São Paulo, Domingo, 26 de agosto de 2012

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IN LOCO

UMA HISTÓRIA AMERICANA

por RAUL JUSTE LORES, de Nova York

O PARQUE SUSPENSO QUE MUDOU A PAISAGEM URBANA DA CIDADE FOI CRIADO POR DOIS CARAS COM MUITA GARRA E NENHUMA EXPERIÊNCIA.
Nova york jamais será a mesma

"Cheguei atrasado à audiência pública e fui sentar ao lado de um cara gatinho que ELEONORA DE LUCENA, do Rio estava ali", recorda Joshua David. "Você não espera ver gente bonita nessas reuniões de bairro."

Em 1999, 20 moradores do Chelsea apoiavam a proposta do prefeito Rudolph Giuliani de demolir uma antiga ferrovia elevada, construída nos anos 1930 e sem uso desde 1980. Cocô de pombo, prostitutas, drogas, bêbados vomitando -os presentes enumeravam as dores de cabeça do elevado de 2,6 km, 1 km a menos que o Minhocão paulistano, conhecido como High Line.

Apenas os dois jovens gays, Joshua David e o tal "gatinho", Robert Hammond, defenderam a preservação da estrutura.

Em apenas 13 anos, os dois viraram celebridades em Nova York. Eles transformaram o elevado em um parque suspenso, que atraiu 3,7 milhões de visitantes no ano passado -1 milhão a mais do que o MoMA.

Administradores do negócio, eles acabam de anunciar a terceira fase da reforma do elevado, que ficará pronta em 2014. Em 2015, a nova sede do museu Whitney deve ser inaugurada ali ao lado.

Entre jardins e disputados bancos e espreguiçadeiras, locais e turistas circulam a nove metros da rua, de onde podem ver o rio Hudson e os arranha-céus da cidade.

A área antes degradada, cheia de galpões e matadouros, atraiu investimentos de mais de R$ 4 bilhões (12 vezes o investimento do shopping JK). Na vizinhança, o quem-é-quem da moda mundial, com lojas de Diane von Furstenberg, Alexander McQueen,Yohji Yamamoto e o brasileiro Carlos Miele, além de uma enorme Apple Store e 30 galerias de arte.

Sem experiência em política ou urbanismo, a dupla que impediu a demolição não tinha casa própria nem carteira assinada.

Morador do Chelsea, Joshua David, então com 35 anos, trabalhava como free-lance para revistas de viagens. Robert Hammond, residente do West Village e com 29, trabalhava com sites e era artista plástico nas horas vagas.

Não houve paquera e eles jamais namoraram, mas trocaram cartões naquela reunião e, pouco tempo depois, criaram a ONG "Friends of the High Line" [amigos do High Line].

Na primeira vez em que tiveram autorização para subir no elevado, a surpresa: uma espessa cobertura vegetal escondia os trilhos. Flores silvestres e até árvores tinham dominado a ruína industrial.

Eles acharam que o destino natural da estrutura seria um parque, mas estavam abertos a outras propostas. "Quando se tem um projeto fechado, é muito mais fácil surgir oposição", diz Hammond. Mas ainda enfrentariam muitos obstáculos.

Os atentados de 11 de setembro de 2001 adiaram qualquer obra que não fosse relacionada com a reconstrução do centro financeiro. E, poucos dias antes de deixar o cargo de prefeito, em 31 de dezembro do mesmo ano, Giuliani assinou a demolição do elevado.

DO ZERO

Sem um tostão, eles contrataram advogados para barrar a demolição e produziram brochuras com fotos do High Line para sensibilizar políticos e empresários. Tudo na base de vaquinhas e de uma rede de contatos que crescia sem parar. Os 5.000 moradores de dois conjuntos habitacionais vizinhos foram convidados a participar de "pizzadas" e contribuir com a campanha.

Artistas como Tom Sachs e o casal Christo e Jeanne Claude cederam obras para serem leiloadas; personalidades do cinema e da TV, como Edward Norton, Kevin Bacon, Anderson Cooper e Martha Stewart, viraram mestres de cerimônias em eventos atrás de doações.

O republicano Michael Bloomberg virou prefeito em 2002 e pediu um estudo que demonstrasse a viabilidade da obra e o que a cidade ganharia com isso. "Já há diversos parques de que Nova York mal consegue cuidar", ponderou.

O estudo calculava que a obra custaria R$ 130 milhões, mas traria R$ 280 milhões em impostos para a cidade, com um novo zoneamento e a valorização e construção de imóveis na vizinhança. Bloomberg passou a apoiar os rapazes.

Primeiro, a ONG fez um concurso internacional de ideias, que teve 730 concorrentes -de uma enorme montanha-russa sobre o elevado a uma única piscina suspensa e linear.

Anos depois, com R$ 80 milhões assegurados pela prefeitura, houve um concurso entre escritórios de arquitetura.

O vencedor, liderado pelos paisagistas James Corner e Piet Oudolf, com o escritório Diller, Scofidio + Renfro, criava vários caminhos que se alargavam ou se estreitavam ao longo da velha via férrea, sempre cercados por flores silvestres de espécies que já tinham crescido ali espontaneamente.

Boa parte dos trilhos foi retirada, e as placas de concreto que formam o piso de vez em quando se erguem, transformadas em bancos com madeira e aço. Outros, mais largos, são usados pelos nova-iorquinos para aquele almoço rápido com a embalagem do delivery no colo ou para leituras mais preguiçosas na sombra.

No cruzamento com a Décima Avenida, o elevado ganhou uma praça em formato de anfiteatro, com uma plateia de madeira virada para um janelão de vidro que permite observar o que se passa no trânsito logo abaixo.

Em termos de voyeurismo, porém, nada bate o hotel Standard, construído sobre o High Line, cenário das dramáticas escapadas sexuais do personagem de Michael Fassbender no filme "Shame". É comum ver turistas parados, observando o hotel, à espera de alguma indiscrição.

A iluminação foi instalada embaixo dos bancos e nos gramados para não atrapalhar a visão noturna no parque, que fecha diariamente às 23h.

Bicicletas, lojas e lanchonetes foram proibidas -apenas duas sorveterias e alguns músicos podem faturar no parque.

"As pessoas sobem até o elevado como quem pula uma cerca e entra em um lugar proibido, com seu passado de drogas e sexo. Há uma aura de mistério para quem olha de baixo", descreve a arquiteta Liz Diller. Nos fins de semana, a multidão anda quase em fila indiana para conseguir ver tudo.

SEGUNDO ROUND

Com a primeira parte da obra quase concluída, veio um novo terremoto: o desmoronamento de Wall Street, em setembro de 2008. A crise financeira provocou o cancelamento de eventos para arrecadar fundos, as doações secaram e o pânico abateu Hammond e David, que estavam prestes a assumir a direção do parque.

Foi quando o magnata da mídia Barry Diller decidiu doar R$ 20 milhões ao projeto. Isso incentivou vários outros milionários e algumas fundações a assinarem seus cheques.

Antes, a mulher do empresário, a estilista Diane von Furstenberg, já tinha doado R$ 10 milhões. Um almoço foi organizado no IAC, prédio em forma de vela desenhado por Frank Gehry, com vidros que parecem banhados em leite. "Todo mundo estava louco para vê-lo por dentro, então a venda de convites foi enorme", lembra Hammond.

A conta do parque foi fechada com as doações privadas, federais e estaduais, mais os R$ 100 milhões da prefeitura, que cobriu um terço da construção do parque.

Desde que foi inaugurado, em 9 de junho de 2009, a prefeitura já arrecadou R$ 1,8 bi com a valorização da área. Apenas em construções autorizadas com o novo zoneamento, que permitiu prédios mais altos na vizinhança, surgiram 35 edifícios residenciais e comerciais. Outros 12 estão em construção.

A gigante japonesa de "fast fashion" Uniqlo patrocina a pista de patinação de gelo aberta no inverno. Ainda chamou Robert Hammond para ser modelo de uma camiseta especial celebrando o parque.

O Google, que comprou por US$ 1,9 bilhão (R$ 3,8 bi) sua sede nova-iorquina de 15 andares a dois quarteirões do parque, também se tornou um dos patrocinadores.

Seguindo o exemplo do Central Park, a gestão do High Line fica a cargo da sociedade de amigos, que precisa arrecadar fundos com programas de doações e sócios. Em 2012, a manutenção é de US$ 4 milhões (R$ 8 milhões) por ano. A prefeitura cuida da segurança, menos de 9% do custo total.

Joshua David, hoje com 49 anos, continua morando no seu apartamento no Chelsea, que comprou na década passada, com o namorado, com quem vive há 28 anos. Robert Hammond, aos 43, continua a morar de aluguel no West Village. "Deveria ter comprado um apartamento ao lado do High Line, valorizou tanto", suspira o cofundador do parque. "Mas não sou tão esperto assim."

As lições do High Line

Desde que foi lançado, o parque suspenso nova-iorquino faz paulistanos sonharem com a transformação do Minhocão. Daria certo por aqui?

O Minhocão paulistano pode virar um High Line? Muitos paulistanos desfrutam do elevado aos domingos e já se dão conta de que a obra malufista, que acelerou o esvaziamento do centro, não resolve o trânsito (aliás, como todas as obras viárias que priorizam o carro e não o transporte público).

Infelizmente, não dá para simplesmente transplantar o modelo nova-iorquino. Os dois viadutos têm materiais, larguras e vizinhanças muito diferentes.

Mas há lições a se tirar do High Line, feliz encontro de uma ONG obstinada, um prefeito fazedor e uma sociedade acostumada a não esperar tudo do governo. A arquitetura e o design foram centrais desde o início. O concurso, com alguns dos melhores escritórios de arquitetura do mundo, deu resultado.

Nova York tem uma outra ONG, o Conselho de Design para Espaços Públicos, que dá bolsas a órgãos da prefeitura, a ONGs e a organizações de bairro para estudarem propostas inovadoras fora das amarras da burocracia. Os Amigos do High Line ganharam uma dessas bolsas, no início da década passada.

Em São Paulo, os dois raros casos de revitalização de áreas degradadas carecem desses ingredientes. Em 12 anos de teatros na praça, a praça Roosevelt ganhou um projeto de reforma genérico, como a República e a Sé antes. Não vai ficar para a história.

O Baixo Augusta está sendo soterrado por horrendos edifícios residenciais, sem nenhum espaço para estabelecimentos comerciais no nível da rua, o oxigênio da região.

Do federal Minha Casa, Minha Vida às estaduais novas estações de metrô, passando pelas tristes novas calçadas da rua Augusta, o descaso total com arquitetura, design e capricho é suprapartidário.

Não é exclusividade do poder público: nem as maiores empresas do país conseguem impressionar com a arquitetura de suas sedes.

Sem ousadia arquitetônica, participação comunitária ou generosidade da iniciativa privada, é difícil replicar o modelo do High Line em São Paulo. (RJL)


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