São Paulo, domingo, 26 de julho de 2009

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CAPA

Antunes Filho

por GUSTAVO FIORATTI e SÉRGIO ROVERI

A cinco meses de completar 80 anos, Antunes Filho vive em dois tempos: o da energia juvenil, que o mantém em permanente estado criativo, e o do desgaste do corpo, que acha "uma merda". A convite de Serafina, personalidades fazem perguntas ao diretor

O HOMEM DUPLO
Antunes Filho não tem e-mail e não usa celular. Jamais guiou um automóvel, mantém uma distância anacrônica dos computadores e se irrita diante de pessoas que sacam do bolso aparelhinhos capazes de tirar fotografia e reproduzir jogos. O que ele mais aprecia na vida é "ficar se coçando enquanto as nuvens passam". Se elas trouxerem chuva, tanto melhor. Essa atitude contemplativa diante do avanço dos tempos não o impediu de desenvolver uma aptidão ferrenha para o trabalho e a pesquisa –e muito menos eclipsou a ousadia estética que fez dele um dos diretores mais fundamentais do teatro brasileiro.

A cinco meses de completar 80 anos, ele circula –embora afirme que o espelho lhe prove o contrário– com uma impressionante energia juvenil por seu quartel-general, a sede do CPT (Centro de Pesquisa Teatral) onde, no momento, seus olhos atentos tentam dar conta, simultaneamente, de três produções. A primeira, com estreia prevista para 14 de agosto em São Paulo, é "A Falecida Vapt-Vupt", nova leitura da tragédia de Nelson Rodrigues. A segunda, também em processo de ensaios, é um musical baseado na obra do compositor Lamartine Babo (1904-1963). O pouco tempo que lhe resta é dedicado à adaptação do romance "Triste Fim de Policarpo Quaresma", de Lima Barreto (1881-1922), que deve entrar em cartaz no início do ano que vem. "Isso aqui é o meu playground", diz, enquanto enche mais um copinho plástico com o café da garrafa térmica que ele próprio carregou até a sala onde acontece a entrevista. "Quero que me venha mais trabalho, quero que o baralho da vida me dê novas cartas para que eu continue no jogo."

Preocupações ele alega não ter. Mas, depois, se corrige: preocupa-se, sim, em saber se o São Paulo vai ganhar ou não. Quanto ao resto, afirma que está tudo nos conformes. Então fica um pouco em silêncio, ajeita com mãos impacientes o lenço de seda que traz envolto no pescoço e, por fim, assume que é atormentado por uma outra grande preocupação: a picaretagem nos palcos e os atores sem talento que fazem teatro apenas para inflar o ego. Todos eles, na sua opinião, deveriam ir para a televisão, onde não "encheriam mais o saco de ninguém" e onde, com certeza, ganhariam o suficiente para passar as tão sonhadas férias na Flórida. A televisão é um destino que ele descarta. "Já fiz. Não preciso mais."

Se fosse contabilizar sua primeira experiência teatral, Antunes Filho teria hoje 68 anos de carreira. Aos 12, enfiou-se debaixo da escada do vizinho e só saiu de lá após ver concluída uma pequena peça em que flertava com o universo do circo. Dessa época, recorda-se também de que era um obscuro lateral-direito do Cometa Futebol Clube, time formado pelos alunos do Colégio Paulistano que um dia bateu um bolão sob a arbitragem de alguém que, como ele, encontrou mais reconhecimento no palco do que nos gramados –o crítico Décio de Almeida Prado.

As respostas de Antunes Filho costumam ser acompanhadas de prolongados sorrisos, ainda que o tema, como a velhice, por exemplo, revele-se incapaz de despertar sua simpatia. "A pior coisa do mundo é você envelhecer, eu odeio", afirma em um dos raros momentos em que sua voz envereda por um tom mais áspero. "Tem pessoas que dizem assim: é bom ser velho. Eu detesto quem fala isso. É mentira, é falácia."

Fernando Meirelles, cineasta
Você formou uma safra de excelentes atores. A maioria diz que aprendeu muito contigo, mas também sofreu para burro. Ser duro com os atores é um método ou é seu jeitão mesmo?

As pessoas confundem uma coisa com outra. Eu gosto de disciplina. As pessoas aprendem as coisas com método. Como vou ter um método se não houver disciplina, organização? Com esse método, eu procuro dar uma base espiritual para que a pessoa ganhe autoestima.

Stênio Garcia, ator
Você foi a pessoa mais importante da minha formação. Não só de ator, mas também de vida. Você acha que o verdadeiro diretor tem a função de deixar sua marca na trajetória de um ator?

O diretor tem que ter uma formação humanista e humanitária. Não sou encenador, sou diretor de teatro. O encenador é uma coisa meio fria, meio gelada, que só vê o visual. Como você quer que eu faça teatro, e que tenha pessoas fazendo teatro comigo, sem falar da condição humana? É importante que haja uma relação ativa e humana entre o diretor e atores. Não é que eu queira deixar alguma coisa. A coisa é que se deixa.

Giulia Gam, atriz
Você vê essa virada de milênio, a quebra de tantos paradigmas e valores, com otimismo ou pessimismo? Qual papel o teatro ganha nesse novo mundo?

Sinceramente, vejo com muito pessimismo. Apesar de certas melhorias sociais aqui no Brasil, no mundo eu vejo o desemprego e a fome. Quem tem um pouco mais de grana está vivendo uma sociedade de espetáculo, numa hiper-realidade, onde o consumo é demasiado. Nesse contexto, o papel do teatro é levar isso para debate. O que não significa fazer peças políticas, mas peças que levem a uma condição política. Que preparem o espectador para que ele tenha um pensamento próprio. Isso é uma condição da arte. Mas o teatro é muito vivo, epidérmico. A energia vai do palco para a plateia e da plateia para o palco. O teatro tem muita eficiência nessa troca.

Matheus Nachtergaele, ator
Como um ator se dá em autoria?

Estou trabalhando com o Lee [Thalor] há algum tempo, como já trabalhei com a Juliana Galdino. Eles são coautores. É um tripé: ator, diretor e autor. O ator tem que estar presente. Se ele não está, a peça fica uma droga. Por isso digo "sou diretor de teatro, não sou encenador". Eu preciso do organismo humano ali do meu lado. Se o Lee não colaborar comigo, não consigo fazer um Lima Barreto. Ator vaca de presépio não sai do lugar.

Michel Melamed, performer
Antunes, vamos logo ao que interessa: qual é o sentido da vida?

(Risos) Isso aí sou eu quem vai responder? O sentido da vida eu não sei, mas o nosso sentido na vida eu sei. É de alegria, agradecer por existir a vida. É fundamental vibrar com a vida. E o teatro é maravilhoso, uma das maneiras pela qual você pode vibrar melhor.

Paulo Santoro, dramaturgo
Por que razão o dramaturgo Antunes Filho esconde suas boas peças na gaveta?

Pudor. Mas, de vez em quando, escapa alguma coisa, alguma tentativa. A peça "Foi Carmen" foi uma tentativa. Outra coisa que vai estrear também, o "Lamartine Babo", eu escrevi o texto. Tem uma dramaturgia também. Muito inspirada na maneira de Pirandello (dramaturgo italiano, 1867-1936) escrever. As outras eu deixo em casa porque são muito ferradas.

José Celso Martinez Corrêa, dramaturgo e diretor
Você, que já fez peças populares, acredita na possibilidade de comemorar seus 80 anos com uma retomada de um teatro para multidões, como na Grécia Antiga?

Acho maravilhoso para quem sabe fazer. Infelizmente, não tenho essa capacidade. Não vou fazer algo que eu não sei fazer. Já fui convidado para dirigir ópera. Eu falo: porcamente, eu faço teatro, você acha que eu vou fazer ópera?

Alberto Guzik, ator e professor
Há um método para desaprender o aprendido, como você fez tantas vezes em suas criações, e reaprender a ver com olhos limpos? Ou será que esse processo é um troço inato que ou se tem ou não se tem?

Se você pegar a trajetória de minhas obras, você não encontra repetição de nenhum estilo. Estou sempre apagando, sempre tentando lançar num rio as coisas que já fiz. Eu odeio as coisas que já fiz. O que eu repito é o coro. Eu gosto de coro, que sempre tem uma coisa social mais ampla. É uma voz mais importante do que a voz individual. Quando faço uma peça, fico lamentando as outras 359 maneiras de se fazer aquela mesma peça. É um colapso que eu sofro, por ser obrigado a escolher, entre tantos, um único jeito. Gosto muito de mexer com a estrutura do próprio teatro. O espetáculo "A Falecida Vapt-Vupt" é uma experiência nova, em que eu procuro trasladar para o teatro, sem utilizar material eletrônico, aquilo que hoje eu mais gosto como manifestação artística, que é a videoarte.

Juliana Galdino, atriz
Quais são os avanços (ou retrocessos) que você percebe no trabalho dos atores desde quando começou a fazer teatro?

Você vê Procópio Ferreira, Jaime Costa, Dulcina. Havia uma técnica de expressão teatral para determinado gosto. Daí, entrou a avalanche do (Constantin) Stanislavski (diretor e pedagogo russo, 1863-1938), virou cultura de axilas, todo mundo carregava debaixo do braço um livro dele, mas pouca gente entendia o que aquilo queria dizer. Aquilo é um método para você entender e desenvolver de uma forma orgânica, não racional. Muito usado numa época em que se procurava esse realismo naturalista. Eu vim depois, com um método para voz e corpo. Para que o ator fosse magnífico e dele brotassem coisas. Tive muita dificuldade em implantar a coisa da voz. Hoje, vejo isso muito bem implantado. É um processo de décadas.

Valmir Santos, jornalista
O espectador brasileiro é condescendente? Qual o papel do público no espetáculo?

Como houve uma certa abertura social, muito benvinda, vai muito mais gente ao teatro do que há dez anos. A política governamental foi boa nesse sentido. Mas o público que está tendo acesso ao teatro não tem cultura para acompanhar. Eles estão mais satisfeitos por estarem dentro de um teatro do que por saber o que é o teatro. Cabe a nós e à crítica dizer ao público o que é. Você vê peças horríveis e o público está lá gritando "bravo". Ele não tem culpa. A culpa é nossa., que não o ensinamos.

Elias Andreato, ator e diretor
O que se ganha e o que se perde para um artista depois dos 70 anos?

Eu podia dizer que ele perde vitalidade. Mas não a vitalidade de encenação, que eu mantenho. A pergunta é: "O que se perderá depois dos 70 anos, o que se pode perder?". Eu não quero perder nada. Quero continuar no jogo. É horrível envelhecer. Eu odeio. Tem gente que fala: é bom ser velho. É uma merda. Eu odeio quem fala isso, porque é mentira. A gente quer sempre ser garoto, ficar brincando na rua, jogar futebol, revista em quadrinhos.

Gustavo Fioratti, repórter da Folha
Como é sua casa? O que você vê da janela do seu quarto?

Uma janela dá para um prédio. Deixo ela fechada. Da outra, vejo árvores, plantas, o cimo de casas, é bonito ver o cimo das casas. Minha casa tem muito jardim. Muitas plantas, eu gosto de plantas. Tenho minha primavera, uma cerejeira começando a florir.

Sérgio Roveri, jornalista e dramaturgo
Qual personagem você vê quando olha no espelho?

Eu me via antes como alguém que fazia um teatro mais ou menos comercial. Era bem-sucedido, mas não estava feliz. Depois de "Macunaíma" (1978), ficava mais satisfeito. E, agora, quando me olho no espelho... Chato, não é? Você começa a envelhecer e não gosta. Eu vejo uma triste figura lutando contra uma figura vibrante dentro de mim. Um contraste. A idade, e o moleque.

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