São Paulo, domingo, 23 de maio de 2010

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FINO

Louro José colhe os louros da fama

por ROBERTO KAZ

O sucesso, as tiradas e a saga judicial por trás do boneco mais famoso da TV brasileira

Às 15h de uma segunda-feira, um assistente de palco do programa "Mais Você", apresentado por Ana Maria Braga na Rede Globo, avisou: "Vamos lá, galera!" A música do estúdio foi elevada. A equipe de apoio se escondeu das câmeras. Tranquilo, um homem de camiseta, bermuda e tênis se dirigiu a um buraco atrás da bancada. Vestiu um papagaio de espuma no braço direito, ajustou o microfone à altura da boca e disparou, com a voz esganiçada: "Alô, alô, alô, teste, teste. Um dois três quatro cinco seis sete oito nove deeeeeeeeeeeeiiiiizzzzz!"

A gravação começou –o programa, que divide com a Record a liderança no horário das 8h às 9h30, com média de sete pontos no Ibope, não era ao vivo. Após a exibição de uma reportagem sobre gansos, o papagaio resolveu fazer uma piada: "Ana Maria, qual é a matéria preferida da vaca na escola?" Pausa. "É múuuuuuusica!" Emendou em outra: "E quando o homem vira flor?" Nova pausa. "Quando se senta no vaso, Ana Maria!"

A apresentadora foi anunciar um produto –ato interrompido por uma falha no teleprompter. Com polidez, reclamou: "Imagina se eu fosse chata, o escândalo que eu faria?" O animal, por sua vez, não perdoou: "Cadê o teleprompter? Pagou tão caro em tecnologia e dá nisso? Diretor! Diretor!" Enquanto o problema era sanado, Ana Maria Braga lhe dirigiu a palavra: "Você perdeu na [disputa de] piada hoje, hein?"Ouviu em resposta: "É, hoje você acertou duas".

A frase, dita em tom sóbrio, não vinha do papagaio, mas de Tom Veiga, o homem que, há 13 anos, dá vida ao boneco.

Veiga é casado e pai de quatro filhos. Aos 37 anos, leva no braço esquerdo duas tatuagens –uma com o rosto e outra com o nome da atual mulher, Alessandra, com quem mora na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio . Conheceu Ana Maria Braga pelos idos de 1995. Ele organizava feirinhas de artesanato, que ela divulgava no "Note e Anote", programa de variedades que apresentava na Rede Record. Convidado a integrar a equipe, Veiga aceitou. Virou assistente de palco.

Em março de 1997, Ana Maria Braga teria a ideia que mudaria a vida do assistente. Chovia; São Paulo parara. Presa no trânsito da avenida Rebouças em companhia do ex-segurança e então marido Carlos Madrulha, ela reclamou que o "Note e Anote" vinha logo depois de uma atração infantil. "Precisava de um boneco para fazer uma passagem menos dolorosa", explica hoje, relembrando a cena. Madrulha propôs que se criasse um cachorro. "Cachorro não fala", ela teria dito. "Se precisa falar, então bota um papagaio", retrucou Madrulha. A ideia foi acatada.

"Quando cheguei em casa, corri para a mesa da cozinha e esbocei o boneco", afirma Madrulha. O nome do personagem, segundo ele, surgiu naturalmente: "A Ana já tinha um papagaio chamado José" –batizado assim por repetir as frases ditas pelo filho dela, Pedro José. Faltava encontrar quem desse forma ao desenho. "Fui atrás do pessoal da Display Set, que fazia uns bonecos para a TV Cultura", diz Madrulha. Encomendou cinco.

Semanas depois, Louro José estrearia em rede nacional. Na falta de quem o manejasse, Tom Veiga foi improvisado no posto. Madrulha diz que a escolha foi meritocrática: "O Tom tinha senso de humor. No intervalo, brincava com o câmera, com as meninas do merchandising, com a Ana". Já para Ulda Mandú, que produzia o programa na Record, o critério foi o mais puro improviso. "A única pessoa que acompanhava a Ana no estúdio era o Tom. Só podia ser ele", acredita. Nos primeiros meses, Veiga se dividiu entre as duas funções. Efetivado papagaio, comemorou: "Minha vida mudou da água para o vinho".

IRRITANDO ZÉ CARIOCA

Em setembro de 1997, seis meses após a criação do boneco, teve início um imbróglio judicial ainda sem desfecho. A Rede Record tentou registrar a marca Louro José no Instituto Nacional de Propriedade Industrial, ?o INPI. O pedido foi negado, em função de um documento pré-existente, em nome de Ambar Agência de Eventos e Produtora Ltda –a empresa de Ana Maria Braga. Antevendo um futuro glorioso à cria, Ana Maria tratara de atrelar oficialmente seu nome ao do papagaio, especificando que a ave poderia ser usada em "comercial, desenho animado, teatro, sorteio, bingo, loteria, desfile, brinquedo, baralho, bola de gude, mamadeira, chocalho, peteca, livro, caderno e cartucho para videogame", entre várias outras funções. A Record, mesmo servindo de palco para as peripécias do boneco, foi obrigada a aceitar a completa ingerência comercial sobre ele.

Naquele mesmo ano, a marca Louro José enfrentou outro empecilho administrativo, impetrado pela Disney. O documento dizia: "A oponente, que é legítima titular do mundialmente notório desenho artístico denominado ‘ZÉ CARIOCA’ (...), criação do imortal Walter E. Disney, não pode concordar que terceiros obtenham registro de desenho que IMITE (ainda que de forma mal cuidada) sua obra intelectual (...)". Mais uma vez, a disputa foi vencida por Ana Maria Braga.

Em janeiro de 1998, um novo capítulo se iniciava. Os artistas Antonio Marcos Costa de Lima e Renato Aparecido Gomes, da Display Set, empresa contratada por Madrulha para fazer o boneco, tentaram registrar três croquis do papagaio na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, responsável por zelar pelo direito autoral de qualquer objeto criado no Brasil (leia mais na pág. 54). O pedido foi negado, também em função de um registro anterior, em nome de Madrulha.

BRIGA DE PAPAGAIO

Em entrevista ao "Bom Dia Mulher", da Rede TV, em 2005, os artistas da Display Set contaram como reagiram ao saber da notícia. "Quando vimos que [o boneco] havia sido registrado, deu um desânimo na gente", disse Aparecido Santos. "Nós já havíamos criado vários personagens para a TV Cultura. Na maioria dos casos, íamos ao departamento jurídico da emissora e cedíamos os direitos autorais. Isso é negociado. Fizemos o Xique Xique e o Nheco e Nheco para o Raul Gil. Tudo conversado. Mas, no caso do Louro, não teve isso." No tocante ao dinheiro, ele disse ter recebido "só o valor da matéria prima para fazer o boneco".

O advogado Marcio Carvalho da Silva representa a Display Set na ação pelos direitos autorais. Ele diz que os clientes relutaram em abrir o processo: "Não são pessoas de posse. Se perdessem, teriam de pagar os custos das duas partes".

Em fevereiro de 2004, a ação foi impetrada na 6ª Vara Cível de Santo Amaro, em São Paulo. Por telefone, Carlos Madrulha disse à Serafina que "é como se o arquiteto que projetou um prédio fosse processado pelo pedreiro que o construiu". Já o juiz Décio Luiz Rodrigues, encarregado do caso, pensa diferente. De acordo com nota publicada em 2005 na revista "Veja", segundo a sentença proferida em julho daquele ano, "ainda que a idealização do personagem seja de Ana Maria e seu ex-marido, a criação e materialização do Louro é dos artistas Antonio ?Marcos Costa de Lima e Renato Aparecido Santos, da Display Set Produções".

O advogado Sérgio Fama D’Antino, que representa Carlos Madrulha e Ana Maria Braga, reclama que o caso foi julgado sem que seus clientes fossem convocados. A Globo não se manifesta. O processo, em fase de apelação, corre em segredo de Justiça. Se confirmada a sentença, Ana Maria Braga terá, possivelmente, de indenizar a Display Set de forma retroativa, contabilizando os 13 anos em que o personagem esteve no ar.

A LOURA E O LOURO

Via de regra, Ana Maria Braga e Tom Veiga gravam a programação da semana às segundas e ?terças-feiras, nos estúdios da Globo no Rio. Veiga fica atrás de uma bancada com piso rebaixado. Por precaução, um segundo Louro José fica de plantão nas coxias, caso o oficial estrague (cada boneco dura em média três meses; na última década, a Globo já sepultou mais de 30 Louros Josés). Atualmente, os novos papagaios são confeccionados por Totoni Silva, conhecido na emissora por ter criado personagens do extinto programa infantil "TV Colosso".

Em viagens, um Louro José vai no bagageiro. O outro segue na cabine, confortável, em companhia da equipe. De noite, os dois dormem no quarto com Veiga, que, em 13 anos, jamais foi substituído no manejo da ave.

Ana Maria e Veiga chegaram à emissora carioca no final de 1999. Na vinheta que anunciava o "Mais Você", Louro José bradava, com um crachá pendurado no pescoço: "Mãe, olha eu aqui na Globo!". Amparado pela estrutura da nova casa, a carreira do papagaio, a partir de então, sofreria uma ascensão meteórica.

De pronto, a exemplo de sua companheira de estúdio, a ave teve a silhueta repaginada. Em seguida, Louro José foi lançado em carreira comercial, com bonecos, discos e jogos de cozinha vendidos à sua imagem e semelhança.

O sucesso fez com que a apresentadora tomasse cuidado especial com o papagaio. Qualquer contrato referente à ave é negociado diretamente com ela. Para proteger o mito, Tom Veiga não pode ser fotografado ou entrevistado. A Globo não revela seu salário. Carlos Madrulha, que empresariou Tom e Ana até 2007, diz que, naquela época, Veiga ganhava cerca de R$ 10 mil mensais, fora participação na venda de produtos. "Não é o que se imagina. O Louro José não é nenhum Tio Patinhas", diz.

Quando estreou na televisão, o papagaio ocupava meros 20 minutos das quatro horas diárias do "Note e Anote". A produtora do extinto programa, Ulda Mandú, diz que logo as pessoas passaram a querer saber "mais do bichinho do que da Ana". Para Marlon Rodrigues, que coproduziu a atração da Record e hoje é diretor comercial da Rádio Metropolitana, a fama do boneco se deve ao talento de Veiga: "O cara soube inventar um personagem que tem charme. O Louro é palhaço, galã, paquera a mulherada. O Ratinho foi líder de audiência várias vezes, e ninguém mais fala do Xaropinho [boneco que contracenava com o apresentador]".

Ana Maria Braga acha que o programa existiria com ou sem ?o personagem. "Mas talvez não atingisse as crianças. O Louro dá uma leveza", acredita. Ela diz que tanto o papagaio quanto Veiga são companheiros fundamentais em sua vida: "Chego a sonhar com o Louro. Para mim, ele existe.

De quem é
o Louro?

Um registro feito no Instituto Nacional de Propriedade Industrial, o INPI, diz respeito ao uso comercial de uma marca. Ou seja, o nome "Louro José" foi registrado por Ana Maria Braga para que pudesse aparecer em produtos variados. Já o registro feito na Escola de Belas Artes da UFRJ zela pela autoria do objeto, sem ter necessariamente um fim comercial. Pela lei brasileira, o direito autoral pertence a quem desenha o objeto, e não a quem o encomenda. Se for comprovado que o papagaio foi desenhado pelos artistas da Display Set, o direito de imagem passará a ser deles.

A alma loura do programa
POR BIA ABRAMO

Não dá para entender bem a qual papel se presta o louro da loura. Filho levemente impertinente, mas atento? Marido bonachão e compreensivo ausente? No site do boneco, a apresentadora é chamada de mãe, mas a hipótese do cônjuge também cabe: sabemos que muitos maridos dessexualizam suas mulheres a ponto de se botarem no lugar dos filhos.

De certo, temos que é uma presença masculina improvável: toda ouvidos, participativa das minúcias mais tontas das quais se compõe a vida doméstica. Suas intervenções são espertas a ponto de concordar com a "mãe" naquilo que é essencial e malandras o suficiente para mangar dela nos detalhes.

Essa ideia do boneco como contraponto levemente desafiador e engraçado não é invenção de Ana Maria Braga nem da Globo. Remonta aos bonecos de ventríloquo e tem uma vasta linhagem na TV. Agildo Ribeiro tinha o seu rato de orelhas redondas e voz irritante, o Topo Gigio. Na Vila Sésamo, o Big Bird se tornou Garibaldo, azul e amigo de outra Braga, a Sonia. Todos servem para facilitar a comunicação com o público ou, melhor, com a sua ambiguidade: um tantinho desconfiado, mas doido para aderir ao que a TV diz.

Louro José é, portanto, a alma do programa. Simplório, infantil, sua função é ajudar a reduzir as histórias reais das mulheres de classe média baixa a contos de fada de um sucesso aparentemente admirado, mas bem colocado na devida perspectiva: pequena ?e beeem distante da fulgurância da apresentadora. Ou seja, no fundo, eles são exatamente a mesma pessoa.

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