São Paulo, domingo, 25 de abril de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PASSAGEM

Conheça o hotel encravado nas grutas de Matera, ao sul da Índia

por ELIANE TRINDADE, DE MATERA (ITÁLIA)

Luxo primitivo

Hotel-butique no sul da Itália é ambientado em grutas pré-históricas em uma das cidades mais antigas do mundo mas com confortos do século 21

A sólida porta de madeira de demolição, com ferrolhos de ferro fundido, abre-se para um espaço que conta 14 mil anos de história. Ali, está uma gruta de 140 m2, em cujas paredes se encontram rastros do percurso do homem desde a Idade da Pedra (12.000 a.C).

Quatro ambientes formam uma das 18 suítes de um hotel-butique encravado nos sassi (seixos) de Matera, cidade no sul da Itália, tombada Patrimônio da Humanidade pela Unesco em 1993.

O Le Grotte della Civita, do grupo Sextantio, simboliza o renascimento de uma das cidades mais antigas do mundo. Localizada na Basilicata, uma das regiões mais pobres da Europa, Matera é um tesouro arqueológico. Suas construções escavadas desde o Paleolítico se confundem à rocha calcária. Lembra a Capadócia, na Turquia. A cidade foi cenário de mais de 50 filmes, entre eles Noites com Sol, dos irmãos Taviani (1990), e A Paixão de Cristo, de Mel Gibson (2004).

O Sextantio de Matera não cabe na classificação de cinco ou seis estrelas. Leva, no entanto, ao extremo a proposta de oferecer uma nova fronteira para a hospitalidade de luxo: econômica em ostentação e rica em detalhes de requinte.

Ali, o luxo está na simplicidade. Nos quartos -ops, grutas- não há jacuzzi, frigobar, TV de plasma e outros itens básicos em hotéis na mesma categoria.

Paga-se entre 275 e 495 por uma diária para usufruir uma atmosfera de austeridade, que remete ao clima de monastério. Mas os confortos modernos estão lá, alguns imperceptíveis. Dois exemplos de concessão à modernidade: a rede wireless e o sistema de calefação embutido. Outra licença são as louças de design dos banheiros.

NO CORAÇÃO DA TERRA
A sensação de dormir em uma das grutas-suítes é a de estar de volta a um mundo primitivo, cercado apenas do essencial. É quase sagrado, no sentido de se reconectar ao coração da terra.

O lugar convida à introspecção. É surpreendentemente quente (considerando que a estrutura é de pedra), graças ao sistema de aquecimento, mas também às velas espalhadas em pontos estratégicos. O calor emana ainda das chamas da lareira da sala de banho. Um leve odor de alecrim perpassa os ambientes.

Com evidente orgulho, Margaret Berg, uma das sócias (leia mais à pág. 34), mostra as dependências espalhadas por 2.000 m2 numa zona privilegiada do centro histórico.

O café da manhã é servido em uma mesa rude de madeira. A proposta não é a de uma decoração rústica, esclarece Margaret. Pensei em algo, ao mesmo tempo, dramático e elegante. Não queria um hotel-museu.

A elegância está lá, mas o espaço tem também algo de infantil, de inacabado. Que tal uma refeição chique, à luz de velas, na casa dos Flintstones? É recorrente a sensação de ter chegado a Bedrock, cenário do desenho animado que transporta para a Idade da Pedra Lascada o bem-estar dos tempos modernos.

ESTÁBULO CHIQUE
A decoração minimalista do hotel preservou pisos e paredes irregulares, próprios de um abrigo escavado séculos atrás para abrigar famílias numerosas e seus animais.

Situados no fundo das grutas-residências, os estábulos se transformaram em banheiros. Uma manjedoura ganha vida útil como pia. Braseiros de madeira e ferro, em torno dos quais os materanos se sentavam para se aquecer e conversar, servem de castiçais.

Colchões modernos são emoldurados por cabeceiras de madeira dos séculos 17 e 18. As roupas de cama e de banho -em linho- pertenceram a enxovais de famílias da região. Foram garimpadas e recosidas peça por peça.

O hotel é a antítese de uma Matera que foi motivo de vergonha, depois de viver momentos de fausto ao longo de sua trajetória. Em 1957, todo o centro histórico da Cittá dei Sassi foi desapropriado: 17 mil moradores foram retirados das residências trogloditas, onde viviam sob péssimas condições sanitárias.

Na miséria absoluta, dividiam o exíguo espaço e a pouca comida com animais. Eram vítimas de toda a sorte de doenças. As condições subumanas foram descritas no clássico Cristo Parou em Éboli, de Carlo Levi, como um inferno dantesco.

Em meados do século 20, aqui se vivia em grutas como na Idade Média, relata Nicola Rizzi, presidente da associação cultural La Scaletta, que tem a custódia de importantes monumentos.

A sede da entidade, comprada por 1 milhão de liras - cerca de 500 - vale hoje 2 milhões, depois que a cidade foi tombada. Matera é única no mundo por contar em suas ruas e construções o percurso do homem desde os buracos negros da Pré-História ao buraco negro do espaço, diz Rizzi. Ele se refere à escuridão das cavernas e ao Centro Geodésico Espacial, situado a poucos quilômetros dali.

De volta à máquina do tempo do Sextantio, o mofo secular de suas paredes são coisa do passado. No cuidadoso trabalho de restauração, a sujeira foi retirada manualmente com esponja.

O limo verde que impregnava o lugar abandonado há mais de cinco décadas desapareceu, enquanto ressurgia a cor branca da rocha calcária. Preservamos a patina natural feita pelo tempo, explica Margaret. Nas obras, a maior pendenga com os operários e artesãos era a de não imprimir um ar asséptico e uniforme, de novo, às grutas.

Na novíssima caverna-suíte, uma janela foi escavada na lateral por homens que estão deixando as marcas do século 21 naquela paisagem. Dali, vislumbra-se uma paisagem natural impressionante: o cânion do rio Gravina e, logo à frente, uma sucessão de igrejas rupestres que serpenteiam o topo da montanha. A perfeita tradução de Matera.

SOB O SOL DA BASILICATA
A alemã de origem polonesa que fugiu para a Itália e construiu o seu sonho de pedra

Procura-se jovem, alta, loura, olhos azuis. Os predicados poderiam estar em um anúncio de uma agência de modelos. Mas a descrição física bate com um comunicado que a Interpol, a polícia internacional, emitiu em 1984.

Começava uma busca, de quatro meses, pela caçula da família Berg. Margaret estava desaparecida e acabara de completar 15 anos. Surrupiou 5.000 marcos do pai (o equivalente 2.500) e pegou um avião em Berlim rumo a Barcelona. De lá, seguiu para a Bulgária. Foi parar em Dubrovnik, na Croácia. Pegou, então, um navio que a levaria a um porto onde ancoraria sua vida: o sul da Itália.

A alemãzinha de origem polonesa desembarcou em Bari. Vinda de uma família teutônica, chegar à Itália foi uma explosão de vida e calor humano, recorda-se. Não titubeou: Quero viver aqui.

Sua única referência era um lugarejo chamado Matera, onde trabalhava um arqueólogo amigo de seu pai. A fugitiva juvenil ficou em um convento, pagando pouco enquanto desbravava a região.

Margaret virou atração na cidadezinha. O contraste com os tipos mediterrâneos chamou a atenção da polícia. Um dia fui parada pelos "carabinieri", que me encheram de perguntas. Acabou confessando a fuga e foi convencida pelas freiras a ligar para casa.

O pai apareceu dois dias depois. Diante da teimosia da filha, que insistia em ficar em Matera, ele consentiu, desde que ela voltasse a estudar. Ele me deu dois anos aqui, conta Margaret, 41, que se inscreveu então em um curso de arte. Minha família queria que eu seguisse a carreira diplomática, eu queria ser bailarina, o que para minha mãe, de origem nobre, era uma profissão do povo, lembra. Estudante de pintura, passou a desenhar as grutas da cidade italiana que a acolheu.

Aos 23 anos, casou-se com um materano. Vestida de azul, para desgosto da sogra italiana. O casamento acabou quatro anos depois.Margaret trabalhou como modelo e viveu em uma pensão de uma senhora, cuja família foi retirada das antigas grutas que hoje fazem parte do Sextantio de Matera.

A coincidência só a fez acreditar que o seu sonho de pedra era realizável. Em 2000, encaminhou o primeiro pedido para explorar comercialmente a área, antes destinada a um museu.

Foram cinco anos de queda de braço com a burocracia. Era o primeiro round. Faltava um sócio capitalista. Mandou o projeto para ícones de estilo como Giorgio Armani e Miuccia Prada, mas as conversas não foram adiante. Cada um tinha a sua ideia de como fazer um hotel nas grutas.

Já estava angustiada quando leu uma reportagem sobre um empresário que recuperava cidadelas medievais condenadas ao abandono. Ligou para Daniele Kihlgren e, um mês depois, viraram sócios. O projeto de Margaret foi incorporado à rede Sextantio.

O sócio investiu 2 milhões, mesmo sabendo que Margaret não era expert em hotelaria. A convite de um amigo, ela havia sido hostess de um hotel em um balneário. Teve breves experiências em hotéis de luxo. Ouvia reclamações dos clientes sobre o exagero do velho luxo. Daí veio a inspiração de que tipo de hotel eu deveria criar.

Em maio de 2009, logo após a inauguração, o hotel de Margaret foi saudado pelo jornal The New York Times como um dos dez lugares mais interessantes do mundo para se hospedar. Sob o sol da Basilicata, a alemã encontrou bem mais que calor humano.

Texto Anterior: FINO: Uma conversa com Silvio de Abreu, autor da próxima novela das oito
Próximo Texto: GASTRONOMIA: Direto da terrinha, o restaurante mais antigo de Portugal e seu chef moderninho

Índice



Clique aqui Para deixar comentários e sugestões Para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É Proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou imPresso, sem autorização escrita da Folhapress.