São Paulo, Domingo, 26 de Fevereiro de 2012

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FINO

ENTRE O REAL E O ABSTRATO

por Silas Marti

O FOTÓGRAFO ALEMÃO WOLFGANG TILLMANS, precursor da estética despojada realista e hoje mergulhado na abstração de cores e texturas, PREPARA SUA PRIMEIRA MOSTRA NO BRASIL, no museu de arte moderna de São Paulo

Uma fila parece se estender ao infinito na frente do Berghain, uma antiga usina de energia transformada na balada mais concorrida de Berlim. É um bunker de concreto que sua e treme ao som de música eletrônica. Em mensagens pelo celular, Wolfgang Tillmans dá instruções sobre como contornar a massa de gente, chamar a atenção de um dos guardas do lugar e dizer que é seu convidado. Depois de dissecar uma lista de nomes, um segurança carimba três quadrados seguidos no meu braço e me deixa entrar.

Lá dentro, fotografias dele adornam o alto das paredes de um bar, ambiente que aparece com frequência e alta voltagem em sua obra. São duas imagens abstratas, resultado da manipulação do papel fotográfico no quarto escuro, e o retrato de um garoto nu. Estão ali, decorando a pista que começa a ferver às seis da manhã, os dois lados da obra de Tillmans. Primeiro, um retrato cru e sem freios da cultura clubber dos anos 1990. Depois, campos cromáticos sem figuras, que ele constrói no laboratório roçando objetos contra a superfície do negativo.

Toda a atenção ao detalhe aparece também em seu estúdio, no bairro de Kreuzberg, velho reduto de punks e anarquistas de Berlim. Tillmans deixou Londres, onde viveu por duas décadas, para centrar a produção na capital alemã há um ano. No ateliê, no segundo andar de um prédio modernista dos anos 1920, estão seus recortes fotográficos, obras prontas ou descartadas e maquetes de todas as exposições que ele prepara, entre elas uma em Estocolmo e sua primeira mostra no Brasil, que chega ao Museu de Arte Moderna de São Paulo em 27 de março.

Tillmans já expôs sua obra nos museus mais importantes do mundo, do Guggenheim de Nova York à Tate de Londres. E não há revista descolada no planeta que não tenha publicado suas imagens de jovens hedonistas ou que não tenha copiado essa estética despojada, às vezes absurda e quase sempre carregada de sexo, em seus editoriais. Aos 43 anos, o alemão virou sinônimo de um estilo nas últimas duas décadas, um precursor da era da banalização de imagens que se multiplicam nas redes sociais.

"Quando comecei a fazer essas imagens, havia um motivo para mostrar uma vida noturna, de liberdade e sexo sem hierarquias. Mas quem é jovem não tem noção da própria juventude, então não estava querendo falar de mim, queria falar de gente", conta. "Agora não vejo mais possibilidades nesse formato de fotografia. Não fazia algo documental, buscava a construção de uma ficção que parecesse real. Ninguém escala árvores pelado, mas isso pode existir."

Ele fala de seus amigos Alex e Lutz fotografados nus na copa de uma árvore. Não foi um flagra, era a imagem posada de um homem e de uma mulher num momento de suposta -e absurda- realidade.

Sua imagem mais famosa, de um menino punk urinando sobre uma cadeira de escritório, também foi toda orquestrada. "Tudo é construído ou posado de alguma forma. A presença de uma câmera já é uma interferência em qualquer situação."

Tanto que demorou quatro anos para convencer um barman de Londres a abaixar as calças e se aliviar sobre uma das cinco cadeiras que adornam em seu estúdio, do mesmo modelo das que aparecem em retratos que ele fez da modelo Kate Moss e do músico Michael Stipe, do R.E.M..

"Não há nada demais acontecendo nessa foto, só alguém que faz xixi numa cadeira", diz Tillmans. "É um único deslocamento, uma cadeira no lugar de uma privada. Até hoje fico surpreso que tenha chocado. Ela consegue ser mais escandalosa do que a imagem de alguém sendo decapitado."

Mas Tillmans já não busca o choque. Sua obra passou a focar cores e texturas mais do que uma narrativa. "Fiz dez anos de fotografias não figurativas, sem usar lentes, só manipulando os materiais. Isso foi para tentar desacelerar o consumo de imagens. Queria fazer uma fotografia que não faz referência a nada além dela mesma."

Quando montadas nos museus, essas fotos enchem as salas com manchas de cor e borrões que parecem aleatórios. "As imagens abstratas precisam ser tão interessantes quanto a realidade porque são reais, estão diante do espectador", diz ele. "Elas precisam provocar a mesma emoção."

No meio do caminho entre a figura e a ausência dela, Tillmans fez uma série de imagens de texturas. São roupas vistas bem de perto, camisetas e jeans amassados de amantes que já morreram, pedaços do céu à espera da passagem do antigo Concorde sobre Londres ou até mesmo pedregulhos instalados numa calçada para evitar que mendigos durmam em frente às lojas.

Nesse ponto, realidade e ficção parecem se fundir. "Meu trabalho fala de perda, da fragilidade da vida", diz Tillmans. "Até uma textura pode ser política, e a presença física de uma obra de arte numa sala tem certo poder. É uma realidade fantástica."


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