época, não tinha divórcio, Tom era desquitado." Nessa altura, já tinha dois filhos, do casamento com Thereza: o hoje maestro Paulo Jobim, que é presidente do Instituto Tom Jobim, fundado há sete anos pelos herdeiros para ser um arquivo adequado da obra do poeta e incentivar sua continuidade, e Beth, que participava dos vocais da Banda Nova e que é artista plástica. O maior quadro que Ana Lontra -que é como o marido se referia a ela nas entrevistas; na intimidade era Aninha- tem em sua sala, um abstrato de linhas geométricas azul e branco, é de autoria de Beth Hermanny Jobim. Ana diz que Tom tratou tão bem os filhos que, no ponto de vista dela, conseguiu o feito inédito de ter quatro filhos únicos. "Foi uma história perfeita. Paulo e Beth nasceram com um intervalo de sete anos. É a mesma diferença entre João Francisco e Maria Luiza." Quando o pai morreu, em 1994, Luiza tinha sete anos.

LOLITA EXECUTIVA

"Na época em que o conheci, Tom fazia shows para sobreviver. Administrar era assunto que o aborrecia. Fui entrando nessa área, tenho temperamento mais controlador e me afligia deixá-lo na mão de gente que podia tirar vantagem de sua desatenção", diz ela. Em 1990, o casal fundou a Jobim Music, "para cuidar dos direitos autorais de tudo o que é ligado à obra do artista -seu nome, sua imagem, sua música." Hoje, Ana continua dirigindo a Jobim Music, que tem 80% dos royalties para o Brasil e América Latina de cerca de 300 canções de Tom Jobim, além de todo o uso que se faz de sua imagem, e está animada com a editora Das Duas, que lançou para publicar os seus projetos pessoais. "As duas somos eu e a Luiza", diz. O primeiro produto foi o filme "A Casa de Tom - Mundo, Monde, Mondo", lançado no ano passado, um média-metragem de 54 minutos que retrata a construção da casa que Tom e Ana levaram quatro anos para erguer no Jardim Botânico.

Uma casa linda, ampla e ensolarada, cercada pela Mata Atlântica (o músico ouvia o canto dos passarinhos e acompanhava a movimentação dos micos nas árvores), com vista para o mar e para o Cristo Redentor, onde eles viveram por dez anos. "Era uma casa simples, despojada, como a nossa vida", define Ana Jobim. "Tirar o Tom de casa se não fosse para trabalhar era uma missão", lembra. "Nova York não conta, era um segundo lar."

Em 2001, depois da morte de Tom e de João Francisco, na volta de uma temporada de um ano no apartamento que ela ainda mantém em Nova York, Ana e Luiza decidiram mudar de endereço. "Lembranças boas também entristecem quando tudo muda", diz Ana, que alugou a "Casa de Tom" e foi morar em Ipanema. "Gosto de olhar para o mar, não tem monotonia."

A CASA DAS MENINAS

Faz seis anos que Ana mantém um casamento (em casas separadas) com o empresário Eduardo Pessoa de Queiroz. "É tão bom casar longamente, conhecer gente nova dá trabalho", ri. Na "casa das meninas", entre lembranças do Tom, dos porta-retratos, do piano e de Maria Luiza, mantém ainda a antiga cozinheira, Josefa Xavier Felipe, a Tilde, 55, que trabalha com a família há 26 e guarda do patrão famoso a mais quente recordação. "O piano vivia cheio de coisas em cima, livros, papelada de música, charuto, caixa de fósforo. Eu tinha de levantar tudo, tirar o pó e colocar de volta no lugar, sem arrumar. Ele dizia assim: `desarrumado para mim está arrumado´." Apesar de seus pedidos de silêncio -Tilde não podia ouvir rádio nem conversar alto na cozinha- e do preciosismo com sua bagunça-arrumadinha, Tom Jobim era um bom chefe. "Carinhoso, brincalhão, me mostrava o canto dos passarinhos, os micos na jaqueira. Gostava de arroz, feijão, carninha moída com cenoura. E voltava de Nova York morrendo de saudade do meu café."

E aí Tilde conta esta coisa incrível: "Quando ele ia comer fora, levava para o restaurante um tupperware com bertalha [tipo de hortaliça, semelhante ao espinafre] e quiabo que eu fazia."

Dá para imaginar a cena: Tom Jobim pedindo um prato precioso no restaurante e complementando com a bertalha e o quiabo que trazia de casa. Ana fala das lembranças de Tom com ternura, mas com muita firmeza. "Sinto falta do ambiente de criação, da casa cheia de gente e de música. Principalmente por conta da Maria Luiza, que convive com a memória do pai, mas perdeu cedo essa referência. Não é fácil ser filha de alguém tão forte."

O dia em que Tom me informou

por SÉRGIO DÁVILA, de Washington

Entrei neste jornal no meio de 1993, pela porta da Revista da Folha, como repórter. Na época, uma das seções mais populares era o "Psicotécnico", uma página com perguntas, frases e lacunas que mandávamos a personalidades -"personalidades" era como chamávamos as "celebridades" então. Uma delas foi Antonio Carlos Jobim.

O nome tinha sido idéia minha. "Mas ele topa?", nos perguntamos. Não custava tentar.

Pois não só topou como respondeu um clássico dos "Psicotécnicos", uma partitura de bom humor, com desenhos naquela letra estreita e firme de assinatura de cédula. Numa segunda de manhã, chega à minha mesa um envelopão enviado pela Sucursal do Rio, todo envolto em fita adesiva. Abri como -imagino- uma criança abre um presente esperado de manhã de Natal, data que nunca comemorei.

Dentro, a página toda rabiscada por Jobim. Atrás, à caneta, o recado: "Sérgio, Um beijo. Tom". Peguei o telefone e liguei para agradecer. Já havia feito uma pré-entrevista com ele para o teste -fazia parte da preparação da página-, e conversáramos horas. Então, como agora, ele estava animado. Falava de seu escritório, que eu nunca soube direito onde era, se em sua casa no Jardim Botânico, ou na orla.

Discutimos a letra de "Samba de Maria Luiza", que ele tinha feito para a quarta filha, então com seis ou sete anos, uma das músicas de "Antonio Brasileiro", que andava furando no meu CD player (naquele tempo, iPod não era nem uma palavra). A música, de uma simplicidade e lirismo tocantes, começa com "É do cabelo amarelo/ Dos óio cor de chuchu/ Quando eu virar gente grande/ Me caso logo com tu".

A certa altura, ele interrompeu a conversa e passou a me narrar um arrastão que acontecia naquele momento na praia. Não sei se via ao vivo, da janela, ou pela TV. "Olhe só, os pivetes estão levando tudo!". Ficamos ali, ele de jornalista, narrando-me os fatos que via, eu de ouvinte, ao telefone, sendo informado pela voz de Tom Jobim. Combinamos de conversar de novo depois da publicação da página, cujo original eu guardo até hoje.

Mais alguns minutos, desligamos.

Meses depois, ele morreu.

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